texto pela equipe do site Kalporz
“Loveless”, o segundo disco do My Bloody Valentine, completa 30 anos em novembro de 2021. 10 anos atrás, em 2011, Marco Antônio Barbosa descrevia aqui no Scream & Yell: “’Loveless’ é o manifesto definitivo do chamado (às vezes pejorativamente) indie guitar rock. A obsessão de Shields, que queria a qualquer custo registrar ‘os sons que ouvia em sua cabeça’, rendeu uma obra na qual esporro guitarrístico se convertia em beleza sinestésica. (…) A simplicidade das melodias e a impenetrabilidade dos vocais ampliavam o potencial de transe das canções. (…) Noise esculpido cuidadosamente para gerar encantamento… e dor de ouvido”.
Para marcar os 30 anos de “Loveless”, a equipe da Kalporz, site de cultura pop italiano parceiro de conteúdo do Scream & Yell, juntou-se para reconstituir, faixa a faixa, o álbum que quase fez o selo Creation fracassar, e que ainda hoje é uma fonte inesgotável de inspiração para músicos e simples entusiastas. Piero Merola, Matteo Mannocci, Eulália Cambria, Samuele Conficoni, Riccardo Ricci e Matteo Maioli falam em “mistura de sons e feedback”, “sonho e a alucinação perturbadora”, “viagem interestelar” e “a matriz contaminante – o ruído – e o clima melancólico garantem a reinvenção de uma canção de amor que Phil Spector ou Lou Reed poderiam ter escrito”, entre outras coisas. Mergulhe (com fones de ouvido!).
01. “Only Shallow” – 4:17 (Shields/Bilinda Butcher)
Tentar definir com palavras de completo significado a sensação de estupor gerado pela primeira vez em que ouvimos “Loveless” é uma façanha que poucas mentes foram capazes de realizar. Nada é mais eficaz, porém, do que a introdução do disco e a introdução de “Only Shallow” que em 15 segundos subverte todos os conceitos de rock e vanguarda da época, alçando o My Bloody Valentine para o Olimpo para sempre. Para mim, também foi a primeira faixa ouvida ao vivo na sensacional turnê de reunião interna da banda, 13 anos atrás, com algumas datas no Reino Unido, incluindo cinco datas no Roundhouse em Londres. Os tímpanos e muito mais nunca mais seriam os mesmos. (Piero Merola)
02. “Loomer” – 2:38 (Shields/Butcher)
Após a abertura sensacional de “Only Shallow”, Shields e companhia criaram uma das canções mais mbv possíveis e um verdadeiro manifesto shoegaze. A canção às vezes surge da mistura de sons e feedback, marca que tornou a banda irlandesa um ícone. Eis uma música que exemplifica em todos os aspectos aquele estilo único, procurado, mas nunca mais encontrado por dezenas de seguidores de dreampop e afins. E o que é mais shoegaze do que esta parte do texto cantada por Blinda Butcher: “Pretty boys / With their sunshine faces / Carrying their / Heads down”? (Matteo Mannocci)
03. “Touched” – 0:56 (Colm Ó Cíosóig)
“Touched” é uma peça atípica. É uma espécie de interlúdio instrumental muito evocativo, escrito e produzido inteiramente pelo baterista Colm Ó Cíosóig em total autonomia do resto da banda. Basicamente, surge da interação recursiva de três elementos: uma frase de corda, uma intervenção percussiva e um riff do tipo “vá lá entender o que foi feito”. Apesar disso, a música se encaixa perfeitamente no discurso narrativo do álbum. A curta trilha sonora de um sonho misterioso. (Eulália Cambria)
04. “To Here Knows When” – 5:31 (Shields/Butcher)
Entre os cercos sonoros suspensos entre o sonho e a alucinação perturbadora de “Loveless”, “To Here Knows When” é talvez o momento mais elegíaco, de relativa trégua onde o dream pop com aquela sinfonia de drone ‘ante litteram’ decola levando a voz de Bilinda Butcher em uma dimensão que ainda estamos tentando entender. (Piero Merola)
05. “When You Sleep” – 4:11 (Shields)
Em muitos dos shows do mbv, o padrão policromático de “When You Sleep” vem imediatamente após o vórtice vulcânico que é “I Only Said”, um show de terror vacui que garante uma explosão hipertrófica de sons e vibrações assim que o show começa. Na obra-prima que é “Loveless”, “When You Sleep” a precede, criando, também neste caso, um turbilhão de oscilações magmáticas agudas e pulsantes. Na viagem interestelar que aguarda o ouvinte, as numerosas camadas vocais mergulham nas que são formadas pelos violões e pelo baixo até que uma não se distingue mais da outra. Parecem reiterar que esta forma de fazer música não pode soar sempre a mesma coisa: ela transborda, excita-se e assume características diferentes a cada momento. A voz de Kevin Shields entra na composição de forma incerta e impregnada, quase como se quisesse acompanhá-la pela mão até outra galáxia, uma dimensão onírica onde o tempo parece passar só para quem olha de fora e não para dentro. “When I look at you / Oh, I don’t know what’s real”, diz Shields surpreso, e cada imagem parece borrada e distante. Shields posteriormente afirmou que essas camadas de canto nasceram de sua decepção por não ser capaz de gravar a voz como ele realmente queria. Nenhuma outra frustração deu origem a algo mais etéreo e suave. (Samuele Conficoni)
06. “I Only Said” – 5:34 (Shields)
Sexta na programação, “I Only Said” é uma das canções que se mantêm na liderança desde os acordes iniciais, graças sobretudo à hipnótica melodia que se insere entre os versos. Como muitos elementos do álbum, é difícil identificar exatamente o instrumento na origem do som incessante ao longo da faixa. Apresentando as marcas registradas: as guitarras moduladas em níveis “mal di mare” por Kevin Shields, a voz etérea de Belinda Butcher, um ritmo “bugado” mais relaxado do que o normal. O texto consiste em uma série de sugestões destinadas a criar a atmosfera; um pouco como o que acontece nos sonhos quando parecemos captar revelações iluminadoras que, assim que acordamos, não podemos mais lembrar. (Eulália Cambria)
07. “Come in Alone” – 3:58 (Shields)
“Come In Alone” abre o lado B do vinil do segundo álbum do My Bloody Valentine com um ritmo marcial e guitarras gigantescas entre tremolos e feedback. Imagino-o como um exemplo de pop circular e visionário, em que a matriz contaminante – o ruído – e o clima melancólico garantem a reinvenção de uma canção de amor (“You Love To Let Go / I’ll Turn You Around”) que Phil Spector ou Lou Reed poderiam ter escrito. Anedota entre muitas, os engenheiros de som não puderam assistir à gravação dos vocais, que aconteceu às 7h30 da manhã cobertas por cortinas nas janelas, com as palavras concebidas por Kevin Shields no local. Ainda me lembro hoje do poder do baixo de Debbie Googe no show do Primavera Sound de 2009, em Barcelona, e como os volumes pareciam crescer ao limite de ensurdecedores no minuto final de uma catarse efetiva. (Matteo Maioli)
08. “Sometimes” – 5:19 (Shields)
Poderíamos defini-la como a “balada” do disco, a transposição agridoce de um amor desigual, desequilibrado e dissonante na letra e na música, que se abre com uma rodada de violão, gradativamente coberta por uma parede de som. Transmitir desânimo e ao mesmo tempo apaixonar-se, o desejo de ter ao seu lado alguém que, no entanto, pode te fazer mal e que pode ser evasivo. É o que sai do texto e provavelmente será o que Sofia Coppola encontrou numa das maiores obras de Kevin Shields, escolhendo-a como trilha sonora de um dos momentos mais emocionantes e ao mesmo tempo oníricos de “Lost in Translation”. Uma Scarlett Johansson muito jovem nos mostra Tóquio à noite, com sua vida agitada e suas luzes ofuscantes de dentro de um táxi. É realmente um táxi que te leva para casa, o lugar seguro para refletir sobre como um amor que está nascendo é desequilibrado e fugaz, maravilhoso e inatingível. Um pouco como tudo em “Loveless”, correndo o risco de ser inviável devido aos altos custos que estavam levando a Creation Records à falência. (Riccardo Ricci)
09. Blown a Wish – 3:36 (Shields/Butcher)
“Nothing left to do once in love, I’ll be the death of you”
A premissa, o topos, é a do amor que aprisiona, típica da literatura e da arte de todos os tempos. É essa história de amor e posse total que a voz cada vez mais evasiva de Belinda Butcher nos conta. A mistura sonora criada pelos incontáveis overdubs é capaz de balançar de uma forma tão doce e reconfortante que o ouvinte não tem mais nada a fazer a não ser ceder sem hesitar a um caloroso abraço sônico. (Eulália Cambria)
10. “What You Want” – 5:33 (Shields)
As três canções finais de “Loveless” oferecem um estado de transe misturado com euforia como se tivessem entre uma rave e uma pista de clube, os altos e baixos derivados da entrada do ecstasy na cena de 1991 em que a música de New Order e Primal Scream serviram como um trilha sonora perfeita: com “What You Want” você quer pogar e cantar como se estivesse num cruzamento entre o Sonic Youth destemido de “Daydream Nation” e o The Cure melódico de “The Head On The Door”. Talvez a faixa mais americana do álbum esteja ligada tanto ao estilo punk de um dos clássicos do disco de estreia do mbv, “Feed Me With Your Kiss”, quanto ao indie-rock que era tocado entre Nova York e Minneapolis. O final de “What You Want” é imperdível, um momento tranquilo após a tempestade que atualiza a lição experimental de “Revolver”: afinal, “Loveless”, para a Kalporz, é um clássico no mesmo nível. (Matteo Maioli)
11. “Soon” – 6:58 (Shields)
No final da programação encontramos a majestosa “Soon”, já presente no EP anterior (“Glider”, de abril de 1990), que acompanha suavemente o ouvinte até ao final do disco com seus sete minutos de duração (a versão do clipe é editada). Muitos? Considerando que o disco se desenvolve por meio de mutações da forma mais clássica da canção, talvez sim. Muitos? Absolutamente não. Com seu ritmo breakbeat, seus riffs de guitarra e suas vozes afogadas em uma atmosfera onírica, “Soon” é como um sonho (ou melhor, seguindo o texto, um pesadelo) em que o tempo se expande entre o infinito e o segundo que, de sopetão, você acorda. (Matteo Mannocci)
Texto publicado originalmente no site italiano Kalporz, parceiro do Scream & Yell