entrevista por João Paulo Barreto
Em seu quarto ano de existência, a essencial Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mahomed Bamba traz, em 2021, o especial formato educacional Olhares Periféricos. Começando na próxima segunda, dia 25 de outubro, a edição desse ano vai se estender até 30/11, trazendo atividades que se incorporam ao Novembro Negro. Após edições anteriores, nas quais o evento passou por vários bairros de Salvador, e uma exclusivamente virtual (2020), adaptando-se ao formato digital por conta da pandemia, a MIMB traz em 2021 um amplo esforço educacional através de vasta programação que inclui masterclasses , oficinas, painéis de diálogos e debates sobre a cadeia produtiva do audiovisual. As atividades educacionais acontecem de 26/10 a 05/11.
A idealizadora da Mostra, a produtora Daiane Rosário, pontua que o formato da MIMB voltado para uma aprofundamento educacional nos aspectos da produção cinematográfica era uma meta dela e de sua equipe de coordenação do evento. “Sempre foi um desejo uma edição voltada para imersões formativas mais intensas”, afirma Daiane. Com um grupo de destaque com profissionais do audiovisual brasileiro, as atividades da “MIMB Olhares Periféricos”, que tem nomes como os de Jeferson De (“Bróder” e “Doutor Gama”), Joyce Prado (“Chico Rei Entre Nós”), André Novais (“Ela Volta na Quinta” e “Temporada”), dentre outros, são oportunidades excelentes para o aprendizado na área. As oficinas, que acontecerão de modo virtual, terão como resultado filmes de 1 minuto que participam de um concurso com votação popular na segunda fase da formação.
“A edição especial ‘MIMB Olhares Periféricos’ celebra a potência ancestral das periferias brasileiras enquanto engrenagens tecnológicas e intelectuais, trazendo o afrofuturismo como movimento cultural que inspira a criação de narrativas de protagonismo negro, indígena e quilombola, a partir da celebração de sua identidade, ancestralidade e histórias. Acho que todo movimento corrente nesta edição é um desejo que inspira o passado já que também fizemos parte dessa juventude preta periférica com pouco acessos a formação cultural”, afirma Daiane.
Nessa entrevista ao Scream & Yell, a produtora aprofundou os outros aspectos do processo de produção dessa edição da Mostra, lembrou o saudoso professor Mahomed Bamba e falou sobre as dificuldades dentro de um ambiente profissional racista como é o do âmbito cultural no Brasil.
Quarta edição da MIMB e, dessa vez, em um formato voltado exclusivamente para laboratórios dentro dos diversos aspectos da produção audiovisual. Como se deu o processo de escolha desse formato da Mostra com um foco nos cursos?
Para nós, integrantes da coordenação do festival, equipe composta por mim, Tais Amordivino, Kinda Rodrigues, Loiá Fernades e Julia Morais, sempre foi um desejo uma edição voltada para imersões formativas mais intensas. Acho que é o que esta edição especial está nos possibilitando através do patrocínio cultural da Lei Federal de Incentivo à Cultura tendo a Novelis como apoiadora financeira. Diante das lacunas sociais, quando pensamos em educação cultural e tecnológica, nossa programação é majoritariamente voltada ao fomento de ciclos formativos em cinema e audiovisual. Entendemos o quanto a formação é importante para construção profissional e identitária da juventude negra, indígena e periférica. Em parceria com o núcleo criativo da Globo, e com as plataformas Wolo TV e VideoCamp, a edição especial “MIMB Olhares Periféricos” celebra a potência ancestral das periferias brasileiras enquanto engrenagens tecnológicas e intelectuais, trazendo o afrofuturismo como movimento cultural que inspira a criação de narrativas de protagonismo negro, indígena e quilombola, a partir da celebração de sua identidade, ancestralidade e histórias. Acho que todo movimento corrente nesta edição é um desejo que inspira o passado já que também fizemos parte dessa juventude preta periférica com pouco acessos a formação cultural.
A edição do ano passado, primeira realizada no formato virtual com exibição de filmes em plataformas digitais por conta da pandemia e dos protocolos de distanciamento social, expandiu para um leque maior de espectadores as obras selecionadas pela MIMB. Poderia falar um pouco sobre essa adaptação da Mostra para a internet?
Diante do caos sanitário causado pelo COVID-19, foi muito difícil a nova realidade que foi ofertada para continuidade do festival. Tivemos intensas reuniões a fim de criar estratégias para continuar conectadas ao publico periférico, nosso principal eixo de dialogo. O nosso grande ponto de virada foi o Impulso Cultural WAWA ABA, lançado na primeira edição realizada na pandemia. Com ele, mobilizamos através do Instagram mais de 10 mil pessoas. Ali entendemos qual era naquele momento a plataforma de dialogo direto com a juventude e a utilizamos como ferramenta de fomento da 3º e 4º edição. Foi muito difícil a nova realidade, ao mesmo que a hospedagem da MIMB em plataformas virtuais nos trouxe acessos nacionais e internacionais. Se antes, nas sessões presenciais, tínhamos uma sala com 50 a 100 pessoas, nas salas virtuais conseguimos 10 vezes mais visualizações em somente uma obra. O mesmo podemos afirmar para os ciclos formativos, que conseguiram alcançar inscritos do Brasil e de fora dele. Nossa Mostra é afetiva e o diálogo presencial com o nosso público é o que mais desejamos. A edição de 2022, inclusive, já está sendo planejada. Mas entendemos que algumas formas e formatos que se suportam nos braços virtuais ainda permanecerão mesmo com fim da pandemia.
Dentro do novo formato estão nomes de destaque como os de Jeferson De, que tem na bagagem o projeto Dogma Feijoada, bem como diversas produções como “Bróder” e “Doutor Gama”. Além dele, Joyce Prado, roteirista e diretora do ótimo “Chico Rei Entre Nós”, também compõe a equipe docente da MIMB 2021. Além dos dois, outros nomes se destacam. Como foi o processo de escolha dos(as) profissionais para o grupo que vai ministrar as aulas?
Planejamos os ciclos formativos de forma intensa e cuidadosa. Neste projeto MIMB OLHARES PERIFÉRICOS temos o LAB WAWA ABA com público composto majoritariamente por jovens negros, quilombolas e indígena do ensino médio, e as masterclasses com público livre. Em parceria com a Globo, a qual cedeu seu núcleo de talentos formativos para somar a nossa equipe de criativos, organizamos 12 encontros formativos virtuais que irão possibilitar trocas intensas e ricas com nomes do cinema nacional, como Marise Urbano, André Novaes, Fabiola Silva, Dione Carlos, Elizio Lopes Jr, Marcelo Lima, Naymare Azevedo, Naina de Paula, Amanda Lima, além dos grandes nomes também já citados, Joyce Prado e Jeferson De. Durante a pré-produção, tive reuniões individuais com cada professora/professor para pensarmos juntos imersões acolhedoras e sensíveis. Esse time de profissionais é grandioso e não temos dúvidas do sucesso desses ciclos formativos.
A MIMB leva o nome do gigante Mahomed Bamba, alguém cuja trajetória acadêmica e de vida foi riquíssima dentro do estudo do Cinema Negro. Você, inclusive, foi aluna dele. Poderia falar um pouco sobre a importância de Bamba na sua trajetória e na da Mostra que, apesar de ter surgido após sua morte precoce, tem sua gênese nesse seu contato com ele em sala de aula.
Bamba foi e continua sendo uma grande inspiração para nossas criações enquanto corpos pretos no cinema, seja na frente ou por trás das telas. Sou grata por ter tido a honra de conhecê-lo e por ter sido sua aluna. Esse grande professor me mostrou através de sua ótica de cinemas plurais, um lugar possível para minha existência no cinema. Em um dado momento, pensei em desistir do curso de cinema por conflitos de identificação racial nas ementas trabalhadas em sala. Certamente as aulas de Bamba me salvaram. Homenagear Mahomed Bamba é um compromisso com a memória mundial.
A itinerância que aconteceu nas duas primeiras edições gerou diversos frutos dentro dos locais e junto às pessoas que vivem nos bairros por onde a MIMB passou. Quais as ações originadas pela Mostra e como as mesmas reverberam, hoje, a partir das atividades realizadas tanto presencialmente em 2018 e 2019 quanto as virtuais do ano passado?
Até os dias atuais, somos procuradas pelas lideranças comunitárias, alunos e moradores dos mais de 15 bairros e espaços culturais onde passamos para construção de outras ações, frutos dos diálogos construídos nas edições presencias. Hoje, incorporamos às atividades virtuais esses diálogos e os resultados dessa interlocução são os jovens. Eles continuam seguindo nossa programação, indicam para irmãos, primas e amigos. Tivemos feedbacks incríveis e entendemos que as ações e as conexões precisam ser contínuas, pois a demanda do nosso povo é grande.
Lembro-me de conversar com o cineasta Henrique Dantas, em 2019, sobre seu documentário “Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar”, e ele me falou sobre a experiência transformadora que foi para ele ter sido curador da MIMB, sobre como ter se deparado com situações de racismo dentro das obras vistas e que o fizeram refletir acerca das situações vividas por ele mesmo e que, até então, não entendia como situações de racismo. Do mesmo modo, lembro de conversar sobre tema semelhante com o ator Guilherme Silva e ele me falou sobre questões relacionadas ao racismo sistemático e em como precisa de estratégias para seguir adiante. Fiz esse preâmbulo citando as entrevistas com Henrique e Guilherme pois Quero lhe perguntar acerca da importância da Mostra como um poderoso instrumento de luta contra o racismo, principalmente em um período tão miserável que o nosso país vive, quando excrescências assumidamente racistas detêm o poder. Dentro da mesma questão, lhe pergunto: você é otimista sobre o Brasil?
Inicio esta resposta afirmando que o Cinema segue sendo o segmento mais racista da Cultura Nacional. Podemos identificar isso nos sets de filmagens ou nas diversas pesquisas sobre representação racial no mercado cinematográfico. Recentemente, vi uma imagem que revelava a equipe técnica de um set ainda em curso, rodado em Salvador, em uma comunidade periférica. Na imagem, homens brancos tomavam todo quadro fotográfico. Em 2021, essa cena ainda é muito comum onde nossas lutas são intensas não só pela ocupação, mas por entendermos que “não se pode mais falar sobre nós sem nós”. Por outro lado, o ativismo e o movimento negro brasileiro vem criando roteiros de retomada e resistência muito antes dos cursos criados por mim ou pela MIMB. Desta forma, entendo que nossa missão é de continuidade, principalmente em deferência ao legado de mulheres e homens negros que possibilitaram nosso acesso às universidade para que, hoje, pudéssemos dizer em voz alta que somos cineastas, cientistas ou doutores. Meu otimismo sobre o país segue pelo reflexo dos meus ancestrais que lutaram por liberdade e igualdade de direitos. Haja visto que, para mim, só teremos tais acessos quando o poder político, social e econômico for preto. Enquanto as ações afirmativas seguem fazendo seu trabalho, nós, artistas negros, fazemos o nosso.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.