entrevista por Homero Pivotto Jr.
Pergunta para convivas que curtem som pesado: quais bandas e/ou artistas do gênero no cenário nacional com integrantes negros que vocês curtem? Pode ser uma questão incômoda, por diferentes motivos, mas ela é necessária. Dentre tantas razões, está o fato de que existem pessoas de cor tocando rock e suas vertentes extremas, mas elas não têm a mesma visibilidade que a de grupos formados somente por brancos. Desavisados podem dizer que não existem tantos pretos que gostam de rock. E aí temos mais facetas do mesmo problema, pois a afirmação pode ser resquício do estereótipo de que negros curtem só rap, samba, pagode e funk. Ou esquecemos estar em uma nação onde aproximadamente 56% da população se declara parda ou preta, conforme o Instituto Brasileira de Geografia ou Estatística (IBGE) — o que, numericamente, deveria se refletir em maior paridade no nicho da música pesada. Não esqueçamos, ainda, que a gênese do que se conhece hoje por rock e suas variações veio de manifestações culturais negras.
Para trabalhar esses e outros tópicos relacionados à presença da comunidade negra na música pesada — inclusive o racismo estrutural que se reflete também em outros setores da sociedade — foi que surgiu o Preto no Metal/Coletivo Livre, em 2019. A proposta, no começo, era realizar uma mostra com fotos de músicos negros da cena em Porto Alegre, bem como um documentário. Mas o projeto logo tomou novas proporções: “Com a ideia de fazer o ensaio que originou o Preto é que nos demos conta dessa questão de que o racismo na música pesada é real e da representatividade muito modesta (em números) dos negros nesse nicho musical”, explica o músico Lohy Silveira, um dos integrantes da iniciativa.
Além da questão racial, o Preto também abre espaço para discutir outros tipos de preconceito, como social e de gênero. Mantido até aqui de forma independente, o coletivo agora está em busca de apoio para ampliar e qualificar suas atividades. Para isso, abriu um financiamento coletivo aqui https://apoia.se/pretonometal. Conversamos com uma equipe do Preto sobre o projeto, planos, preconceitos, receptividade e outros temas. As respostas foram dadas por Indy Lopes (idealizadora e fotógrafa), Joe Ribeiro (criador de conteúdo), Helena Meireles (criadora de conteúdo) e Lohy Silveira (idealizador e redator, também baixista e vocalista da banda Rebaelliun).
O objetivo inicial do Preto no Metal era ser uma exposição de fotos e um documentário com músicos negros do cenário pesado no Sul do país, no intuito de dar visibilidade à questão racial na música extrema, certo? Porém, uma dessas imagens foi parar nas redes sociais e acabou gerando uma aglutinação de pessoas interessadas em discutir, grosso modo, temas como racismo no som pesado. Duas questões para iniciar: podem fazer um resumo de como o projeto saiu da teoria para a prática, de como evoluiu da ideia de uma mostra fotográfica e um filme documental para o que é hoje? E por que acham que a concepção inicial acabou tomando proporções maiores?
Indy Lopes— Foi orgânico, simplesmente a situação tomou uma proporção que ninguém imaginava. Acho que, de fato, foi a carência de pessoas no metal discutindo esses temas, principalmente pessoas que já não estavam mais no meio exatamente por conta do preconceito disfarçado.
Joe Ribeiro — De princípio, acho que o Preto se formou pelo questionamento que todos que fazem parte têm: onde está a representatividade negra no estilo musical e por que nunca ninguém questionou? Ou fecharam os olhos para padronização de como deve ser uma banda de rock criada pela indústria musical em relação à cor da pele de seus integrantes? Muito do que o Preto fez se deve ao fato de que, além do estilo, podemos dar voz a esse questionamento que muitos também têm. Em sua história, o rock foi criado pelo povo preto, mas com o tempo foi tirado de cena para se fazer aceito pela população branca racista que não queria ver seus filhos imitando e cantando canções que os precursores do estilo faziam. Outro ponto que fez o coletivo crescer é que o Brasil é um país repleto de estilos musicais. Porém, só associam a comunidade negra com gostar de samba, pagode, rap ou, mais recentemente, funk. Essa associação nos afasta e por muito nos diminuiu, e isso faz com que não sejamos reconhecidos como consumidores/fãs de outros estilos. Como dito antes: a padronização feita pela indústria musical, com o tempo, fez com que o rock só fosse associado a pessoas brancas, classe média ou alta. O projeto vem mostrando que há muitos irmãos e irmãs fazendo som, como também mostramos que músicos pretos não são apenas o Hendrix e Sister Rosetta Tharpe, que muitos outros fazem parte da história do rock.
Helena Meireles — A ideia inicial tomou essa proporção por dois fatores, que acabam se combinando: a exposição foi algo inédito, e acabou acusando a falta de representatividade (verdadeira, pois nada adianta ser uma representatividade vazia) preta no meio da música extrema. No momento que compreendemos que o público (principalmente de pessoas pretas) precisava ser acolhido em um meio que tem se mostrado tão racista, homofóbico, misógino e excludente de várias outras formas, tomamos a iniciativa de abraçar algo além da principal ideia (a exposição de fotos).
Lohy Silveira — Acho que quando nos demos conta de que seria difícil reunir um grupo de músicos negros para fazer um ensaio fotográfico em Porto Alegre é que a questão de representatividade bateu forte, como um tijolo no nosso peito. Com a ideia de fazer o ensaio que originou o Preto é que nos demos conta dessa questão de que o racismo na música pesada é real e da representatividade muito modesta (em números) dos negros nesse nicho musical. Agora, dessa teoria e visão, para a prática em si, tudo correu de uma forma bem fluída. A Indy é uma pessoa muito agilizada e organizada, e isso foi fundamental para tudo que tem acontecido no Preto até hoje. Principalmente nesse quesito de transformar a ideia em realidade.
Quanto o contexto em que vivemos, com preconceitos cada vez menos velados, influenciou nesse processo de o Preto no Metal ampliar os objetivos iniciais? Pensam que foi o momento certo ou consideram que era algo que já podia ter sido feito?
Indy Lopes— Acho que se fazia ideia de que existia, mas quando tu escutas, lê pessoas relatando situações sofridas, tu acabas realizando aquilo. É como conhecer uma pessoa com quem tu só falavas pela internet: o troço se materializa na tua frente. Cara, se você pensar a merda que é qualquer tipo de preconceito, certamente algo que nem deveria existir, fica chocado ao ver isso. É algo que não devia haver, mas já que existe, algo tem que ser feito. E pra ontem! É muito urgente corrigir isso, a gurizada tá aí chegando e eles não podem cometer os erros que cometemos no passado.
Helena Meireles — Influenciou bastante, sim. Talvez não tenha sido algo que tivesse de ter começado antes, justamente por já haver discussões antecessoras ao que fazemos. O Preto no Metal deu continuidade ao que várias pessoas já se propunham a discutir, mas fazendo o recorte dentro da música extrema (que é um pedaço da nossa sociedade, e tende a reproduzir os mesmos comportamentos dela).
Lohy Silveira — Considerando que essas questões não surgiram ontem, claro, tudo isso poderia ter sido abordado muito antes. A questão é, será que há cinco ou 10 anos as pessoas estariam prontas para admitir ou pensar em representatividade no nosso meio? Até hoje ainda percebemos uma clara resistência de alguns em sequer cogitar a existência dos temas que abordamos e questionamos. Então, creio que o momento certo sempre será aquele que tu te dá conta da importância de debater esses temas e estar aberto a repensar teu ponto de vista.
Considerando esse nicho do metal — tentando dar uma amplitude que vai do rock ao black metal, passando por todas as ramificações possíveis entre esses gêneros — como foi a receptividade, tanto do público quanto dos artistas que estão nesse meio?
Indy Lopes— Não tem uma régua, a gente brinca que somos odiados pelos headbangers e pelos movimentos mais extremistas. Mas, ao mesmo tempo, você vê apoio de pessoas que nem sonharia ter. Inclusive, tem muita gente que nem do metal é que nos segue.
Helena Ribeira — Foi uma receptividade incrível. Muita gente reconhece a importância de projetos assim no meio do rock, e rola uma acolhida mútua de todo mundo, desde os músicos até o público, passando pelas mídias de rock/metal.
Lohy Silveira — De maneira geral foi positiva, porque foram várias as pessoas que tiveram a catarse de perceber que talvez nunca pensaram no quanto a representatividade negra é importante também nesse setor da cultura, e que o racismo ataca nesse nosso meio também. Claro, mesmo entre os negros, alguns minimizaram a importância de falar sobre esses temas e devemos isso, principalmente, ao racismo estrutural que ataca de forma invisível e silenciosa, mas faz um estrago irreparável.
Pegando o gancho da pergunta anterior: contem uma reação positiva e uma negativa que consideram ser interessante mencionar em relação ao projeto.
Indy Lopes— A positiva é receber mensagens dizendo que, por causa do Preto, a pessoa voltou a ouvir heavy metal, conhecer mais músicos por conta do Um Músico por Dia (seção nas redes sociais do Preto no Metal que indica artistas), isso dá muito quentinho no coração. Mas, em contrapartida, levamos muito tempo para lidar com troll. Hoje é tranquilo, a gente exclui e bane, mas no início causou muitas lágrimas. Minhas é claro… kkk.
Joe Ribeiro — As reações positivas são as mensagens que recebemos de seguidores dizendo o quanto se sentem representados pelo coletivo. Às vezes, nos parabenizando pelo trabalho feito, dizendo que a ideia é algo muito necessário. As negativas são de pessoas que ainda se encontram fechadas aos temas que abordamos. Muitos ainda se negam a sair da sua zona de conforto quando questionamos a falta de representatividade, quanto abordamos temas como machismo e homofobia na cena.
Helena Meireles — Experiências negativas temos algumas que acontecem, mas com uma frequência não muito alta. Rola de vermos reações de deboche em posts nossos, e que sabemos que são pessoas da extrema direita querendo “melar” o que temos feito. As experiências positivas tem um valor muito maior. Posso falar, particularmente, que o meu projeto Afroheadbanger surgiu pouco depois que conheci o Preto no Metal. O Preto me mostrou a importância de dar sequência nessa ideia de, principalmente, enaltecermos pessoas pretas no heavy metal, além de, também, me mostrar a importância de falarmos sobre racismo nesse meio.
Lohy Silveira — Acho que uma positiva – para além de gente que se dá conta do quanto é relevante mitigar qualquer ação opressiva – são as pessoas que nos relatam terem voltado a se interessar pelo som pesado por saber que tem pessoas que querem, abordando e debatendo os temas que o Preto trata, uma cena mais inclusiva e menos preconceituosa. Isso de fato é muito bacana, porque pra mim que estou envolvido com o underground desde muito novo, perceber pessoas voltando a ter interesse pela cena e citar o Preto como um dos motivos é inspirador. As reações negativas mais bizarras foram as que acreditam que o Preto queria instituir cotas para negros dentro do Heavy Metal. Não sei se por pura ignorância ou por uma simples demonstração de sarcasmo. Em pleno 2021 considero ambos os motivos lamentáveis.
O quanto consideram que a falta de representatividade pode ter interferido, historicamente, na participação de mais pessoas negras no universo do som pesado?
Indy Lopes— Nossa! Hoje, com tudo que já vivemos, muito, muito mesmo. E é apavorante ouvir de alguém que não está na cena por medo. Medo real, sabe? Medo físico.
Joe Ribeiro — De modo nacional, essa falta interferiu e muito. Temos hoje, no nosso quadro diário Um Músico por Dia, quase 200 artistas entre músicos e bandas formadas por pretos somente do Brasil. Há bandas que estão há muito tempo na estrada, como também novas. Se você ouvir, vai ver que todas têm excelentes álbuns. Claro que temos alguns músicos que fizeram sucesso nacionalmente, mas a grande diferença é o quanto esses artistas são lembrados pelos seus trabalhos.
Se pegarmos o período que o rock esteve mais em alta no país dificilmente você vai encontrar um preto entre essas bandas. Salvo que o único que esteve em destaque foi o Derrick Green, mesmo sendo pelas críticas ao entrar no lugar do Max no Sepultura.
Helena Meireles — Interferiu foi muito, imensuravelmente. É bastante grave percebermos que as figuras brancas lucram em cima do que pessoas pretas fizeram, além de todo o apagamento de personalidades pretas provocado por esse racismo escancarado.
Lohy Silveira — Acredito que interferiu drasticamente. Não tenho dúvidas de que deixamos de conhecer muitos talentos por puro preconceito nesse decorrer histórico. A verdade é que, durante muito tempo, a branquitude fez, e segue fazendo, com que a balança nunca ficasse igualada. E isso influencia tudo que deriva dessa comparação injusta. O mundo da música desde o mainstream ao underground não teria como fugir disso tudo.
O foco do Preto no Metal é, como bem sugere o nome, metal. Posto isso, mais uma da séria duas perguntas em uma: 1) Como avaliam, atualmente, a participação da comunidade negra na música pesada nacionalmente? Há mais espaço e aceitação? 2) E como percebem essa situação em outros gêneros?
Indy Lopes — A receptividade é muito grande. A chegada de novos seguidores por meio de bandas é diária. Muitas bandas nos seguem, tanto com pretes como com brancos. Talvez por nossa postura de não discutir com troll, a gente não desperdiça tempo com essa gente. Quer conversar educadamente, pode vir. Não importa a ideologia, mas se não houver respeito é exclusão e banimento. Sobre outros estilos: o rap sofre algo parecido, foi invadido pelos brancos. Então você consegue fazer um comparativo.
Helena Meireles — A participação de pessoas pretas na cena extrema sempre existiu, é algo que devemos ter em mente. A questão é a visibilidade que essas pessoas têm, que aí é bastante baixa. Essa visibilidade tem tomado um gás nos últimos anos, principalmente porque as pessoas que caminham conosco compreendem a importância disso. Posso usar o exemplo do rap aqui, um gênero majoritariamente preto e que, por ter crescido muito nos últimos anos, tem experimentado uma tentativa de “embranquecimento” do movimento. Notem que não falo que pessoas brancas não podem fazer rap ou coisa do tipo. A questão é compreender quem veio antes e que isso não pode ser apagado.
Lohy Silveira — Eu penso que, apesar de muito talentosa ainda segue modesta. Até porque essa não é uma realidade que muda da noite para o dia. Ela se resume ao underground, e nesse quesito, principalmente em algumas regiões do Brasil, ela é maior. Mas ainda assim, pense comigo: o maior expoente negro da música pesada e que canta na maior banda de metal de todos os tempos do Brasil, não é brasileiro. Observando esse cenário já dá pra ter uma ideia da realidade do músico negro que faz música pesada no Brasil. Sobre espaço e aceitação, acho que segue igual. A diferença é que agora aquela brincadeira de mau gosto ou aquele olhar desconfiado ou de reprovação passam menos batido. Nos outros estilos a representatividade sempre foi maior. Em quase todos, eu diria. O problema no som pesado é a importância que as pessoas dão à questão estética. Como o negro não faz parte desse imaginário geral do estereótipo headbanger, o metaleiro médio ainda torce o nariz. Nos outros estilos raramente se dá tanta importância assim a como os fãs ou músicos se vestem ou à sua imagem de forma geral. Então, ver um negro atuando nesses estilos acaba ficando mais normalizado, eu acredito. A questão também é que muitos ou não sabem ou não se importam que mesmo os negros dando origem ao som que hoje é o pai e a mãe da música pesada, as pessoas pensem que rock é música de branco.
Nesse trabalho que vocês prestam durante cerca de dois anos, quais constatações acham que são importantes dar visibilidade? Por ex: acreditam que o racismo, e outros preconceitos, ocorrem mais por falta de informação ou por outros aspectos (tipo: a pessoa é bicho ruim mesmo)?
Indy Lopes— Acho que tem ambos. Tem gente que não tem jeito, mas acho que há outros que não tem empatia, vivência. Eu mesma, por mais que eu me achasse uma pessoa bacana, que cuida de bichinho de rua e ajuda outras pessoas, só me dei conta do quanto eu era cuzona quando me separei do traste do meu ex e me relacionei com o Lohy. Claro que com quem você se relaciona faz diferença e a forma com que você se relaciona, seja amigo ou “conje”. Eu tive sorte de ter muitos amigos que vinham e davam no meio, chegavam e diziam: tu está falando merda, tá errada. E daí vai de você aceitar ou não. Eu preferi aceitar e mudar, mas eu sei que fui uma exceção.
Helena Meireles — Acreditamos que essas opressões acontecem justamente por nossa sociedade ser assim. Lembra que falamos que o meio metal é um recorte da sociedade? Às vezes a pessoa não é ruim de fato, mas ela cresceu enraizada nisso. A nossa ideia é disseminar o máximo de informação e discussões pertinentes que pudermos para que as pessoas na música extrema não reproduzam comportamentos que corroborem com a estrutura que oprime muita gente.
Lohy Silveira — Existem os dois casos, né. Em igual proporção? Não acredito. Apesar de sempre aparecer mais os “bicho ruim”, a grande maioria de preconceituosos apenas repete o que foram condicionados a pensar a vida toda. Aí vem aquilo que eu falei antes. Dos tentáculos invisíveis do racismo estrutural. Do racismo que te faz pensar que é normal mesmo não vermos tantos negros em posições de destaque, e tá tudo bem. Os que aparecem são por mérito, e os que não “vencem” é porque não se esforçaram o bastante. As pessoas realmente acreditam nisso, não admitem o peso do passado sobre as nossas costas e pensam que o “o que passou, passou…”, simples assim.
Avaliam que no Rio Grande do Sul, estado que teve tradição escravagista e tendência ao elitismo, é mais complexo se trabalhar questão racial? E como é isso no meio metal? Aliás, como descreveriam o metaleiro gaúcho mediano?
Indy Lopes — É difícil, tem dias que é muito difícil. Até a forma de lidar com o resto do país, pois muita gente não se dá conta de onde é o Preto. Daí tu tem que dar uma de: “ah, mas nem todo gaúcho…”. Porque é foda, não tem só otário aqui, mas que tem muito, tem. O metaleiro do Sul tem que ser estudado, ele acredita piamente que é europeu e satã o livre de falar o contrário. Se tiver nome diferente então, daí sim é sangue puro. São uns arrombados do caralho que não têm consciência de classe e que acham que são vikings farroupilhas.
Lohy Silveira — Sem sombra de dúvidas. O gaúcho médio não é diferente do metaleiro médio nesse sentido. Ele pensa que é europeu porque tem a pele clara e sobrenome italiano ou alemão, acha que luta social e combate a intolerância é mimimi. Venera vikings e deuses nórdicos, mas acha tudo bem o massacre dos povos indígenas, porque eram selvagens. Tem orgulho do gauchismo e do 20 de setembro e acha que povo negro foi escravizado porque não teve ímpeto para lutar e por aí vai… Então, sim. Trabalhar essa questão sempre será mais difícil em locais assim.
O Preto no Metal também aborda questões relacionadas a outros grupos que sofrem com falta de aceitação e/ou visibilidade, como mulheres e comunidade LGBTQIA+. É possível avaliar se há preconceito mais difícil de ser combatido do que outro (tipo, dizer que o racismo tem mais força que a misoginia)?
Indy — Numericamente? Talvez, mas quando você se dá conta que, por exemplo, um em cada 10 estupros são registrados, você fica sem saber. E também tem a questão de não ser uma competição. É importante esses grupos se unirem, respeitando claro, suas individualidades, mas se unindo. Isso é algo que a direita faz muito bem, e que nós da esquerda não sabemos fazer.
Helena Meireles — Compreendo que essa avaliação não é possível, principalmente porque as opressões se atravessam (é o que chamamos de interseccionalidade). Um exemplo: por mais que seja difícil de uma mulher branca acessar determinados espaços que um homem branco usa, pra uma mulher preta essa dificuldade será maior, pelo fator de raça.
Lohy Silveira — O preconceito geralmente não é isolado nesse sentido. Ou seja, o cara que tem preconceito racial, provavelmente terá preconceito de gênero ou orientação sexual. Acho que há relação também com o volume da representatividade. Os grupos que consideram e buscam o ideal normativo vão se sentir mais ameaçados por aquele grupo que está se fazendo mais presente.
Além do preconceito racial, como consideram que a desigualdade social impacta na participação dos negros em bandas de rock e metal?
Indy Lopes — Bom, basta ir em uma loja de instrumentos musicais ou a grandes concertos de música: tudo é inacessível. Por isso funk, trap, rap, hip hop fazem tanto sucesso nas periferias. Tu só precisa de ti e um telefone.
Joe Ribeiro — Essa desigualdade dificulta, e muito, para que tenhamos acesso ao estudo e aos instrumentos musicais. Isso não é apenas na música, mas também podemos colocar a dificuldade de muitos terem acesso de forma profissional ao esporte, ao cinema, ao teatro e à arte em geral. Para qualquer coisa que uma pessoa pobre possa fazer, o custo de matérias e aulas é caro, e se torna acessível apenas a jovens com pais que possuem uma renda financeira boa. Para uma pessoa que recebe pouco e tem que pagar moradia, alimentação, água, luz e outros gastos necessários para sobreviver, é impossível custear o que é preciso para ser músico.
Helena Meireles — Dificulta principalmente no acesso à determinados espaços e situações. Como os índices de pobreza, por exemplo, atingem muito mais pessoas pretas, esse fator acaba sendo determinante. Ter uma banda ou um espaço musical demanda dinheiro e investimentos, que muitas das pessoas pretas não têm como arcar.
Lohy Silveira — Acho que não há como ignorar que o racismo está ligado também, e fortemente, com a desigualdade social. E isso, obviamente chega no cenário underground. Como quase todas as iniciativas são independentes, o acesso a instrumentos musicais, por exemplo, tem forte influência na representatividade negra no rock e variantes. Mais ainda nos estilos extremos da música pesada. O incentivo cultural também é um fator muito importante. Um povo que pouco é incentivado e não tem condições de consumir cultura e ter seus próprios gostos, fica refém do que lhe é “servido”. E isso influencia muito a representatividade também.
Recentemente, o projeto lançou um financiamento coletivo. O que os levou a fazer isso agora, e não antes, por exemplo?
Indy Lopes — Eu, Indy, sempre fui o cofrinho do Preto e recentemente tive uma mudança, um custo extra na minha vida. Isso pesou no meu orçamento e eu roí a corda — além, claro, do custo de vida que, com esse animal no governo, subiu e sobe a cada dia. Foi também uma forma de ver se há apoio para tentar um financiamento para fazer um festival ao vivo, será um termômetro.
Lohy Silveira — Sempre tivemos muito receio de fazer algo assim. Eu particularmente, porque desde sempre fiz meus corres de forma independente e nunca fiz uma vaquinha ou solicitei apoio para qualquer projeto. Mas com o Preto eu comecei a entender e querer fazer valer o sentido real de coletivo. E como sozinho não se faz nada, acho que expor que temos custos e não temos patrocínio, e que toda a ajuda é bem-vinda para seguirmos fazendo, e fazendo mais, e fazendo melhor, é uma boa maneira de colocar na roda o sentido real do termo coletivo.
Quais atividades esse financiamento vai ajudar a manter?
Indy Lopes — A gente quer pagar coisas que tem custo mensal adiantado por um ano, pra não ter essa preocupação mensal:
40% – produção do documentário (pré e pós / ajuda de custos)
25% – ferramentas de produção de conteúdo diário (softwares, domínio, hospedagem
17% – divulgação/alcance/atingir novas pessoas (podcast, plataformas digitais, streaming)
13% – taxas administrativas (Projeto Apoia-se)
5% – caixa emergencial (Reserva para novos projetos)
Lohy Silveira — Os custos de manutenção das redes sociais, site e ferramentas para geração de conteúdo durante um ano. Vai nos ajudar na produção do documentário também, além de proporcionar um apoio fundamental na divulgação do conteúdo produzido em nossas redes sociais.
Para além da ajuda financeira, como quem não se enquadra nesses grupos que são oprimidos de alguma forma pode ajudar a dar voz e visibilidade a essas pessoas, respeitando o lugar de fala de cada um?
Indy — O termo lugar de fala foi tão deturpado quanto mimimi. Lugar de fala todo mundo tem, é uma posição social, o que as pessoas podem não ter é protagonismo. Mas isso não quer dizer que as pessoas estão proibidas de falar de assuntos que talvez não vivenciem na pele. É importante ceder espaço a quem tem protagonismo. Ex: Eu evito aparecer em lives, a preferência sempre é de meus companheiros e convidados, mas eu faço a maior parte da vida administrativa e burocrática (chaaata) do coletivo, porque essa é a minha vida no meu trabalho gerador de renda inclusive. Sei o que fazer e como fazer, e com a ajuda dos meus companheiros, nos organizamos assim: o Joe e a Helena chegaram em um momento que eu estava exausta (não que eu ainda não esteja), mas foi um fôlego. A chegada deles agregou demais, muita gente nos diz o que fazer, como e onde fazer, mas vim e pegar junto, junto mesmo, ninguém quer.
Lohy Silveira — Acho que o fundamental como comportamento é respeitar e entender que toda e qualquer luta contra a intolerância é válida. Em qualquer esfera. Entender e reconhecer seus privilégios é outra face da mesma moeda. Rever conceitos seus e dos que os cercam também é muito válido. E, principalmente, aceitar que isso é um processo. Ninguém nasce 100% ciente de como as coisas funcionam. Ninguém nasce desconstruído, então é preciso ter vontade de mudar. Ter empatia pelas pessoas e agregar, sempre.
Será que música e posicionamento não misturam?
Indy — Acho que depende. Nem sempre o artista opta por fazer, acho que o cara pode falar de amor apenas e ser um otário. Eu não vou ouvir ele, não darei meu dinheiro a alguém assim, mas não posso dizer que a música dele e a posição se misturaram, entende? Acho que deveria, assim você pode escolher ser fã ou não, mas também temos que ter cuidado às vezes, porque aquela pessoa do passado pode talvez não ser mais a do presente. Como eu não sou, você não é. E daí como fica? Claro que voltamos à outra pergunta, tem gente que não muda, mas e quem quer ou está mudando?
Lohy Silveira — Acho que isso é complicado. O mundo ideal seria vivermos uma realidade em que o posicionamento fosse algo intrínseco. Que a luta pela igualdade social e contra os preconceitos que vemos presentes fosse algo óbvio. Eu, por exemplo, nunca havia sentido necessidade de me posicionar até esse fortalecimento bizarro da extrema direita fascistóide. Eu não conseguiria dormir sabendo que fiquei calado enquanto o povo estava elegendo aquele equino, por exemplo. Então, acredito que deva ser algo que venha de dentro pra fora e não por pressão. O posicionamento deve se refletir na sua arte? Para isso vale a mesma lógica, se for legítimo sempre será válido. Agora para além de a arte refletir posicionamento, acredito que seja importante que o artista se posicione também como forma de influenciar quem o admira. Sendo pelo interesse do povo, acho que sempre é bem-vindo.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.