entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
No outono de 2019, quando já tinha 12 canções compostas e escritas para entrarem no seu álbum de estreia, Beatriz Pessoa resolveu viajar uns meses. A cantautora lisboeta escolheu Nova York, pelo fascínio que a cidade exerce em si e pela possibilidade de revisitar a cena jazzística local. Para além da visita nova-iorquina, Beatriz também se deslocou ao Rio de Janeiro, que a cativa e influencia culturalmente. Ao longo da temporada carioca (que era para ter durado um mês), Beatriz Pessoa revelou uma disponibilidade total para assimilar e desfrutar do cenário artístico do Rio, tendo assistido a jam sessions e rodas de samba, entre outras atividades.
Passado algum tempo, encontrou-se com os músicos brasileiros Pablo Arruda (baixo) e Pedro Fonte (bateria), da banda do compositor Rubel, e Danilo Andrade (tecladista de Gilberto Gil). O interesse deles pelo trabalho, a forma como tocaram e a nova roupagem que deram a suas canções agradou a Beatriz. Em função do bom ambiente e da qualidade sonora, a artista lisboeta decidiu ficar mais tempo e aceitou a sugestão dos músicos para gravar o seu disco de estreia no Rio. “Primaveras” foi registrado em janeiro de 2020 no Carolina Estúdio, em Santa Teresa, e produzido pela própria artista.
De forma global, o álbum traduz o clima descontraído das gravações e a influência musical brasileira. As canções, que foram escritas ao longo de dois anos, exibem um frescor pop apreciável (dando continuidade à tendência verificada no EP “II”, de 2018) e abordam a temática do amor com honestidade e otimismo. A colorida “Elefante da Sorte” é um dos bons momentos do disco, tal como a agradável “Dueto” (em parceria com Cícero), e a delicadeza acústica de “Nós” mostra o lado confessional de Beatriz. No entanto, a pegada dançante de “Fala com Deus”, um tema que a autora descreve como “Um grito da mulher sobre a sua sexualidade e da vontade feminina de ter relações casuais”, exibe um tom mais revolucionário e menos ingênuo do que as restantes composições.
Outra das novidades do trabalho foi o convite que o amigo Gus Levy (um dos diretores do Carolina Estúdio e que tocou guitarra em algumas músicas do álbum) lançou a Beatriz Pessoa, no sentido de cantar as suas músicas com sotaque brasileiro, algo que se concretizou integralmente na faixa-título e no trecho final do single “Elefante da Sorte”. Para a artista, o processo foi divertido e revelador. “Gostei imenso da experiência. A abertura das vogais traz uma leveza enorme às palavras, mas tive de criar um alter-ego (Camila), porque não me reconhecia. Julgo que ganhei uma rouquidão nos registros mais graves e o agudo ficou mais ténue e sutil”, explica.
O disco só seria lançado recentemente (em fevereiro de 2021) e implicou da parte de Beatriz pragmatismo na gestão do tempo de espera, devido à pandemia, e contar com o apoio dos amigos e colegas. “Senti que tinha feito um álbum com empenho e do qual me orgulhava, mas não me deixei levar pela frustração nem o lancei numa má altura. Esse aspecto e o fato de ter falado com amigos e músicos que viviam a mesma situação também me ajudou a tomar as melhores decisões”, conta.
No final do ano passado, a cantautora lisboeta apresentou os “Serões de Primavera em Novembro”, no Teatro Maria Matos (Lisboa), reunindo as canções do seu álbum de estreia, “Primaveras”, e conversas com o músico Salvador Sobral e a humorista Beatriz Gosta dedicadas ao medo e à sexualidade feminina. “Tive os melhores convidados possíveis, porque tanto o Salvador como a Beatriz deixaram-me muito confortáveis e a conversa fluiu, gerando momentos bastante interessantes para o público. O show também foi muito especial. Apresentei os temas novos e algumas faixas antigas e o Salvador cantou uma música dele”, recorda.
Confiando plenamente nas suas opções musicais e determinada em dar o melhor seguimento ao trabalho que realizou no Rio de Janeiro, Beatriz termina revelando uma novidade: “Inicialmente, o meu disco tinha 12 músicas e eu gravei cinco canções com sotaque carioca. Posso-lhe dizer que quatro dessas faixas sairão num EP que vai ser editado por ocasião da tour brasileira que pretendo realizar brevemente”. De Lisboa para o Brasil, Beatriz Pessoa conversou com o Scream & Yell. Confira:
O título do seu disco de estreia, “Primaveras”, parece sugerir uma ideia de recomeço amoroso. Foi esse pensamento que determinou o nome do álbum?
No disco existem muitas canções abordando esse aspecto que você referiu e eu gosto que seja transversal e não esteja ligado apenas a uma relação amorosa, mas que atravesse todo o tipo de laços humanos. Considero que advém muito da ideia de recomeço e, especialmente, do florescer de alguma coisa. Eu não aprecio a frase “renascer das cinzas”, mas acho que relaciona-se com isso. Desde sempre que gosto de flores, da primavera e de tudo o que está associado com essa estação. Quando estava a recolher as canções para fazer o álbum senti que cada tema era um começo novo. A partir daí surgiu a ideia das várias primaveras (que são sempre recomeços) e da perspectiva de ver algo bonito no fim das coisas. O fim pode ser tão lindo como o princípio. Trata-se da premissa para este disco e é um ideal que eu tento viver. Identifico-me com essa forma de ver a realidade.
As gravações no Carolina Estúdio, em Santa Teresa, com os músicos brasileiros que participaram no seu disco, foram reveladoras para si?
Tratou-se da primeira vez, enquanto produtora, em que eu estava muito confiante relativamente ao que queria e às minhas decisões musicais. Foi super-bonito ver e colaborar com um grupo de músicos que estavam completamente disponíveis para me escutar, seguir as minhas indicações e confiar plenamente no meu trabalho e na capacidade para o fazer. Isso tornou a minha estadia no Rio de Janeiro numa experiência fantástica. Por isso, senti-me muito à vontade. Tanto o Pablo Arruda, como o Pedro Fonte, o Danilo Andrade e o Gus Levy são músicos com mais estrada do que eu e tocam com artistas como o Gilberto Gil, a Céu e o Rubel e têm outras colaborações importantes. Eles deram-me liberdade criativa, nunca duvidaram de mim e fizeram sugestões que às vezes funcionavam e outras não e essa confiança proporcionou uma aprendizagem muito feliz. Aqui em Lisboa, os músicos com quem eu trabalho são pessoas de formação acadêmica parecida com a minha: vieram do jazz e seguiram outros caminhos. Foi muito interessante gravar o meu primeiro disco com artistas que não tinham nada a ver com essa área, ou seja, pessoal que sempre estudou MPB, hip-hop e a adaptação desse universo às minhas canções revelou-se fascinante. Eles são pessoas extraordinárias e como músicos são incríveis. O pessoal do Rio de Janeiro tem uma abertura gigante e a maneira deles abordarem os temas é muito leve. Este tempo que passei no Rio foi mesmo bom.
Gostei da faixa “Dueto” e da forma como a sua voz e a de Cícero se entrosaram tão bem. Como surgiu esta parceria?
Eu conheci o Cícero em Lisboa porque ele viveu aqui quatro meses, em 2019. Tudo começou quando fui ver um show dele no Cine Teatro Capitólio. Na altura, nós trabalhávamos com o mesmo manager em Portugal. Inicialmente, encontrei-me com ele nos bastidores. Depois disso, falamos várias vezes e eu propus-lhe uma colaboração. O Cícero mostrou-se totalmente interessado, trocamos números de telefone, começamos a sair juntos em Lisboa e eu levei-o a jam sessions e fomos ao Tejo Bar. Mais tarde, convidou-me para fazer vozes numa música sua (“Falso Azul”) e nessa altura aproveitei e mostrei-lhe “Dueto”, que adorou, e disse-me que ia participar na canção. Tivemos uma reunião muito engraçada para corrigir o português de Portugal para português do Brasil e as letras do Cícero também ficaram bastante diferentes. Houve várias modificações, porque existiam palavras que nem eu nem ele tínhamos a noção que seriam tão distintas.
A Beatriz realizou e produziu o clipe de “Elefante da Sorte”. Gostou da experiência?
Gostei da experiência, porque foi uma vitória, já que eu sou péssima com tecnologias (risos). Fiquei contente com o resultado final, uma vez que o vídeo foi feito quando estávamos completamente fechados em casa (durante o primeiro confinamento em Portugal, março de 2020) e eu queria lançar o single naquela altura. É um clipe que reflete um momento particular das nossas vidas, no qual estamos fechados em casa e sonhamos com aquilo que já vivemos e as viagens que fizemos. O vídeo consta de imagens filmadas enquanto eu viajava e de mim em casa. Acho que transparece muito do que se viveu então, por causa da pandemia, e do que continua a ser vivido. Agrada-me verificar que o meu álbum tem um pouco desse reflexo, porque foi feito antes do surto, mas nasceu durante esse período. Fiquei igualmente satisfeita pelo fato de “Elefante da Sorte” espelhar a vida de toda a gente e a minha também. O tema é otimista, porque essa é a visão que tenho da vida. Claro que existem coisas duras e cruas na vida, mas considero que tudo passa. Acredito nisso e tenho perfeita noção que é um privilégio meu e das pessoas à minha volta. Gosto de ver uma luz nas circunstâncias mais negras e acho mesmo que trazemos essa claridade para a nossa existência. Se formos positivos e continuarmos a fazer aquilo que está certo é melhor para todos. A vida evolui e, no caso de uma relação amorosa, o amor pode-se transformar em outros aspectos igualmente bonitos. A faixa “Elefante da Sorte” está relacionada com as saudades do que já passou, mas aceitando que há esperança num novo princípio seja ele qual for.
No momento, você está a preparar o espetáculo ao vivo do álbum “Primaveras”. Podia-me falar um pouco sobre esses shows?
Os primeiros concertos que vou fazer serão na Espanha, no final de março. A preparação do espetáculo ao vivo do álbum “Primaveras” vai incluir vários formatos. Eu tenho que preparar uma apresentação em duo (acompanhada pelo tecladista Guilherme Salgueiro) e depois com a banda completa. Com o grupo, temos alguns shows marcados para outubro, mas o resto ainda está por decidir. No dia 10 de abril vou tocar em duo na cidade de Guimarães e antes farei os shows na Espanha, solo. Os meus ensaios para essas atuações têm sido no sentido de dar uma ideia fiel das canções do disco. Depois, em duo e com a banda, já terei um som mais característico do álbum. Existem coisas positivas que resultam de tocar nas outras formas, mas atuar com um grupo é mais confortável, tendo em conta o disco que é. Tanto a banda de Portugal como a que eu tenho no Rio são músicos sensacionais e amigos com quem me divirto sempre em palco e tenho bastantes saudades desses momentos. No Teatro Maria Matos, recentemente, pude revisitar essas emoções e foi uma sensação muito boa.
Planeja futuramente voltar a gravar no Brasil?
Obviamente que sim. Gostaria bastante de continuar a trabalhar com músicos brasileiros e de voltar a gravar lá, porque foi uma experiência magnífica e muito importante para mim. O disco reflete tudo o que senti e passei nesses seis meses em que vivi no Rio de Janeiro. A minha mensagem para o público brasileiro e para o Scream & Yell é de lhes mandar muita força e o meu voto de coragem. Eu vivi um pouco da pandemia no Brasil e fico chocada com a falta de responsabilidade cívica que o Governo brasileiro está a ter neste momento. Sou uma pessoa pouco dada à política mas, enquanto artista, apelo para que as pessoas se protejam o mais possível e respeitem as medidas que a pandemia obriga a seguir. Para além disso, quero agradecer ao povo brasileiro pelo acolhimento que tive no Rio e em São Paulo. Eu recebo mensagens lindas de fãs brasileiros, tanto no Instagram como no Facebook, e a maneira como eles escutam a música é inspiradora. Quando penso em parcerias que adorava fazer vêm-me logo à cabeça o Caetano Veloso, o Gilberto Gil e os filhos do Caetano, porque são todos incríveis. Adoro a Céu e a Gal Costa também. Amo a música do Brasil e acho que devo ter um pilar ou costela brasileira (sorrisos).
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Cristiana Morais.
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