texto por Luciano Ferreira
Para alguns, o mar é apenas… o mar. Um elemento da natureza. Uma enorme quantidade de água salgada em movimento. Para quem traz a poesia dentro de si, o mar tem significados diversos, o seu sal é mais do que o gosto do sal, seus movimentos de subidas e descidas das marés inspiram metáforas e alegorias; a antítese de fúria calmaria é mais do que mudança de movimentos, mas uma mudança de humores; e sua imensidão pode, dentre outras coisas, lembrar o quão efêmera é a nossa existência.
Esse mar que tanto inspira surge como conceito para “Porto” (2020), álbum de estreia do trio santista Amphères, que em 2018 já havia lançado o bonito EP “Dança” e levantado expectativas em relação aos próximos passos do proeminente grupo na cena alternativa nacional.
Muito do que se constituiu nas qualidades de “Dança” segue intacto, a grande mudança é que em “Porto” a baixista Paula Martins assume o comando das quatro faixas que possuem vocal. As outras cinco restantes são instrumentais e seguem pelos mesmos caminhos outrora apresentados, logo não trazendo aquela surpresa atraente que nos magnetizou em 2018 pela riqueza de timbres e dinâmicas. Ainda assim, está tudo aqui: o instrumental meticuloso, a densidade dos graves que dialoga com perfeição a bateria, o trabalho minucioso de guitarras, agora com mais ambientações e texturas.
Ao longo desse “Porto” que encanta desde a capa – criação do artista e designer Marcos Guinoza –, uma das mais belas do ano passado, “Amphères” conduz por uma travessia que, tal qual as vicissitudes do mar, consola e arrebata com a mesma fúria, através de temas que se ligam e combinam, mesmo quando aparentemente desconectados.
Por um ou outro momento, a longa suíte que o álbum parece se constituir, dada a conexão entre as faixas e o ritmo cadenciado que percorre quase todas, tem sua quebra musical no aumento dos BPM’s de “Densa”, com uma linha de baixo circularmente hipnotizante e uma trama de guitarras que alterna texturas melódicas e camadas distorcidas; e na infelizmente curta “Ursa Maior”, em que os dedilhados repletos de saudosismo remete aos trabalhos de Vini Reilly e encerram o disco. Antes do encerramento há que se fazer a “Travessia” por “Marés Altas e Baixas”, transpor a neblina “Densa” e chegar à praia com a ajuda do “Farol”.
No que diz respeito ao tema inicial, “Fosfenos”, que é sensação de ver estrelas quando coçamos os olhos, surge como uma suposta quebra do conceito, mas também tem seus significados. E, sim, “Ursa Maior” também se liga aos aspectos marítimos, a constelação ajuda os navegantes a se localizarem.
“Porto” traz um lado poético em todo o seu conceito, enquanto musicalmente se aproxima de estruturas características do post-rock, com canções longas e instrumentais que sobem e descem, e mantém elementos do indie-rock por perto. Os vocais surgem em sussurros quase hipnóticos, como um canto de sereia, mixados num nível mais baixo que o comum, adicionado assim como um instrumento a mais da canção.
Atraque-se neste “Porto” e contemple o mar.
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.