texto de Renan Guerra
Nunca vemos na tela a mulher que dá título ao filme: Madalena desapareceu e é o seu desaparecimento que irá guiar o longa de estreia de Madiano Marcheti, em exibição na mostra competitiva do 29º Festival MixBrasil. A partir desse fato, acompanhamos em três atos as reações de Luziane, Cristiano e Bianca perante o desaparecimento de Madalena e os impactos disso em suas vidas, indo desde a indiferença até as questões mais práticas desse acontecimento.
Gravado em Dourados e Bonito, no Mato Grosso do Sul, o filme não dá uma localização exata para a sua história, sabemos essencialmente que estamos em algum lugar do Centro-Oeste, em meio a casas suburbanas, condomínios e muitas fazendas de soja, sob uma égide forte do agronegócio. Pelos poucos dados que o filme oferta, sabemos que Madalena é uma mulher trans em torno dos 30 anos e que tinha um círculo social em sua comunidade, porém seu desaparecimento não irá mobilizar essa cidade, nem causar grandes questionamentos na população.
Sabemos que outras pessoas morreram ou desapareceram na cidade, em uma narrativa que alinhava certo mistério. Madalena foi assassinada, ela pode ter sido torturada, não sabemos, a questão proposta pelo filme é irmos mais adentro no que esse desaparecimento acarreta. E a escolha de Madiano Marcheti é a mais interessante possível: ao invés de fazer um melodrama sobre a a expectativa de vida de 35 anos para pessoas trans no Brasil, ele escolhe flertar com os filmes de gênero, em um passo ousado, que transforma o horror do dia a dia quase que numa espécie de thriller.
Com um roteiro escrito à quatro mãos por Madiano Marcheti, Thiago Gallego, Thiago Ortman e Tiago Coelho, “Madalena” (2021) brinca com os signos e os preceitos dos filmes de mistério e terror, criando um jogo de cena interessantíssimo, em que o espectador é levado para dentro dessa história por meios diferentes, que criam essa sensação de dúvida, desamparo e tensão. O longa conversa com outros filmes nacionais mais recentes que também usam desses signos, como “Mata-me por favor” (2015), de Anita Rocha da Silveira, os longas de Juliana Rojas e Marco Dutra, como “Trabalhar Cansa” (2011), e até um pouco daquele universo quase metafísico de “O Som ao Redor” (2012), de Kleber Mendonça Filho.
Isso tudo ganha ainda mais força com o interessante uso da câmera, que transforma os campos de soja e o profundo céu do Mato Grosso do Sul em pontos importantes do filme. Outro bom acerto é o elenco, que consegue entregar atuações quase naturalistas, que causam identificação e compreensão no espectador. Rafael de Bona dá complexidade e dubiedade ao seu personagem Cristiano, porém o destaque maior vai para Pamella Yule, que traz delicadeza e afeto para um filme que poderia ser muito árido, transformando a sua personagem Bianca em um ponto de luz.
“Madalena” é um filme interessantíssimo por conseguir tratar de temas fundamentais no Brasil atual, como a transfobia, a violência urbana e a onipresença do agronegócio, porém por uma ótica distinta, criando um filme que funciona muito bem enquanto filme, para além de suas temáticas e debates. Isto é, esse é um filme interessante de se assistir, com domínio técnico, bem produzido, usando esses detalhes em favor da narrativa. É muito bom ver o cinema brasileiro se aventurando em outros personagens, em outros cenários, em novas narrativas, trazendo diversidade para a tela.
O 29º Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade acontece de forma virtual do dia 10 a 21 de novembro de 2021, misturando cinema, literatura, teatro e música. Toda a programação é gratuita e pode ser conferida no site do evento: https://mixbrasil.com.br/. “Madalena” ainda será exibido presencialmente no CineSesc, 18/11, às 20h30.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.