entrevista por João Paulo Barreto
Filmes pornográficos (ou adultos, como queira chamá-los) trazem em si um estigma difícil de ser superado. Condenados por muitas pessoas como uma espécie de banda podre da indústria que produz entretenimento, o cinema pornô é um mercado que movimenta interesses, fantasias, libidos e muito dinheiro. Sim, há, claro, uma banda podre ligada à misoginia e ao machismo. Mas observar o modo como a atração por esse tipo de consumo atua em diversos gêneros e orientações sexuais é algo fascinante de se notar e se propor a discutir. “Hard”, minissérie cujos novos episódios acabam de ser disponibilizados na grade da HBO, tem neste norte exatamente a sua proposta. Com direção geral de Rodrigo Meirelles (“Som & Fúria”), e elenco com nomes como Natalia Lage e Fernando Alves Pinto, a produção brasileira leva à sua audiência a reflexão de observar, sem preconceitos e falso moralismo, esse mercado que atrai muitos olhares de julgamento, hipocrisias rasas e curiosidades veladas.
Na história, baseada em uma série francesa de mesmo nome, Sofia (Natalia Lage), advogada não atuante, dona de casa de classe alta e elitista, descobre que o conforto e luxo de sua vida não são bancados pela empresa de tecnologia que seu finado marido vendia como fachada, mas, sim, com rentáveis filmes adultos realizados por sua produtora, a Sofix. Após a morte acidental do “conge” , ela precisa sair de seu casulo de mãe “bela, recatada e do lar” e descobre-se capaz de encarar seus próprios preconceitos e precipitado auto-julgamento como alguém incompetente naquele ramo. É quando Sofia passa a tocar a produtora, fazendo-a se reinventar não mais como um local de gravação de filmes pornôs, mas, sim, como um “parque de diversão” para quem quer realizar, com privacidade, segurança e respeito, suas fantasias sexuais.
Fernando Alves Pinto, que interpreta o espalhafatoso e adorável Pierre, competente diretor dos filmes pornôs, e que precisa, ele mesmo, se adaptar aos novos desafios de um mercado que, com a internet, precisou se reinventar, traz uma observação direta sobre as contradições de uma sociedade que prega esse falso-moralismo em estranhos dias atuais.”As contradições são gritantes. Mas uma coisa que eu acho muito legal da série, do potencial dela, é que ela questiona isso. A Sofia chega lá e tenta mudar a pornografia masculina, que é uma coisa meio engessada, meio antiga e, enfim, tem todas as coisas apodrecidas do machismo . E ela questiona isso”, pontua o ator, que, em sua construção física, remete muito a Jack Horner, personagem de Burt Reynolds em Boogie Nights”, clássico dirigido por Paul Thomas Anderson em 1997.
De maneira direta, ao colocar a personagem de Sofia em momentos de autoquestionamentos, e, do mesmo modo, de encontro a julgamentos absurdos vindo de pretendentes acerca daquela sua nova profissão, “Hard” traz para sua audiência mais oportunidades de se observar as hipocrisias diárias que nos rodeiam nesse Brasil esquisito no qual vivemos atualmente. Rodrigo Meirelles contextualiza: “Nós filmamos a série antes desse momento todo que estamos vivendo. Filmamos os 18 episódios que foram produzidos em 2018. Então, ela é anterior a todo esse momento. E só falando um pouco desse momento, estamos aqui para falar de ‘Hard’, mas eu acho que o Brasil é o reino encantado das contradições. Porque, você olha e, assim, uma das atrizes pornográficas mais conhecidas do Brasil, sem citar o nome dela, é bolsonarista, entendeu? Ela é pró-governo. Então, esse conservadorismo falso é uma loucura. O Brasil é o país das contradições. Tem um universo dentro da pornografia de atores pornô que são pró governo, que é esse falso moralismo. É um balaio de gato. Eu não consigo entender mais nada”, pontua.
Desde os primórdios do cinema (para usar uma expressão clichê), o sexo, o desejo e a libido são abordados de algum modo. O primeiro filme pornográfico, por exemplo, data de 1896. Trata-se de “Coucher de la Mariée”, produção francesa filmada um ano após os Lumière apresentarem sua invenção em Paris. “A pornografia está dentro do instinto humano. A primeira câmera de cinema que foi criada, foram lá e fizeram um filme pornográfico. A primeira câmera fotográfica que foi criada, foram lá e retrataram a nudez, o erotismo. Isso é inerente ao ser humano. Então, eu acho que a questão aí é melhorar o que é feito. Tentar censurar ou acabar, e tudo mais, é uma utopia. É uma guerra perdida”, declara Rodrigo.
Fernando Alves Pinto complementa trazendo a questão da libido e do desejo sexual como algo que faz parte, como pontuou Meirelles, da natureza humana. Mas alerta exatamente para o que foi colocado acerca do que deve ser, de fato, condenado no aspecto machista e misógino dessa indústria que “Hard” traz como análise. “A energia sexual é o que tem de mais forte. É a energia mais forte que o ser humano tem. É a energia que cria uma outra vida. Então, ela fazer parte de uma arte, não tem nada de errado. Só que tem aquilo que faz ficar uma coisa meio podre do machismo. É isso que tem que ser quebrado. É isso que tem que ser questionado. (Questionar) o lado podre de uma pornografia e trazer uma coisa mais saudável na pornografia e no erotismo”, finaliza o ator. Nesta entrevista ao Scream & Yell, Fernando e Rodrigo falam mais acerca dessas impressões sobre o universo da pornografia e abordam a construção de “Hard”. Confira o papo!
Fernando, você interpreta na série o personagem do Pierre, um experiente diretor de filmes adultos, com um domínio completo de set, dando as instruções exatas para seu elenco. Rodrigo, você é o diretor de “Hard”, alguém que, exatamente, é o diretor daquele set e precisa ter esse mesmo domínio. Houve alguma figurinha trocada entre você e Fernando no modo como Pierre, um diretor, deveria ser construído?
Fernando Alves Pinto – Eu ficava olhando para o Rodrigo para captar. Claro, a gente está sempre meio que observando. Mas era sempre engraçado. Uma vez ele me fez sentar lá e falou: (com a voz empostada) “E aí, diretor? Como é que tá? Está gostando da cena?” Ele perguntava para mim (risos). Então, sempre tem essa troca. A gente vive disso. Vive de ficar vendo como as coisas acontecem realmente para poder colocar essas coisas na ficção. Mas foi divertido.
Rodrigo Meirelles – Acho que o Fernando já trabalhou com muito diretor na vida dele. Então acho que ele tem aí muito elemento para trazer para esse personagem. E é sempre muito divertido para o ator poder brincar com o próprio universo, com o próprio cotidiano da vida que ele vive.
Fernando Alves Pinto – Ele brincava dizendo que eu era o alter-ego (risos).
Rodrigo Meirelles – (risos) Eu dizia que não tinha nada a ver com isso. Não sou esse pavão no set, essa coisa do Pierre. Sou super low-profile. (risos). Fico na minha. Mas a gente se divertia muito nessa troca, nessa brincadeira. Acho que “Hard” tem essa característica. Foi uma minissérie muito divertida de se fazer para todo mundo que participou. Apesar de toda a nudez, de muita cena de sexo, que filmamos, a gente conseguiu criar um set leve, um lugar agradável. Acho que a produção foi muito bem feita no sentido tanto financeiro quanto de programação, de planejamento. A gente nunca estava se atropelando. Não tinha gritaria, o ambiente era sempre muito leve, muito divertido. Acho que isso reflete bem no produto final que fizemos.
Fernando Alves Pinto – É verdade. Atesto tudo isso. Era muito divertido. A direção de arte muito legal também. Acabamos ficando amigos e se divertindo. Enfim, a equipe inteira foi muito legal.
Rodrigo, você citou o Pierre como esse personagem pavão, com aqueles trejeitos e aquela postura singulares. Queria aproveitar essa descrição para perguntar a você e ao Fernando sobre as referências desse personagem. Não vi a versão francesa. Não pude comparar. Mas ele me lembra, tanto nas vestimentas, óculos, barba, o Jack Horner, personagem do Burt Reynolds em “Boogie Nights”, do Paul Thomas Anderson. Em quanto o filme de 1997 influenciou na escrita do personagem (e da série), bem como em sua construção na atuação?
Fernando Alves Pinto – Acho que o Rodrigo mesmo quem indicou essa referência do “Boogie Nights”. Agora, a série original francesa eu não vi, também. Então não sei como era o Pierre francês. Mas é muito divertido o Pierre ser esse pavão que o Rodrigo falou. Aquela tatuagem que ele tem aqui no pescoço, subindo assim. E que tem todo um mistério dele ali atrás. (Voz empostada) “Que só nos últimos episódios saberemos o que tem ali atrás” (risos). Era muito divertido. E é muito divertido isso que o Rodrigo falou: já trabalhei com muitos diretores. Todos eles muito diferentes. Enfim, o ser humano são milhões de espécies completamente diferentes. Então, já passei por tanto tipo de diretor, e pegar o pavonismo deles, e tudo o que eu lembrava, e mais essa referência do “Boogie Nights” foi fazendo ficar ainda mais divertido.
Rodrigo Meirelles – Trazendo um pouco o Pierre original, eu acho que essa foi uma grande adaptação que fizemos para a minissérie brasileira. O Pierre original era um clichêzão do diretor pornográfico. Ele era um cara mais velho, gordão, super mal educado…
Fernando Alves Pinto – h, é mesmo. É verdade!
Rodrigo Meirelles – Um cara bem nojentão, sabe? Ele tinha uma coisa assim que eu achava uma fragilidade do personagem no sentido de que ele é o antagonista da Sofia. Na transformação da Sofia. Na transformação que a Sofia quer trazer para a pornografia da Sofix. E ele era um personagem muito facilmente odiável. Você odiava aquele cara muito facilmente. Você ficava muito do lado da Sofia vendo a versão francesa. É muito fácil para o protagonista quando você tem um antagonista com essas características tão clichês e tão detestável. Então, o que a gente tentou fazer foi trazer um Pierre mais legal, mais divertido. Que ele se transforme em um rival mais interessante para a Sofia. Porque ele é um cara que é adorado por todo mundo na produtora. Ele é um cara divertido, bom de papo, sedutor. Ele tem essas características e isso torna mais difícil ainda para a Sofia lutar contra os princípios desse cara. Os princípios da pornografia tradicional. É mais difícil para ela. O personagem do Pierre ser mais adorável do que ele ser tão escrotão como ele era originalmente enriquece mais a série. “Escrotão” é uma palavra horrível para usar em uma entrevista.
Fernando Alves Pinto – (risos) Esse detalhe acho legal. A série (francesa) não foi chamada como referência para construirmos aquilo. O que a gente ouvia falar da versão francesa não parecia assim… (pausa). Não dava vontade de assistir. Então, foi muito mais legal criar com as referências que nos eram dadas, e o que a direção trazia para a gente. Pelo pouco que ouvi falar da série francesa, dramaturgicamente, ficou muito diferente. Não é?
Rodrigo Meirelles – Sim. A série francesa tem uma característica muito de TV aberta. Uma TV aberta mais antiga. No sentido de uma série toda produzida dentro de um estúdio. É tudo muito farsesco. O universo da pornografia é muito mais fantasioso, mais clichê. Mais caricato, digamos assim. Eles fazem uma caricatura mais profunda tanto do universo pornográfico quanto dessa personagem principal que é a Sofia. A Sofia original é uma carola, uma mulher super católica, cujo melhor amigo é um padre. E ela fica o tempo inteiro nessa questão católica da relação com a pornografia. A gente derrubou tudo isso. Tentamos trazer um pouco mais de verdade para a série. Criar, realmente, uma série mais cinematográfica. Você mencionou o “Boogie Nights”, enfim, esse filme sempre foi uma referência para todo mundo. Porque é um dos melhores filmes feitos sobre esse universo pornográfico tratando esse universo com muito respeito. É muito fácil fazer piada clichê da coisa. Ridicularizar o mundo pornográfico. A gente tentou evitar muito isso. Nossa piada, nosso humor, a gente busca nesse conflito desse universo que vem de uma classe média alta. Uma classe média conservadora, tradicional, entrando nesse universo. É outra classe social das pessoas que interagem nesse mundo. São outros tipos de relações e tudo mais. Tentamos deixá-la menos televisa e mais cinematográfica, digamos assim. Fazer outro tipo de comédia. Não uma comédia de escracho, mas uma comédia mais sutil com os elementos que a gente tinha.
Você falou sobre a personagem da Sofia na versão europeia como sendo uma mulher carola, profundamente religiosa, cujo melhor amigo é um padre. Isso me faz observar “Hard” como uma oportunidade para a audiência refletir acerca desse falso conservadorismo que nos invadiu em tempos recentes, aqui no Brasil. Ao assistir aos capítulos da série, eu ficava pensando sobre essa proposta de reflexão que ela traz. Não somente para essa posição falsa e conservadora de alguns, mas como uma maneira de abordar algo inerente ao ser humano, que é a libido, o desejo sexual.
Rodrigo Meirelles – Acho que sim. O retorno que tive um pouco desses primeiros episódios que foram exibidos foi muito em relação a isso. Pessoas mais velhas, de outras gerações, conseguiram assistir aos episódios e se divertir, acompanhar a história da Sofia sem um olhar preconceituoso em cima daquele universo. Nós filmamos a série antes desse momento todo que a gente está vivendo. Filmamos os 18 episódios que foram produzidos em 2018. Então, ela é anterior a todo esse momento que estamos vivendo. E só falando um pouco desse momento, a gente está aqui para falar de “Hard”, mas acho que o Brasil é o reino encantado das contradições. Porque uma das atrizes pornográficas mais conhecidas do Brasil, sem citar nomes, é bolsonarista, entendeu? Ela é pró-governo. Esse conservadorismo falso é uma loucura. O Brasil é o país das contradições. Tem um universo dentro da pornografia de atores pornô que são pró governo que é falso moralismo. É um balaio de gato. Não consigo entender mais nada.
Fernando Alves Pinto – É maravilhoso você ter falado isso. Realmente, as contradições são gritantes. Mas uma coisa que acho muito legal da série, do potencial dela, é que ela questiona isso. Do legal da Sofia chegar lá e tentar mudar a pornografia masculina, que é uma coisa meio engessada, meio antiga e, enfim, com todas as coisas apodrecidas do machismo. Ela questiona isso. A energia sexual é o que existe de mais forte. É a energia mais forte que o ser humano tem. É a energia que cria uma outra vida. Então, ela fazer parte de uma arte, não tem nada de errado. Só que tem o que faz ficar uma coisa meio podre. É isso que tem que ser quebrado. É isso que tem que ser questionado. (Questionar) o lado podre de uma pornografia e trazer uma coisa mais saudável na pornografia e no erotismo. Enfim, é isso que acho mais legal nessa série. Ela já quebrar esses preconceitos todos. Só em quebrar preconceitos já é muito saudável. Não sei se falei direito, mas deu para entender.
Rodrigo Meirelles – Não, você falou sim. É isso. Ela questiona assim como o espectador questiona. O espectador está acompanhando a série junto com a Sofia. O espectador médio que assiste a uma série na HBO, que tem acesso a isso, ele tá ali meio que no mesmo lugar que a Sofia. Então, ele olha para aquele universo com muito preconceito. E assim como o da Sofia vai ser quebrado, vai sendo desafiado, acho que o do espectador, também. Então, a entrada dela no universo da Sofia é junto com o espectador dentro desse universo. Acho que tudo que o Fernando falou faz muito sentido. Enfim, como você mesmo defendeu, João, quando se coloca a pornografia dentro disso, hoje em dia lê-se muita crítica a respeito da pornografia. A pornografia é isso, é aquilo. Como o Fernando falou, existe a parte podre da pornografia. Então, quando se faz uma crítica à pornografia como um todo, é como você fazer uma crítica à política como um todo. A gente está vivendo um momento seríssimo no Brasil. Temos uma banda podre da política. Mas a gente não pode demonizar a política como um todo. Assim como na pornografia. A pornografia está dentro do instinto humano. A primeira câmera de cinema que foi criada foram lá e fizeram um filme pornográfico (N.E. O cineasta se refere ao filme francês “Coucher de la mariée”, de 1896, considerando o primeiro registro do cinema pornográfico). A primeira câmera fotográfica que foi criada foram lá e retrataram a nudez, o erotismo. Isso é inerente ao ser humano. A questão é melhorar o que é feito. Tentar censurar ou acabar e tudo mais é uma utopia. É uma guerra perdida.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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