entrevista por Leonardo Vinhas
Astor Piazzolla está para o tango assim como John Coltrane está para o jazz. Ambos foram revolucionários, fizeram seus respectivos gêneros evoluir, e se não são o referente mais pop de seus universos musicais, certamente são os mais respeitados. Assim, revisitar a obra de qualquer um deles não é tarefa fácil. O placar já começa desfavorável pelo peso da obra original. Isso não intimidou a Tinto Tango, banda argentina baseada em Los Angeles, que acaba de lançar um álbum totalmente dedicado à obra do mestre argentino.
“Tinto Tango Plays Piazzolla” é um disco de homenagem, sim, mas não deixa de ser uma ousadia. Ainda mais quando se nota a presença de Rafa Sardina no comando da mesa. O produtor e engenheiro basco-americano tem uma carreira notabilizada por reforçar a sonoridade de artistas dados à grandiloquência e ao espetáculo, como Lady Gaga, Mariah Carey e Celine Dion. Por outro lado, também já trabalhou com Stevie Wonder, Dr. Dre e Ladysmith Black Mambazo, entre outros, dando a entender que o groove não passa longe de seu radar.
O álbum do quinteto argentino (que conta, no disco, com a participação de outros três músicos) transita entre esses dois mundos – nem sempre com sucesso, é preciso dizer. Em alguns momentos, as frequências altas e a produção “platinizada” roubam as sutilezas das composições de Piazzolla, enquanto em outras, percebe-se um bem-vindo aceno a uma sonoridade moderna. Mariano Dugatkin, bandeonista e diretor musical do Tinto Tango, não se esquivou das perguntas diretas que o Scream & Yell lhe fez e explicou, com gentileza e argumentos, a ousadia e as escolhas estéticas do disco de seu conjunto. Um papo cabeça e interessante, que você confere a seguir.
Tinto Tango sempre busca suas canções nos mestres do tango, e agora focou naquele que talvez seja o maior de todos, Astor Piazzolla. O que vocês pretendem somar à obra dele? Ou a ideia é mais uma homenagem mesmo?
Este disco representa um ponto de chegada para a gente. Vínhamos tocando a música de Piazzolla há nove anos, e com uma sonoridade consolidada, decidimos encarar a gravação do disco com o objetivo de deixar impressa nossa própria personalidade interpretativa. O que quero dizer com isto é que a ideia é apresentar a obra de Astor com nossa gestualidade, nossos traços, cuidando da expressão de sua música ao mesmo tempo que a tornamos nossa. Entre os elementos que agregamos, está a inclusão da bateria, por exemplo. Ainda que Astor tenha utilizada a percussão em muitas de suas diferentes formações, esse não foi um elemento que prevalece em seus quintetos. Em nossas versões, com o grande Oscar Giunta na bateria, conseguimos que a percussão não invada e que, ao mesmo tempo, cumpra um papel que vá além de remarcar, sublinhar o groove, conseguindo assim que ela se integre como mais uma voz do conjunto. Foi por isso que decidi somar a bateria só depois que tivéssemos terminado de gravar com o quinteto, para que ela não nos contagiasse nem se impusesse com seu papel habitual de hierarquizar o groove. Esse foi nosso jeito de cuidar para que mantivesse uma sonoridade mais camarista, com a qualidade íntima de gestualidades sutis. E para esclarecer: quando falo de gestualidade, me refiro aos traços expressivos, às mudanças de tempo, dinâmicas, caráter, a expressão em geral.
O tango se encontra hoje entre os gêneros que são mais reverentes aos clássicos. Quem busca inovar costuma recorrer à mistura com outros estilos, como as bandas de tango eletrônico, ou dar uma interpretação diferente, como a Orquesta Típica Fernandez Fierro. Onde o Tinto Tango se encontra nesse panorama?
[O compositor Arnold] Schöenberg se referia ao “novo” com o conceito de progresso, considerando que este devia ser o objetivo de toda investigação. Para ele, o novo seria imprevisível, e não significava a destruição do antigo, porque considerava que no passado se encontraria o germe do futuro. Por isso ele dava tanta relevância à tradição. Esse disco é um ponto de chegada, como eu disse, mas também representa um ponto de partida para novas criações. Temos intenção de gravar material próprio, todos os integrantes são compositores. Tivemos a necessidade de materializar nesses dois discos a obra de Piazzolla que costumamos executar em nossos concertos. “Tinto Tango plays Piazzolla” é o primeiro, o próximo álbum será editado no ano que vem.
O fato de estarem baseados nos EUA os coloca frente a um público para quem o tango é algo distante, diferente, curioso. Diante disso, o que vocês fazem para evitar a armadilha de se apresentar como “exóticos” ou “world music”?
Os Estados Unidos são um país muito grande e eclético. Ambas as costas – do Atlântico e do Pacífico – vivem realidades culturais muito diferentes do resto do país, e ainda assim, cada uma delas têm muita diversidade. Lamentavelmente, entre filmes e dança de salão, o americano médio continua vendo o tango de uma forma um tanto caricaturizada: o cara que leva a moça de uma forma um tanto quanto abrupta e exagerada de um lado pro outro na pista com uma rosa vermelha na boca… Ainda assim, existem aqueles que gostam de dançar o que aqui chamam de Argentine Tango, que levam isso como uma atividade mais séria, ainda que recreativa. São esses que chegam ao nosso tango. É muito bonito ver os gringos disfrutando das composições de [Juan] D’Arienzo e da velha guarda. Mas em relação à música de Astor, Piazzolla não entra nas festas, mas sim nas salas de concertos e no mundo do jazz. Ele conseguiu expandir os padrões tradicionais do tango, unindo o gênero com a música clássica, com a contemporânea, e também com o jazz. Então, para esse reduto cultural que gosta de ir a shows e festivais, a obra de Astor funciona e satisfaz a um grande leque de ouvintes, e consegue cada vez mais adeptos.
Contar com Rafa Sardina é uma busca consciente por estar mais perto do mainstream ou tem mais a ver com a engenharia de som característica dele? Ou os dois?
O motivo de termos nos aproximado de Rafa Sardina foi a necessidade de contar com uma pessoa experiente que pudesse nos ajudar com o rumo que queríamos tomar como grupo. Eu dou muito espaço para o diálogo, para o confronto de ideias a favor da construção e não para ver quem tem razão. Por isso valorizo ter por perto interlocutores válidos. Nessa situação complexa que nós, músicos, atravessamos em relação à indústria da música, contar com um interlocutor como Rafa Sardina foi e continua sendo um verdadeiro luxo. E digo isto em relação às múltiplas capacidades e virtudes que ele tem, tanto do ponto de vista acadêmico como da experiência no ramo.
O disco tem um som “cheio”, bem adequado para a compressão de áudio das plataformas de streaming. Ainda assim, o tango traz uma audiofilia analógica. Mudar para esse padrão de registro mais moderno é uma mudança necessária para as novas gravações do gênero, ou é apenas a opção estética escolhida para o álbum?
A sonoridade final é um dos elementos que fazem parte da nossa interpretação e da nossa gestualidade. Para a mixagem desse disco eu convoquei Mariano Bilinkis, que é um engenheiro de som talentosíssimo, com a particularidade de ser especializado em rock. Ele gravou e mixou [as bandas argentinas] Las Pelotas, Catupecu Machu, Divididos, entre vários outros. Por isso, quando encarei a mixagem, falei com ele sobre estas qualidades da obra de Astor que mencionava antes: que Piazzolla construiu pontes entre o tango e a música clássica, a música contemporânea, o jazz e a canção. Diante desse combo todo de estilos, a intenção era que ao final chegássemos a uma proposta de áudio próxima do jazz, porém com uma pincelada roqueira.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.