por Renan Guerra
Um bordel perdido em alguma cidade no interior sem muitas referências de espaço-tempo. Prostitutas de diferentes idades em uma casa anteriormente comandada por uma espanhola conhecida como Gringa (Carmen Maura). Já cega e um tanto quanto senil, Gringa sonha com o perdão de um amor da juventude e com um reencontro em Veneza. A sua fixação na cidade italiana se torna um problema para os personagens do entorno, que buscam maneiras de levá-la nessa viagem quase impossível.
Esse é o ponto de partida de “Veneza”, segundo longa-metragem dirigido por Miguel Falabella e que está chegando agora aos cinemas brasileiros – aquele esquema “salas selecionadas, seguindo todos os protocolos”. Gravado em 28 dias em locações no Uruguai, no Brasil e na Itália, o longa tem no elenco a espanhola Carmen Maura, atriz conhecida por seus papéis em filmes de Pedro Almodóvar, e uma gama de globais: Dira Paes, Carol Castro, Danielle Winitts, Eduardo Moscovis, Roney Vilela e o jovem Caio Manhente.
Normalmente, a estética de Miguel Falabella é essencialmente camp, exagerada, escrachada, com um humor afiado e cheio de malícia, e isso ficava extremamente marcado em “Polaróides Urbanas” (2008), seu filme de estreia. Seu longa anterior era interessante, mesmo com seus problemas, e lá já ficava clara uma mescla desse humor ácido típico do autor com boas doses de melancolia. Em “Veneza” vemos essa melancolia assumir mais espaços e o humor parece descer um tom, ficando mais delicado e mais sutil.
Visualmente, talvez, tenhamos a maior diferença: a fotografia de Gustava Habda e a direção de arte de Tulé Peak dão um tom completamente distinto ao filme, com tons de sépia e construções mais escuras e mais cinematográficas – o que é extremamente positivo, já que muitos filmes nacionais de comédia ainda caem numa construção imagética muito próxima da televisão. A fotografia de “Veneza” conversa com toda essa filmografia italiana que constrói as referências de Falabella. As cores, o tom quase fabular, os personagens múltiplos, tudo nos leva a esse cinema de autores como Federico Fellini e Luchino Visconti, referências assumidas do diretor.
O texto basilar do filme é original de uma peça de teatro do argentino Jorge Accame. Esse material conecta o filme com outro universo muito rico que é o do realismo fantástico latino-americano, onde as metáforas são construídas de forma quase mágica, em que os limites da realidade são tensionados e nisso o filme de Miguel se sai muito bem. Ele consegue pegar um ambiente como o bordel – tantas vezes já retratado na tv e no cinema nacional – e traz uma humanidade diferente para essas personagens, incluindo elas nesse espaço do romance, da fábula e da magia.
Além do texto base da peça, Miguel incluiu uma história paralela que envolve uma prostituta e seu cliente que se interessa por usar roupas de mulher e sonha em colocar peitos em uma cidade grande. Essa história de tons almodovarianos acaba sendo o calcanhar de Aquiles da obra. Não que seja uma história paralela ruim, porém ela não é bem desenvolvida e se encerra de forma violenta demais, destoando do tom delicado do filme; talvez essa pequena história pudesse existir em outro filme, sozinha. Para rechear o roteiro de “Veneza” talvez fosse enriquecedor se conhecêssemos mais de nossas personagens: temos pinceladas sobre o passado de Rita (Dira Paes) e Jerusa (Danielle Winitts) e essas histórias poderiam ter mais tempo de tela, já que são duas personagens extremamente interessantes.
Além das questões estéticas e de roteiro, talvez a grande sustentação do filme se encontre nesse jogo de atores: Dira Pares, Du Moscovis, Carol Castro, Danielle Winitts e, claro, Carmen Maura, conseguem fazer um jogo de cena excelente. Carol Castro, inclusive, foi premiada como melhor atriz coadjuvante no Festival de Gramado de 2019 e no Los Angeles Brazilian Film Festival. Carmen Maura, a estrela internacional, está no seu espaço de conforto, ela sabe como fazer essas mulheres quase descompensadas e aqui ela lembra um pouco seus trabalhos ao lado de Álex de la Iglesia, com suas bruxas e mulheres cheias de mistérios.
De todo modo, o filme é mesmo de Dira Paes; sua química com Moscovis é surpreendente e a dignidade que ela coloca nessa personagem é encantadora. A forma como ela consegue dialogar tão bem com todas as outras atrizes, respeitando o tom e o tempo de cada uma é muito bonito de se ver. Dira é uma estrela de cinema e é interessante que ela seja praticamente a protagonista de um filme que traz em suas minúcias esse amor e essa reverência pelo cinema.
Pode ser que o público enxergue problemáticas aqui e acolá no filme, talvez outras leituras possam ser feitas, mas a sensação final é de deslumbramento, de alegria, aquela sensação que só essa magia do cinema consegue nos trazer. Nisso o filme de Falabella é extremamente eficaz, pois consegue homenagear tantas histórias que nos formam e consegue ainda assim nos emocionar com a beleza e com o que há de sublime nos sonhos mais simples. Para a divulgação do longa, Miguel falou a frase que melhor poderia definir esse filme e esse tempo que vivemos: “há momentos em que é preciso criar ilhas de sensibilidade em meio à barbárie”.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
adorei o filme, vi ontem após essa resenha. Concordo com quase tudo, só acho que a história paralela caiu bem, adicionando uma dramaticidade que equilibrou bem a trama…mas realmente, teve um fim abrupto.