entrevista por Homero Pivotto Jr.
Apreciadores de músicas são propensos colecionadores. De discos, CDs, escritos e memorabilia em geral de seus ídolos. Entre esses, há também os que guardam memórias. É o caso do escritor, jornalista e produtor cultural Márcio Grings, que lançou em junho o livro “Quando o Som Bate no Peito“, uma coletânea com 34 resenhas de shows internacionais vivenciadas nos últimos 23 anos — todas publicadas originalmente on-line na página Grings Memorabilia ou no extinto blog que ele mantinha no site da rádio Itapema.
Entre os relatos que compõem a publicação, estão narrativas sobre apresentações de Bob Dylan, Paul McCartney, Rolling Stones, The Who, Roger Waters, Eric Clapton, Buddy Guy, Deep Purple e Black Sabbath. Além dos textos, sempre fundamentados em pesquisa e na própria vivência do autor, a obra traz cerca de 140 imagens. Mais da metade em um libreto colorido, com cliques de 18 fotógrafos, alguns com passagens por mídias importantes como GZH e rádio Itapema. É possível ter uma ideia do capricho com o trabalho no hotsite interativo www.quandoosombatenopeito.com.br.
Compilar as experiências de imersão em meio a graves, médios & agudos a todo volume não deixa de ser a extensão de outro hábito similar de Grings: ele acumula trechos de jornais e revistas antigas sobre artistas e eventos, tudo devidamente armazenado em encartes de álbuns aos quais esses materiais fazem referência. Os recortes são uma recordação pessoal, compartilhada apenas com quem visita seu acervo, montado cuidadosamente na casa onde vive em Santa Maria (região central do Rio Grande do Sul) com a companheira Camila Gonçalves, numa área menos urbanizada — com direito a presenças esporádicas de tucanos e a companhia do gato Jimi Hendrix. Já o novo livro tem intenções que vão além dos limites geográficos. “Quando o Som Bate no Peito”, conforme o autor, foi feito para tocar e dividir emoções com outras almas que sentem reverberar a arte dos sons, estejam onde estiverem.
“Sou obcecado pelo registro documental, luto para que as memórias não se apaguem, para que um evento seja falado e repercutido em palavras e não apenas imagens”, afirma Grings, um amante inveterado de música — já atuou em loja de discos, em cima do palco tocando com bandas (como a Red House e Harvest Moon) ou promovendo apresentações locais de gente como Eddie C. Campbell, Wee Willie Walker, Vitor Ramil e Bebeto Alves.
A maioria das coberturas de “Quando o Som Bate no Peito” foi registrada em Porto Alegre, distante cerca de 300 km da terra natal do autor e onde ele fixa residência. Boa parte dessas viagens foi em excursões organizadas pelo próprio Grings para levar fãs de rock até a capital gaúcha. O trajeto, que dura cerca de quatro horas, também costuma render recordações — embora nas páginas da publicação constem apenas algumas menções.
“Poucas vezes tivemos problemas nesses translados. O público de rock é muito tranquilo. Lembro a passagem do The Who em 2017, rumo ao Beira-Rio. O pessoal estava muito empolgado, parecia um bando de quarentões de volta ao jardim de infância. Algumas vezes fãs mais exaltados se perdem no final do evento ou passam da conta na bebida, e precisamos localizá-los para trazê-los de volta ao mundo real, em segurança até seu assento no veículo”, lembra Grings, saudoso da função em torno das viagens.
Na entrevista que segue, o escritor fala sobre o novo trabalho no universo literário (o nono da carreira), relembra como a música influenciou as trilhas pelas quais chegou até aqui e recorda momentos, e espetáculos, que ecoam em suas lembranças.
Uma coletânea de resenhas sobre shows pode parecer algo óbvio, mas não é. Tanto que são raras as publicações do tipo no mercado editorial, pelo menos no Brasil. Como e por que surgiu a ideia de fazer esse trabalho?
Sabe que desconheço um livro desse naipe por aqui? Lá fora há inúmeras publicações que relatam experiências de assistir shows ao vivo em forma de resenhas, mas no Brasil não é comum. Digo como obra literária. Não tô dizendo que inventei a roda, longe disso, mas tomara que eu possa inspirar outros jornalistas musicais a escreverem suas impressões numa publicação. Acredito que a memória cultural precisa ser preservada, pois, sem essas descrições, muitas vezes só nos resta o material fotográfico de um evento. Sou obsessivo pelo registro documental de espetáculos, principalmente o descritivo, e desde 2009 comecei a tornar isso um hábito. Não há show em que eu não esteja com caneta e bloco de anotações comigo.
É tua nona publicação no universo literário, e a primeira completamente dedicada a versar sobre música. Por que tanto tempo para falar dessa paixão que te acompanha desde meados dos 1980?
Na verdade, minha trajetória na literatura passa pela poesia, conto e crônica, mas a música sempre esteve presente em meus escritos. Como já disse, sendo jornalista musical, há um bom tempo me aventuro nessa atividade de resenhar experiências. Isso vem do Blog do Grings, plataforma em que mantinha meu material na época em que trabalhei na Rádio Itapema (do grupo RBS), e no site da Grings Tours, no qual documento minha trajetória de coberturas. Acredito que o livro vem num momento certo, já que todos estamos privados de assistir apresentações ao vivo. E, com isso, essas memórias parecem ainda mais importantes agora.
Há quem veja o jornalismo cultural, mais especificamente o musical, como algo supérfluo. Ao mesmo tempo, há os que percebem essa atividade como algo glamoroso, que coloca os profissionais da comunicação em situações que muita gente não tem acesso, mas gostaria de ter. Como tu percebes o ofício?
Frank Zappa certa vez disse: “o jornalismo de rock envolve profissionais que não sabem escrever entrevistando artistas que não sabem falar pra leitores que não sabem ler”. Acho uma meia verdade, pois basta olharmos para vários nomes aqui do país e dá para perceber que tem muita gente boa escrevendo sobre música. Cito dois apenas, mas gigantes: Juarez Fonseca, no Sul, e Zuza Homem de Mello, no Centro do país. Já sobre glamour ou algum tipo de ‘acesso aos bastidores’, isso não passa de uma visão deturpada de quem enxerga essa atividade como um evento social ou está apenas numa onda de pagar de fã. Ricardo Alexandre, ex-editor chefe da Bizz, disse algo bacana sobre crítica musical: “quem transforma discos e música em cultura é a imprensa”. Prefiro acreditar nesse preceito a entrar num jogo de demonização do jornalismo musical, como algo fútil. Cabe a nós, profissionais do meio, dar o tom e a importância ao nosso trabalho.
Qual tua avaliação sobre o jornalismo musical nos dias de hoje, se comparado ao passado? Em qualidade de produção e no quesito credibilidade também.
Ah, vejo que hoje entramos meio que numa vala comum. Tanto nas editorias de cultura de jornais quanto no esquema dos bloggers e youtubers, vejo muita subtração de conteúdo e valorização da imagem. Claro que há exceções, tem muita gente boa escrevendo sobre música, e cabe a nós subirmos a régua. Ainda acredito no poder da palavra escrita, prefiro ler um bom texto do que ver um vídeo repleto de sacadas de edição e piadas.
O título “Quando o Som Bate no Peito” é uma expressão que brinca com a sinestesia, com a diversidade de sensações que um show proporciona. Algo que vai além da audição. Quando e qual foi a epifania para escolher esse nome?
Foi muito difícil. Queria algo que sintetizasse essa sensação de estarmos em frente a um palco, num show ao vivo. Quando estava revendo e reescrevendo os textos, escolhendo as resenhas que fariam parte do livro, me deparei exatamente com essa frase no relato do show do Pretenders no Beira-Rio (Porto Alegre), em fevereiro de 2017. Diz assim:
“‘Don’ t Get Me Wrong’ certamente figura entre as canções mais conhecidas da noite. Também fez parte de filmes, comerciais e o diabo a quatro. O que importa? Ela continua sendo um grande pop rock, ainda mais quando o som bate no peito, bem em frente ao palco, exatamente onde estamos”. Aí pensei: bingo! Esse é o nome.
Falando nisso: o que tu sentes quando o som bate no peito? Cita pelo menos um exemplo que esteja entre as 34 resenhas do livro. Algo que ilustre a frase aplicada na prática, contigo sendo arrebatado.
Muitas vezes tive essa sensação de arrebatamento. Quando vi Bob Dylan ao vivo pela primeira vez (7 de abril de 1998, no Bar Opinião, em Porto Alegre) ou mais recentemente na apresentação do The Who (26 de setembro de 2017, no Beira-Rio). Em lugares menores, num show de blues, por exemplo, nunca vou esquecer quando Willie ‘Big Eyes’ Smith (músico da banda de Muddy Waters) largou a harmônica e sentou na bateria na parte final de seu show nos cafundós do Sul do Mundo (bar Rota 1, em Santa Maria): foi como se, finalmente, eu estivesse sendo apresentado ao verdadeiro blues. Quando o som bate no peito o coração vibra e a alma voa!
Por que nenhuma experiência on-line, ainda que válida como alternativa para tempos pandêmicos, consegue substituir o ao vivo in loco?
Impossível reprisar essa sensação. Sempre digo que esse lance do aperto, de estar no meio da massa, vibrando em uníssono com milhares de pessoas, equilibrando um copo de bebida na mão, levando na chapa o impacto sonoro de um grande espetáculo, não tem comparação com o mais moderno dos smartphones, DVD, blu-ray, materialização holográfica ou sabe-se lá o que possa surgir. Assistir música ao vivo, ver espetáculos com bandas e artistas, é sempre uma experiência transformadora. Pelo menos para mim. É um dos lugares em que mais gosto de estar.
Entre os relatos do livro, tem descrições de shows protagonizados por artistas das quais tu és fã. Como Bob Dylan e Glenn Hughes, para mencionar alguns. Como é trabalhar a ideia de, certa forma, ser parte ativa, e não um mero espectador em uma situação na qual ídolos estão envolvidos?
Sempre busco separar o fã do repórter. Com isso, tento ser o louco da lanterna. Sabe aquele lance de todos pirarem à sua volta e apenas você manter algum tipo de lucidez? Essa é a ideia. Presenciar um show, estar escrevendo sobre essa experiência ao vivo, saber que muitas vezes parte de tudo isso nunca será reprisado da mesma forma como se está vendo naquele segundo, acho isso mágico! Tenho obsessão pelo registro documental, tentar enxergar o que o grande público muitas vezes não vê.
Sabendo da tua paixão por Bob Dylan, pergunto: cobrir o show do bardo, em 1998, num local pequeno — o Opinião, em Porto Alegre — foi diferente? De que maneiras esse lado especial apareceu pra ti?
Esse show já nasceu histórico. Foi a única apresentação solo dele no Brasil naquele ano, já que em Rio e São Paulo ele fez abertura para os Stones. O Opinião conseguiu um feito aparentemente impossível: trazer Bob Dylan para tocar num lugar onde apenas 1,5 mil pessoas poderiam assisti-lo. É a resenha mais longa do livro (10 páginas e 33 notas de rodapé). Ressuscitei essa noite 13 anos depois, em 2011, quando escrevi um longo artigo que foi publicado no meu blog no site da Itapema, isso no dia do aniversário de 70 anos de Bob Dylan. Tinha tudo anotado, guardado durante anos: anotações, recortes de jornal, um vídeo da única reportagem do evento (com imagens do show feitas pela extinta TV Com) e muita sede de escrever e pontuar todos os detalhes, antes que tudo se apagasse da memória. Essa noite mudou minha vida, nunca mais me afastei da frente de um palco, saquei o grande barato da experiência musical. Depois vi o show dele em 2012, também em Porto Alegre, mas dessa vez no Pepsi on Stage (um espaço maior, com capacidade para cerca de 5,5 mil pessoas). Assisti ao lado de Eduardo Bueno, o Peninha, o mais famoso dos fãs de Bob Dylan no Brasil. Foi demais, estava novamente próximo do palco, e cada show do bardo é realmente especial. Quem o conhece e acompanha suas turnês sabe disso.
Como figura que analisa os diversos aspectos de um show: o que torna espetáculos do tipo bons ou ruins, baseados na tua experiência com música?
Depende de vários fatores, entre eles o lugar, o momento de cada artista ou banda e até mesmo a vibração do público. Um bom exemplo disso é a apresentação do The Who em Porto Alegre, em 26 de outubro de 2017, no Beira-Rio em formato de anfiteatro (quando somente parte do estádio é usada para o evento). Tinha algo especial naquela noite, tanto que o músico e produtor Brian Kehew, que faz parte da equipe do Who, publicou um longo depoimento no site oficial do grupo que posiciona essa apresentação como uma das melhores de Roger Daltrey, Pete Townshend e sua trupe neste século. Foi muito especial estar lá nessa noite.
Os textos contêm bastante informação, seja histórico dos artistas resenhados ou impressões tuas para além do evento e do dia do show. Como é o processo de elaboração das resenhas?
Geralmente vou acompanhando a turnê até a noite em que estarei presente. Sempre confiro setlist, ouço as canções, reviro os álbuns, vejo vídeos (já que hoje a instantaneidade das redes sociais nos ampara fabulosamente nessa antecipação) e leio muito sobre a banda e os artistas. Escrevo algumas coisas antes do show, penso no mote, no tom da resenha, mas o que define tudo é o que acontece na noite do show, ao vivo. Já aconteceu de ter um material prévio escrito e não o usar. Um exemplo de resenha que tem muito material de pesquisa e relato jornalístico é do show do Roger Waters em 2018, e não poderia ser diferente, mediante todo o contesto político que a “Us + Them Tour” esteve envolta naquele momento. Há ali um passo a passo da turnê até chegar na apresentação da capital gaúcha. Um show que não usei quase nada do que tinha escrito foi o do Black Sabbath. Caí de quatro quando os vi em 2013. No outro dia comprei uma biografia deles. Esse é o grande barato de ver um show: muitas vezes cremos estar preparados para ver as lendas de perto, mas quando estamos ali, frente a frente com esses gigantes da música mundial, em certos momentos o arrebatamento é inevitável. Já rolou decepção também, enfim, eles também são humanos, falíveis, como qualquer um de nós.
Tu trabalhaste em lojas de discos e em rádios em Santa Maria, uma cidade do interior. Ou seja: um pouco distante dos grandes centros, onde tudo acontece. Lembra o que pensava sobre assistir a um artista internacional ao vivo? Idealizava essa situação? E quando rolou, como foi?
Eu sempre quis viver uma vida de música, ligada à atividade musical. Acho que falo bastante desse garoto no livro, um adolescente que encontrava um lar no rock and roll. Ter trabalhado em lojas de discos foi uma escola fabulosa, pois me apresentou a gêneros como o jazz e a música erudita, assim como ampliou meu campo de interesse. Sou radialista, tive programas e coordenei uma rádio. Estar num estúdio anunciando um bloco de música e falando sobre bandas e artistas foi um dos grandes baratos da minha vida. Tudo isso está refletido em “Quando o Som Bate no Peito”, há diversas viagens no tempo, quando volto aos anos 1980, época em que ainda menino descobri a força da música e as janelas que ela abriu na minha cabeça. Quando aconteceu de estar na frente do palco, acredito que aquele menino que fui retornou muitas vezes comigo.
Fizeste inúmeras excursões de Santa Maria a Porto Alegre para levar gente a shows. E lidar com fãs, alguns por vezes alterados pela emoção ou por “algo mais”, nem sempre é fácil. Por que investir nesse tipo de empreitada? A curtição do trajeto é tão bacana quanto o destino final? Alguma boa história dessas trips pra contar?
Em primeiro lugar, por morar no interior do RS, cerca de 300 km da capital, sempre tinha essa função de ir até Porto Alegre para trabalhar nas coberturas. Muitos amigos, como boa parte dos shows acontecerem no meio de semana, sempre precisavam fazer o bate e volta, pois a grande maioria, assim como eu (que escrevo as resenhas poucas horas depois de assistir aos concertos), necessita retornar ao trabalho. Desse modo, conciliei as coberturas credenciadas com as excursões. Começamos em 2010 (logo depois a jornalista Ana Bittencourt se juntou a mim na organização das trips), numa van com cerca de 20 pessoas, e chegamos a levar cerca de 300 passageiros para o show do Guns N’ Roses em 2016. O mais curioso é que poucas vezes tivemos problemas nesses translados. O público de rock é muito tranquilo. Lembro a passagem do The Who em 2017, rumo ao Beira-Rio. O pessoal estava muito empolgado, parecia um bando de quarentões de volta ao jardim de infância. Algumas vezes fãs mais exaltados se perdem no final do evento ou passam da conta na bebida, e precisamos localizá-los para trazê-los de volta ao mundo real, em segurança até seu assento no veículo. Quando lembro das excursões, os amigos, companheiros de viagem, o aquecimento antes dos espetáculos, o ônibus tocando uma playlist com canções dos shows, o clima de festa, de celebração, sempre digo que dia de show é como se fosse feriado nacional no Planeta Rock. Só saudades e boas lembranças, além da esperança de um retorno a essa atividade em 2022.
Quais os papéis da música e da literatura nas tuas trajetórias pessoal e profissional?
Sempre estiveram em caminhos paralelos. Tanto a literatura quanto a música têm um papel fundamental no homem que me transformei. Sempre acreditei que uma casa sem livros e sem discos é o mais vazio dos lares. Graças ao Criador estou recheado desses totens no meu chalé. Minha vida, meus livros, meus discos.
Alguns textos foram revistos, com alterações feitas em relação a versões que foram publicadas on-line — algumas, horas após os shows. Como se deu esse processo de retrabalhar os escritos?
Percebi que quando comecei a enfileirar as resenhas, pensando na palheta de obra literária sobre relatos de shows, havia muitos temas repetidos, impressões semelhantes, o que soava até monotemático. Com isso, subtraí muita coisa, achei um tom para cada relato e reescrevi muitas partes, sem fugir da senda original e das escolhas que previamente fiz para cada texto. Acredito que fez toda a diferença, pois cada review tem uma identidade própria, um caminho diferenciado sobre visões de um repórter musical.
Seguindo a questão anterior: conta pra gente algumas situações que foram revistas.
Claro! Um exemplo está nas resenhas do Bob Dylan, já que são duas no livro. Elas funcionam com tonalidades peculiares, sem repetições, apesar de até mesmo falar de canções idênticas em ambas. Outra que mudou foi a de Joan Baez, pois coloquei um enxerto história de um show frustrado dela no início dos anos 1980, cancelado pela ditadura. O bacana é que as resenhas originais podem ser lidas no meu site www.gringstours.com.br.
Infelizmente, a arte está em desapreço por parte considerável da população brasileira. Por que insistir em atividades ligadas a ela, seja tocando, produzindo shows, organizando excursões para grandes apresentações ou mesmo lançando livros?
Fazer cultura é uma atividade de guerrilha, é aquele lance de matar um leão por dia, de polivalência. E vender livros está no alto dessa pirâmide, como o mais difícil dos feitos culturais. “Quando o Som Bate no Peito” contém recursos da Lei Aldir Blanc e, sem esse dinheiro, seria impossível entregar um livro com tamanha qualidade. É difícil comercializar livros, mas estamos vendendo razoavelmente bem, e a aceitação e o impacto das pessoas quando pegam o exemplar físico nas mãos é sensacional!
“Quando o Som Bate no Peito” é uma coleção de resenhas. Isso, de certa forma, não deixa de ser a extensão do teu hábito de catalogar registros sobre música, como as matérias de época sobre artistas ou shows que tu guardas entre os encartes dos álbuns a que se referem. Faz sentido pra ti essa linha de pensamento?
Perfeitamente. Como já disse, sou obcecado pelo registro documental, luto para que as memórias não se apaguem, para que um evento seja falado e repercutido em palavras e não apenas imagens. A palavra escrita é uma das bandeiras da minha vida e da atividade profissional ligada à arte.
Tua ideia é dividir com as pessoas essa atração pela música. De que maneira pensa que o livro pode fazer isso? E quais atrativos da obra ajudam a atingir esse objetivo?
É um livro de música para quem gosta de música. Já falei antes desse bordão por aqui? Digo isso a todos. Quando editei o livro com meu diagramador, Giovani Faganello, disse para ele: “quero que esse livro relembre as revistas de músicas, aqueles fanzines ilustrados com fotos duotone, gostaria de colocar imagens em cada brecha possível” (são mais de 130!). Além disso, o libreto de fotos está em papel couchê com 71 fotografias, registros sensacionais de cada show resenhado, um elemento que ilumina o livro. Impossível não materializar muitas sensações. Criastiano Radtke, que foi o cara que me auxiliou na reescrita do material original, como revisor de conteúdo e diversas outras pontas, falou algo interessante: de que muitas imagens conversam com o texto. Por isso vejo uma obra bem alinhavada, onde todas as costuras estão desenhadas com critérios e principalmente amparadas por um olhar transversal.
E como foi a relação com os fotógrafos nos eventos? Como se deu o diálogo prévio e qual peso das imagens para deixar teus relatos ainda mais críveis para quem os lê?
Na maioria das vezes, eu levei um fotógrafo comigo, credenciado pela empresa em que eu trabalhava na época (no caso, a rádio Itapema) ou pela Grings Tours, pela qual faço coberturas independentes. Quando não tive fotógrafos credenciados, geralmente as imagens vinham depois, e aí sempre era uma surpresa conferir o material que iria ilustrar as resenhas. No caso dos briefings, vou citar um exemplo do que ocorreu em 2014, quando Fabiano Dallmeyer atuou como fotógrafo na cobertura do show do Deep Purple no Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre. Pedi para ele uma foto em que os três integrantes da formação clássica estivessem juntos numa imagem (Ian Gillan, Ian Paice e Roger Glover). É a fotografia que abre o álbum de fotos de “Quando o Som Bate no Peito”. Geralmente, converso com fotógrafos e peço imagens específicas, prevejo situações, antecipo temas e posicionamentos dos artistas no palco, já pensando naquilo que irei explorar nos textos.
Assim como o título do livro, há outro bordão entre frequentadores de shows que diz: da arquibancada se vê o show, da pista se vive o evento. O que acha? Claro, há inúmeras variáveis para alguém escolher o local onde ficar, principalmente a financeira, mas consideramos aqui o posicionamento do espectador.
Não tenho dúvida: é na pista que se sente o show de verdade, principalmente próximo ao palco. Não há comparação. Principalmente pelo som, mas também para poder ver aquilo que o telão não mostra. Eu, inclusive, gosto de curtir tudo: soundcheck, a movimentação dos técnicos de som e roadies, as trocas de instrumentos entre as músicas, as luzes, enfim, todo o misancene que move eventos musicais, inclusive pelos personagens coadjuvantes. Já assisti shows da arquibancada, poucas vezes, e confesso que o impacto diminui bastante. Se por um lado, fica mais cômodo ir ao banheiro, comprar um lanche e o cansaço é menor, por outro lado a experiência é amplamente diminuída.
E como alguém que, literalmente, cobre o setor de shows, o que acredita que vai acontecer com esse mercado após a pandemia?
É muito difícil prever. O que sabíamos é que o Brasil estava totalmente inserido no circuito das turnês internacionais, pois grande parte delas passava por aqui. Pós-pandemia, uma coisa é certa: os preços dos ingressos (que já eram caros) devem aumentar, assim como acredito que irá levar um tempo para acomodar as peças até retomarmos ao status de 2019, por exemplo. Também acredito que as turnês de bandas e artistas em lugares menores ficarão extremamente prejudicadas, pois financeiramente vai ser mais crítico viabilizá-las.
Tu tens um selo literário, o Memorabilia, que trabalha com publicações independentes. Como avalia a produção dos escritores que não chegam à massa e como é manter um trabalho desses em tempos, como já falamos, de descaso com a arte?
Eu já publiquei nove livros meus e ajudei a editar outros cinco ou seis. Aprendi no andar da carruagem, a começar pelas lições de Luiz Vidal de Negreiros Gomes, meu primeiro editor, além da vivência com diagramadores, editores, escritores e da minha obsessão por olhar para o ‘produto’ livro como algo com necessidade de um bom acabamento. Além de “Quando o Som Bate no Peito”, a Memorabilia Store lançou esse ano “Meu Reino por uma Cerveja”, de Ronaldo Lippold, e “Paisagem Marinha”, de Vitor Biasoli. Convido os leitores do Scream & Yell a visitarem nosso site: www.memorabiliastore.com.br. Entre nossos serviços, auxiliamos os autores com copidesque, na divulgação e na distribuição das obras. Em pouco mais de três meses da criação do site os resultados são fabulosos. Acho que essa jogada de distribuição e assessoria de imprensa é um dos calcanhares de Aquiles de um produto independente. Tem muito trabalho envolvido, sou quase um one mand band, mas conto com um minitime afinado. Tá rolando…
A temática de “Quando o Som Bate no Peito”, apesar de específica, é bem ampla. Dá margem para se trabalhar diversos aspectos ou mesmo uma sequência. Algo na agulha?
Gosto de dizer que, se você gosta de música, poucas sensações podem ser equiparadas a estar na frente de um palco, vendo uma apresentação ao vivo. Tive a sorte de passar o rodo nos últimos anos, vi muita coisa boa de perto. Outras tantas ficaram de fora do livro, até porque sempre tive planos de fazer uma sequência, um volume II. Quem sabe em 2022, quem sabe com mais shows na bagagem, quem sabe em tempos menos difíceis do que esses que estamos vivendo agora, reprisando a época em que éramos felizes e sabíamos. Penso que as 34 resenhas que estão em “Quando o Som Bate no Peito” são apenas um aperitivo, ainda há muito mais a ser vivido. Espero…
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal. A foto que abre o texto é de Ricardo Ravanello
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