por Adolfo Gomes
O cinema de arquivo é, por princípio e eleição, bom, logo de cara? Nossa relação com as imagens pré-existentes tem algo de quase religioso, há ali uma promessa de descoberta e iluminação que parece legitimar, de antemão, qualquer gesto de resgate e preservação. No entanto, a resposta para essa indagação inicial está longe de reforçar o álibi puro e simples da prospecção fílmica como iniciativa “edificante”.
Por ironia – e dialética inerente – o documentário de Eugenio Puppo, uma das premieres da décima edição do Festival Olhar de Cinema, faz emergir tais questões com a devida dose de contradições. O ponto de partida de “O Bom Cinema”, disponível online dia 13/10 no site www.olhardecinema.com.br, é uma espécie de “encíclica” para a arte cinematográfica do século passado, que, no decorrer do percurso, flagra sua subversão dionisíaca, nas próprias entranhas da “Instituição” católica – a célebre primeira escola de cinema paulista, São João, de formação jesuíta e que foi ponto de aglutinação de uma geração de cineastas iconoclastas (Carlos Reichenbach na proa).
A consistente pesquisa de Gabriel Carneiro, que ampara o roteiro, e a trajetória de Puppo como curador e artífice de vários projetos de restauração e difusão da filmografia brasileira – de José Mojica Marins a Ozualdo Candeias, passando por outros autores e gêneros malditos – consolidam uma certa autenticidade na realização. Mas tudo (ou o mais importante) transcorre na montagem, na maneira como é (des)organizado o material, afim de ser fiel, minimamente, a uma expressão livre e, portanto, transgressora do objeto de sua abordagem: o cinema marginal das décadas de 1960 e 1970.
A imposição dessa “invenção” desgarrada parece levar Puppo a assumir uma linguagem híbrida. Para não se restringir ao modelo clássico dos “talkings heads”, o realizador insere voz e imagens dissonantes e o fora do quadro num arroubo mais experimentalista. Neste sentido, é natural e compreensível a preocupação formal do realizador.
Por outro lado, os trechos dos filmes que Puppo elege mostrar, pela sua criatividade esfolada e organicidade – pode-se até falar n’alguma placidez primitiva – acabam, involuntariamente, sabotando a fórmula transversalista adotada. No interdito “Audácia!” (Reichenbach e Antônio Lima) ou no seminal “Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla), por exemplo, há um prazer de filmar que se assemelha ao delírio antropofágico, um fogo difícil de se exaurir sob qualquer tentativa de apropriação. São incêndios permanentes que, generosamente, fazem o cinema ressurgir e se (re)inventar de maneira visceral.
O “Bom Cinema”, em última análise, é também filme proibido (ou seria mais apropriado considerar proibitivo), eclipsado pela sombra do seu cerne indomável. É um projeto tão utópico e falhado quanto a ideia “cristã” de orientar a arte de acordo com uma doutrina. Resta, no entanto, nos dois casos, a beleza da tentativa.
Outro documentário herzoguiano, pela maneira poética como incorpora o fracasso inevitável, é “Esqui”, do argentino Manque La Banca (em cartaz online, dia 14/10, na plataforma de streaming do evento). Construído com textura de filme turístico dos anos 1900, faz a travessia entre o fantástico e a reportagem etnográfica com desenvoltura e inquietude.
A estação de esqui de Barilhoche, em particular, e a Patagônia argentina, num plano mais geral, evocam histórias de mistério, colonialismo, desigualdade social e resistência. É mais um esforço brechtiano de pensar e criticar as imagens no tecido mais íntimo da narrativa. Imperfeito, belamente desigual e instigante, “Esqui” está bem acomodado na seção “Novos Olhares” do Festival. Manque La Banca tem, de fato, uma mirada própria, o viço do (des)cobrir as paisagens com curiosidade informal, e, sobretudo, a inconsequência de assumir o risco de ficar pelo caminho, perdido, atordoado, nesse território ainda selvagem que é a realidade.
O 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba acontece de 06 a 14/10 com programação online.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)