entrevista por Leonardo Vinhas
2015, Bogotá. Quatro jovens colombianos pegam instrumentos típicos da carranga (música camponesa de seu país) e decidem levar um som. Só que o som sai roqueiro, muito roqueiro. E dá tão certo que gente do mundo inteiro começa a prestar atenção neles – alguns com o simples olhar do exotismo, outros com muita atenção.
Essa é uma versão bem resumida da história de Juan Diego Moreno (voz e guacharaca), Fernando Cely (requinto), Luis Guillermo González (violão e Jorge Mario Vinasco (tiple) – Los Rolling Ruanas, muito prazer. Tocavam tantos as canções regionais do Altiplano Cundiboyacense como o rock’n’roll, e um dia, com seus instrumentos folclóricos, mandaram os acordes de “A Hard Day’s Night” e viram que isso era bom.
A partir daí, não teve mais volta. Suas versões para “Paint It Black” (Rolling Stones) e “Toxicity” (System of a Down) somam milhões de visualizações no Youtube (assista aos dois vídeos no final do texto). Muita gente queria ver quem eram aqueles sujeitos vestidos com ruanas (a vestimenta rural colombiana por excelência) fazendo versões acústicas e extremamente vigorosas de hits roqueiros. Porém, o grupo foi muito além das versões e se estabeleceu com suas canções autorais e suas intensas apresentações ao vivo.
Em uma delas, no festival Rock Al Parque (em Bogotá) de 2017, Moreno disse que “o rock não está em crise. O que está em crise é o que as pessoas acham o que é ou não é rock”. Sábias palavras. Os Rolling Ruanas são definitivamente roqueiros, mas se sua leitura do gênero parou nos anos 1970 ou 1990, você certamente terá um choque ao ouvi-los. Basta dizer que eles tratam a carranga da mesma maneira que os argentinos Orquesta Típica Fernández Fierro tratam o tango. Ah, você não conhece a Fernández Fierro também? Dá um Google, queridx. Nunca foi tão fácil conhecer música nova.
E aproveita para fuçar em toda a discografia dos Rolling Ruanas, claro (eles estão com single novo, “Mario Miguel“, disponível). Mas antes de começar a ouvir a banda ou ler essa entrevista, vale saber que a banda deu a cara a tapa nas manifestações contra o governo colombiano. A banda tocou durante alguns protestos e manifestou seu apoio constantemente nas redes sociais. Mais do que “engajamento”, a banda assumiu a causa. E é por isso que o papo – com Guillermo González e Fernando Cely – começou justamente por aí.
Agradeço por vocês terem disposição de falar em meio a um momento tão difícil no país. E é por esse assunto duro que vamos começar: vocês tocaram em algumas manifestações, estão apoiando-as fortemente nas redes sociais, estão muito dedicados a isso. Como veem a situação toda? Quais as expectativas e os sentimentos que vocês estão vivendo?
Guillermo: Posso falar da minha experiência pessoal. Eu sou formado na universidade pública, então no meu processo de educação na música tive a oportunidade de participar de várias marchas com estudantes. Mas era muito diferente do que está acontecendo hoje em dia. É um momento tão conjuntural: vemos crianças, idosos… As marchas de que eu participava eram pelos direitos dos estudantes, questões que em dois dias se resolviam. Mas neste momento vemos que esta situação das pessoas nas ruas está chamando atenção para muitas coisas, e o governo está lidando com isso da maneira mais errada possível.
Fernando: Eu acho que a situação é delicada, porque digamos que eu também, depois de muitos anos vendo protestos, vejo agora uma inconformidade geral do povo colombiano com os dirigentes que têm cuidado do país ultimamente – e por ultimamente, eu me refiro aos últimos 200 anos (Guillermo ri). Mas digamos que o que torna mais grave toda a situação atual é que nunca havíamos visto policiais disparando nas pessoas à queima-roupa nos protestos. Isso está deixando muita gente deprimida, a ponto de virar um problema de saúde mental. A gente sabe que a Colômbia é um país que está em guerra há muitos anos nas zonas rurais, mas nunca havia sido tão presente nas cidades. Por isso não podemos deixar de falar sobre isso, de usar nossas redes para explicar de onde vem isso tudo e o que podemos fazer como sociedade, usando a música como uma ferramenta de transformação para as novas gerações, que são quem pode fazer com que isso mude algum dia. São pensamentos utópicos, mas por que não? Por que não sonhar com melhores decisões para que todos em Colômbia possam viver um pouco melhor? Especialmente os que sofreram mais, como os indígenas e as melhorias.
Então vamos nos aprofundar no papel da música de vocês nesse momento. Vocês têm sido muito participantes, e isso os coloca vulneráveis, pode até ser arriscado. Por que é tão importante para vocês marcarem isso?
Guillermo: Porque é graças às pessoas que Los Rolling Ruanas puderam chegar aonde estão. Independente de crença religiosa ou posição política, e de haver públicos de diferentes lugares, queremos falar com os campesinos e representar a zona rural, levar sempre uma mensagem de amor, compreensão e tolerância. Aqui na Colômbia nunca nos ensinaram a falar desses temas tão delicados e já entramos em aspectos mais complicados como a violência, os golpes, as armas e etc. Nunca pudemos debater sobre as diferenças que temos em política, e o que Los Rolling Ruanas querem é convidar a isso. Por isso estamos convidando as pessoas para as marchas e nós mesmos estamos participando quando podemos. Quando eu tinha 15 anos, um amigo do colégio foi assassinado em uma marcha e só 15 anos depois que o assunto teve uma solução. Então participar na primeira linha como violonista dos Rolling Ruanas é importante para mim. E também porque é uma chance de falar para outras pessoas, como estou fazendo agora, tendo a chance de falar para nossos irmãos brasileiros sobre o que acontece em nosso país há mais de 50 anos.
Fernando: Para complementar um pouco o que o Memo disse, também é palavra de ordem nos Rolling Ruanas lembrar às pessoas que um tomate, uma cebola, uma batata não crescem no supermercado, né? Existe uma pessoa que as cultiva com suas próprias mãos para que todos nós na cidade possamos comer, e isso é algo que muitos de nós nos esquecemos. Também se esqueceram do camponês, e a música dos Rolling Ruanas quer reivindicar o camponês e lembrar às pessoas seu sangue indígena também.
Esse é um papel que parecem assumir com naturalidade. Ainda que três de vocês sejam da capital (apenas Juan Mario é do interior), não é algo que vocês planejaram como estratégia. Essa identidade se formou naturalmente.
Guillermo: Bem, isso tem a ver com de onde viemos. Meus avós, bisavós e meus pais eram todos camponeses, e por uma ou outra razão – que foi a violência que se instalou no país a partir de 1948 – aconteceu de muitas famílias migrarem para a cidade (nota: Guillermo se refere ao período de quase 10 anos de conflito civil entre os apoiadores dos partidos Liberal e Conservador, que deixou mais de 175 mil mortos e forçou mais de dois milhões de colombianos a deixar o campo para viver em centros urbanos). Não havia mais oportunidades no campo. E foi aí que vieram pessoas como eu, por exemplo, que sou da cidade grande, mas tenho toda a família vindo do Departamento de Santander – uma parte do município de Vélez e outra de Oliva. Então é bonito ver que nós que estamos na cidade podemos mostrar às pessoas daqui de onde vêm a comida e até a água que temos aqui.
No aspecto musical, o quanto a questão folclórica limita vocês? Na ideia de manter essa instrumentação e resistir ao impulso de dizer: “ah, agora vou colocar um teclado aqui”?
Fernando: Digamos que no começo nós olhamos e dissemos: “olha, por aqui tem algo interessante”. Porque os instrumentos que usamos têm uma sonoridade muito particular, muito estranha. Pensamos como poderíamos evoluir esses instrumentos sem que percam sua raiz sonora. Testamos pedais, distorções bem suaves, chorus, delay, coisas que não existiam na música camponesa. Então trazemos um pouco desse rock, pensando em coisas que são comuns para alguém que toca com uma guitarra elétrica, mas que não são para quem toca um requinto ou um tiple, que são os instrumentos que nós usamos. Testamos pedais analógicos e vimos que não, não funcionava para esses instrumentos. Então fizemos uma exploração muito exaustiva, muito profunda, de quais processos que podem exaltar os instrumentos que temos sem mudar nossa sonoridade. E mais que uma prisão, isso funciona para levar os instrumentos até onde der. O fácil seria tocar uma guitarra elétrica. Mas o legal do nosso som é como fazemos para soar esses quatro instrumentos soarem gigantes. Em um festival todo mundo toca com baixo, bateria, e aí chegamos nós com uma guacharaca pequenininha (risos) e temos que fazer soar enorme, como uma banda de rock. Por isso nosso engenheiro de som é praticamente um quinto integrante da banda.
Guillermo: Eu sou baixista, mas faz mais ou menos uns três anos que toco esse instrumento que foi feito pelo maestro Orlando Pimentel, e é uma espécie de violão de sete cordas, como o do Brasil, com um baixo mais grave. Então eu trago essa experiência de tocar como baixista para esse instrumento. É como o Fer falou: explorar esses instrumentos vira uma questão pessoal! E assim, a cada dia surge uma nova música.
No Rock al Parque, Juan Diego disse que “o rock não está em crise. O que está em crise é o que as pessoas acham o que é e que não é rock”. Concordam com isso? (risos)
Fernando: Totalmente! Esse show do Rock al Parque foi muito especial para nós. Antes dele já vínhamos trabalhando muito, fazendo coisas, mas nesse dia, muita gente falava desse show: “por que convidaram Los Rolling Ruanas se eles não fazem rock?” Mas sempre consideramos o rock mais um estilo de vida que um gênero que pode ser catalogado. Baixo, guitarra e bateria é algo que qualquer banda pode ter, mas e a atitude? Pra mim, Hector Lavoe era a pessoa mais rock’n’roll do universo! E toda a banda dele: eram como uma banda de rock tocando salsa! E é assim que pensamos: a carranga é muito rock’n’roll! É contestadora, é do campo, nasceu como o rock e o bluegrass. São gêneros essencialmente anarquistas, libertários. E foi nesse dia, do festival, com a canção mais carranguera tinha gente fazendo pogo, enlouquecendo. Foi uma demonstração muito grande do que podíamos fazer. E a história dos Rolling Ruanas se divide em antes e depois desse dia, com as palavras que disse Juan. Daí por diante as pessoas começaram a pogar em nossos shows, já entenderam que podiam pogar, pular e brincar em nossos shows, não só dançar ou tomar cerveja como na carranga tradicional (risos).
Uma outra questão: em um primeiro momento, as versões foram muito importantes para promover a banda. Porém, me parece que agora elas já não são tão importantes, principalmente porque vocês estão estabelecidos como compositores.
Guillermo: Realmente, temos um amor inato por covers de diferentes estilos musicais. Em dezembro fizemos o lançamento de um disco de natal, com uma canção que fizemos para nossas avós e outras sete canções de Natal. Gostamos de fazer covers e os mantermos nos shows ao vivo. Mas queremos também continuar fazendo nossa música inédita. E logo mais sai nosso próximo disco de inéditas, feita com o coração no meio da pandemia.
Para finalizar: a música de vocês têm essa forte característica acústica e um cuidado grande com o som. Apesar disso, as pessoas provavelmente vão ouvi-la em dispositivos móveis. Isso incomoda de alguma maneira?
Fernando: Nada! Acredito que esse é o nosso trabalho! Se uma pessoa… Nós não podemos decidir como as pessoas escutam a música, e sinceramente não nos importa se temos que fazer vídeos no TikTok para que nossa mensagem chegue a mais pessoas. O que nós realmente queremos é que nossa mensagem da alma camponesa, da alma indígena, chegue a muitas pessoas. Se alguém vai escutar nosso disco em um celular, maravilhoso! Agora estou mixando o disco no estúdio da minha casa e estou fazendo de maneira que soe melhor no celular. Não há porque nos negarmos ao que está acontecendo. Preferimos ir, como dizem os gringos, go with the flow.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.