texto de Renan Guerra
“Vênus de Nyke” (2021) nasceu como um curta, porém a história por si só cresceu e André Antônio a transformou em um média-metragem de 40 minutos que agora é exibido na mostra competitiva do 29º Festival MixBrasil. O filme é uma experiência interessantíssima, pois acompanhamos na tela as experiências sexuais do protagonista, vivido pelo próprio diretor, além de suas conversas com sua terapeuta, que começa a ficar envolta no universo de fetiches e experiências sexuais apresentado por seu paciente.
De premissa simples e gravado em apenas uma locação, “Vênus de Nyke” surpreende com sua narrativa ágil, inteligente e extremamente moderna. O protagonista conta em sessões de terapia sobre suas desventuras sexuais, sua fixação por tênis e meias sujas, por pés masculinos e outras possibilidades que tensionam sua terapeuta. Há um interessante humor nas narrativas fetichistas do longa e que são impulsionadas por esse olhar desavergonhado de seu protagonista, que entende suas parafilias como constitutívas de sua identidade.
Para dar conta desse universo, André Antônio irá costurar uma gama de referências ao longo do filme: “Scorpio Rising” (1963), de Kenneth Anger; os longas de Bruce LaBruce; a estética da Butt Magazine; os textos de Glauco Mattoso e sua história filmada por Gustavo Vinagre em “Filme Para Poeta Cego” (2012); as fotos de Mapplethorpe; “Sebastiane” (1976), de Derek Jarman e até mesmo a adaptação cinematográfica de “A Hora da Estrela” (1985), de Suzana Amaral. Para um espectador que capte algumas dessas referências, o filme ganha outras camadas, mais complexas e bem delineadas. Podemos dizer, em definição sucinta, que o filme de André Antônio é praticamente um Keneth Anger de Nike Shox e óculos Juliet.
Porém “Vênus de Nyke” não se resume a isso, ele tem aquela acidez e aquela ironia transgressora que ecoa os melhores momentos de John Waters, com um olhar sagaz e inteligente sobre aquilo que é visto como marginal, estranho ou até mesmo errado pela sociedade. Para colaborar, ainda há o tom dado pelo forte sotaque recifense de André, que se torna uma marca estilística do filme. É muito simbólico, por exemplo, que ele use no filme a gíria “frango”, um coloquialismo de Recife para se referir aos homossexuais e que casa muito bem com a construção de seu protagonista.
André Antônio faz parte do coletivo Surto & Deslumbramento, criado em 2012, ao lado de Chico Lacerda, Fábio Ramalho e Rodrigo Almeida. Desde o surgimento do coletivo, ele já dirigiu os curtas “Mama” (2012) e “Canto de Outono” (2014), além de “A Seita” (2015), seu primeiro longa-metragem. Além do próprio trabalho da Surto & Deslumbramento, podemos conectar o filme de André com outras experiências narrativas, como os filmes de Caetano Gotardo, Gustavo Vinagre (de “Vil, Má”) e até mesmo Daniel Nolasco (de “Vento Seco”).
Quase como um filme-fetiche, dando orgulho à Bruce LaBruce, “Vênus de Nyke” transforma o espectador praticamente em um voyeur, assistindo e ouvindo as experiências, os sonhos e os desejos de seu protagonista. O mais importante aqui é que o filme de André Antônio não assume um lado: não há julgamentos para seu protagonista e nem para a terapeuta, que se coloca em espaço de questionamento perante seu paciente. Como dito, esse filme é uma espécie de experimento fetichista, que brinca com a linguagem, em colagens, referências e caminhos de leitura.
No final das contas, “Vênus de Nyke” é um interessante respiro de experimentação em meio a um cinema que tenta higienizar suas narrativas buscando, essencialmente, encaixar as experiências LGBTQI+ em narrativas heterossexuais. É bom ver na tela um filme que é estranho, desconfortável e sedutor, que nos emaranha em algo novo, que quando sobem os créditos você não necessariamente sabe tudo que viu, mas ainda assim quer mais.
O 29º Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade acontece de forma virtual do dia 10 a 21 de novembro de 2021, misturando cinema, literatura, teatro e música. Toda a programação é gratuita e pode ser conferida no site do evento: https://mixbrasil.com.br/. “Vênus de Nike” ainda será exibido presencialmente no CineSesc, 19/11, às 17h.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.