entrevista por João Paulo Barreto
“Inabitável”, curta dirigido por Enock Carvalho e Matheus Farias, e selecionado para a edição 2021 do Sundance Festival tem em sua urgência uma análise de um Brasil de acordo com o título da obra. Trata-se de um filme com uma mensagem direta sobre esse país que se tornou inabitável para muitas pessoas. Um Brasil no qual, abertamente, um então candidato a chefe do Executivo fala que “as minorias têm que se curvar às maiorias. Ou as minorias se adéquam ou simplesmente desapareçam”. E consegue se eleger com esse discurso. “Inabitável” é uma obra que nos mostra essa fuga urgente de um país que parece ter perdido sua humanidade. No filme, Marilene, mãe vivida por Luciana Souza, busca por sua filha Roberta, mulher trans desaparecida. Nos caminhos percorridos por Marilene diante daquele desespero interno, a angústia se torna evidente. Angústia por conhecer o mundo que a cerca. Desespero por já estar calejada de uma sociedade mesquinha que parece ter se tornado doente. “É uma sociedade adoecida por não conseguir ver o próximo, não conseguir olhar para o lado. Não conseguir ter empatia e compaixão e, de fato, eu acho que é uma falha social. Isso é uma falha do ser coletivo, mas que não aprendeu a ser coletivo. Eu acho que quando as pessoas elegem políticos que são nocivos, que são ameaças, elas não têm, de fato, essa noção. Algumas têm, mas a maioria delas não tem noção do que eles podem ser capazes. E eles podem matar permitindo que pessoas morram. Eles podem matar deixando uma parcela da sociedade descoberta de leis que protejam seus territórios, que protejam seus direitos. E isso é matar. E você está colocando essas pessoas no poder. Você está votando por elas. Você está elegendo e endossando discursos. E o discurso de direita está muito atrelado ao racismo, ao fascismo, à homofobia”, alerta Enock Carvalho em nossa conversa.
Em seu filme, os diretores e roteiristas levam sua audiência a refletir em como um Estado mesquinho pode ser nocivo diante de sua indiferença. No desaparecimento de Roberta, e na busca de Marilene por sua filha, há símbolos de uma perda que representa um país perdido em uma desesperança. Em determinada cena, lá estão Marilene, Juliana, amiga de sua menina, e Gilka, a vizinha, a colar cartazes com a foto da filha desaparecida. Nas paredes, de forma sutil, outros cartazes aparecem. O padrão desses desaparecimentos surge evidente, porém. No país de um Estado omisso, que governa para poucos, e que prega o desaparecimento de suas minorias, tais cartazes se multiplicam. E em nosso atual presente, caótico e pandêmico, confirma esse comportamento assassino.
“É um sistema pautado na mentira, no caos. Quantas vidas perdidas nessa pandemia é fruto de uma irresponsabilidade de alguém que poderia, simplesmente, fazer diferente? Que teria todo poder nas mãos para fazer diferente. E quando pensamos nesses desaparecidos do filme, tentamos criar um padrão desses desaparecimentos. Claro que a Roberta é o símbolo disso tudo, mas o filme trata de um contexto que envolve outros desaparecimentos. Essa foi uma ideia que foi se formando ao longo da finalização do filme. Porque também começamos a pensar em quem são esses desaparecidos, sabe? E é inevitável não pensar em cada uma dessas mortes provocadas pela pandemia como, também, pessoas que sofrem de uma violência do Estado. De um descaso dos políticos e de um descaso do Estado. Um Estado que parece que não se preocupa em manter as pessoas vivas. Roberta é uma delas. A Marielle, a Matheusa, a Dandara, e tantas outras vidas que estão sendo perdidas todos os dias. E as pessoas parecem que estão nesse estado de letargia absoluta. A gente aqui está cansado, sabe? Está todo mundo cansado”, desabafa Matheus Farias.
Nesta entrevista ao Scream & Yell, Enock e Matheus aprofundam seus processos de criação e abordam a mensagem direta que “Inabitável” traz para esse Brasil de desesperança. Mas que pode ainda possuir alguma. Confira!
Entrevista: a atriz Luciana Souza fala sobre “Inabitável”
A personagem da Marilene tem na construção de Luciana Souza uma postura séria diante do desaparecimento de sua filha Roberta. Ela sabe o que está acontecendo. Ela imagina o que de ruim pode ter acontecido, mas, ao mesmo tempo, sua expressão diante daquela busca não denota suas emoções de forma aberta, direta. Em um Brasil no qual o assassinato das vidas negras, o assassinato das vidas LGBTQIA+, se tornou algo minimizado por um governo genocida, como se deu a construção do roteiro de “Inabitável”, bem como da personagem de Marilene na direção de vocês junto a protagonista Luciana Souza?
Enock Carvalho – Desde 2017 para 2018, foi quando a gente começou a desenvolver o roteiro do “Inabitável”. Era muito latente a nossa vontade de falar do estado do Brasil. o estado em que o país se encontra. Porque a gente estava, de certa forma, muito mexido com tudo que vinha acontecendo politicamente e socialmente. Com tanta violência, tanto discurso de ódio crescendo na sociedade. E a gente queria muito trazer esse estado de país para dentro do filme. E que isso fosse como um apresentar de um universo de medo e de desesperança. A história de Marilene buscando pela filha surgiu para nós quando quisemos falar sobre o medo disso dentro de uma família. Uma família que já vem sofrendo há um tempo pelas circunstâncias de racismo, de machismo, de homofobia. E de repente aquela família é tomada por essa violência. E eu acho que quando conversamos com a Luciana, trouxemos muito essa questão para ela. Para que isso ficasse traduzido na atuação dela. Que aquela mãe é uma mãe que, de fato, não cede ao desespero e ao choro, porque ela já temia muito aquilo. É algo que estava no roteiro e que a Luciana soube trazer para as imagens, para as cenas do filme, de uma forma muito fiel. Também foi um trabalho de pensar em como que ela não cederia a esse medo, a esse choro, a esse desespero. E, ao mesmo tempo, ela se manteria de certa forma com esperança de que a filha pudesse reaparecer. Isso foi sendo trabalhado nela. Eu acho que o filme faz muitas curvas. Ele vai por caminhos que você acha que o filme vai acabar ali, mas tem sempre uma coisa a mais. E aí eu acho que foi a nossa maneira de construir novas realidades possíveis para essas personagens. A intuição de quem espera, talvez, certa coisa de um personagem, porque já viu muito aquilo acontecer estampado nos jornais, estampado nas manchetes. E nós usamos o roteiro do filme para poder criar novas possibilidades e novos caminhos para essas personagens.
Matheus Farias – O Brasil, hoje, e eu acho que isso só foi regra na época da ditadura militar, mas me parece que o Brasil, hoje, sofre com uma violência institucionalizada. O Estado é violento por natureza. E quando a violência é institucionalizada, o medo também é. E é isso que eu acho que a grande maioria dos brasileiros tem sentido nos últimos anos. E isso em diferentes formas. Temos falado muito em linha de frente. As pessoas estão trabalhando nessa linha de frente do combate a pandemia, mas a gente, às vezes, esquece quem está na linha de frente da sociedade. Quem é que sofre as maiores violências, as violências mais terríveis, e que, às vezes, mora a poucos quarteirões da gente. Pessoas que conhecemos, ou parentes nossos, que sofrem na pele essa violência institucionalizada, Então, tentamos dar conta desse estado de medo que o Brasil sofre. Mas de uma maneira muito particular. A partir do ponto de vista de uma maneira genuinamente brasileira, composta por uma mãe solteira e uma filha, moradoras de periferia, negras, e que têm o apoio das vizinhas, de amigos, para tentar superar esses desafios. E eu acho que quanto à Luciana, tanto no processo da escrita do roteiro, quanto da preparação e, claro, na representação da personagem no filme, eu acho que a gente se inspirou muito nas nossas mães. Eu e Enock somos LGBT. Nós passamos pelo processo de sair do armário. E esse processo de sair do armário, ele cria nas mães, nos nossos pais, automaticamente, o medo. O medo pelo qual nós, agora, assumidos para o mundo, com a cara para todo mundo ver, podemos ter a iminência de sofrer. Claro que não são as mesmas ameaças que uma mulher trans negra, mas vivemos todos nessa iminência de que algo pode estar acontecendo ou acontecer a qualquer momento. Então, eu acho que a Luciana traz muito disso. Da nossa experiência com a nossa família, com os nossos medos, e com os medos delas, também.
Enock – Tem uma fala muito curiosa no filme, João, que diz bastante sobre isso. É quando a amiga da Roberta se despede da Marilene à noite, e ela diz: “Ligue quando estiver em casa”. Você para pra pensar que isso é uma realidade muito brasileira. Você ter que avisar para alguém que você chegou em casa com vida. E você ter que avisar: “cheguei em casa” para que a outra pessoa fique tranquila. Isso é algo que a gente naturalizou, porque crescemos vivendo dessa maneira. Acho que quando colocamos isso no filme, vemos o quanto absurdo é a ideia de você precisar se comunicar com alguém para avisar que você chegou.
Matheus: Precisar dar sinal de vida. O tempo inteiro.
A direção é bem sutil. O filme é bem sutil, também, na construção dos olhares, no eixo desses olhares. Temos uma protagonista forte, que utiliza muito do olhar para transmitir o que sente. E algumas situações do filme ilustram bem essa questão dos olhares. A Marilene tem uma filha trans. Ela sabe dos riscos que o mundo traz para sua filha. No IML, tem uma cena que a atendente olha para a miga de Roberta. E a cena é só um olhar. Mas está tudo ali. O filme abre com Marilene olhando para uma criança no trem e vendo nela sua própria criança. Como foi na escrita do roteiro essa opção por trabalhar mais com olhares e menos com palavras?
Matheus – São questões mais propriamente do texto do filme, de como as coisas são faladas, do quanto é dito, ou o quanto não é dito. Eu acho que o “Inabitável” é um filme muito também do que não é dito. E aí a troca de olhares ela entra para suprir a falta da palavra. Porque, às vezes, não precisamos dizer nada, mesmo. A violência, o medo, a tensão já estão construídas. E aí não precisa. Como na vida, às vezes a gente não precisa mesmo falar muita coisa. A circunstância já está dada. Mas, enquanto roteiro, eu acho que muito disso vem do fato de que esse filme estava sendo desenvolvido, pensado, problematizado, colocado no papel, retirado do papel, falado em voz alta, desde 2017. Mas muito disso também veio do processo de construção com as atrizes. E elas tiveram papel fundamental nessa modulação. E, de fato, eu acho que o grande ganho desse processo todo de você pensar muito sobre filme, é de você, talvez, entrar em um processo contrário do que eu, pessoalmente, acho que vem se tornando uma tendência. Eu, pessoalmente, acho que tem sido uma grande tendência de filmes feitos no Brasil, atualmente, em que quase tudo está sendo dito no texto. Isso não é necessariamente um problema, mas eu gosto mais quando vemos isso na imagem. Para mim, é muito mais forte e eficaz quando a gente se identifica através do olhar e do que estamos vendo, sabe? Porque é mais ou menos como interagimos com a nossa realidade. Quando estamos em alguma circunstância. e eu olho para Enock, ele já entende o que eu estou querendo dizer sem eu precisar falar uma palavra. Quando estamos construindo isso ao longo do filme, e as pessoas estão imersas nisso, eu acho que elas também entendem, sabe? E, para mim, isso basta. A força, para mim, do texto, está aí. Está no silêncio, também.
Enock – De certa forma, o filme começa e termina com dois olhares para o futuro. Quando Marilene está ali naquele trem e a gente está ouvindo aquela declaração de fim de mundo, de apocalipse, muito próximo de uma ideia cristã de arrebatamento, de fim de mundo. E ela vê aquela criança como a própria filha. Como um futuro a trilhar no país em que ela está vivendo e na circunstância que ela está passando nesse momento. Além disso, de certa forma, o último plano do filme é, também, um olhar para o futuro. Porque, apesar da realidade absurda que vivemos hoje, e que a Marilene está colocada nesse momento, ela já começa o filme no contexto da filha desaparecida e procurando por ela. E com essa preocupação, a última imagem que a gente vê do filme, é, também, um vislumbre do futuro. Se não é possível viver aqui, que seja em outro lugar.
“A gente está atrasada”. A frase proferida no único momento em Marilene ensaia um sorriso de esperança durante todo o filme também traz uma solução para aquilo. A solução de escapar. A solução de ir embora. E o filme flerta com a ideia da ficção científica ao abordar essa fuga. Qual a solução? Ir embora? Mas ir embora para onde? Ou ficar e se tornar calejada, machucada? É uma reflexão dura e dolorosa de se ter com aquele final.
Enock – Foi um momento muito bom de se construir com a Luciana. E pensar em o que está por trás de toda aquela interpretação, de imaginar que esse é um filme que pensa em outras possibilidades de vida. Eu acho que tem algo no filme que é uma energia que se move desde o começo até o final. Que vai aumentando e crescendo à medida que a ficção científica vai se misturando com a história e sendo trabalhada. Eu acho que isso, de certa forma, já começa a trazer um prenúncio de que a ficção científica é quem vai, talvez, dar um novo caminho para aquela tristeza. Eu acho que a gente construir com Luciana… (pausa) claro, estava no roteiro, mas eu acho que Luciana conseguiu acolher muito bem essa ideia. E, de fato, tudo o que se vê no filme é resultado disso. Dessa sinergia entre ela, nós, o resto do elenco, o roteiro. E pensando em Brasil, né? Eu acho que desde o começo todas as atrizes do filme estavam muito sintonizadas com sobre o que era esse filme. E isso era muito importante. Esse filme, quando a gente sentou para ler o roteiro pela primeira vez, todas estavam em perfeita sintonia. E eu acho que isso foi fundamental. A gente estava construindo o filme e ele é um discurso. E esse discurso ele foi construído a muitas mãos, apesar de nós dois termos escrito esse roteiro. É pensar a realidade do Brasil e do mundo, porque as vidas trans e as vidas negras estão ameaçadas em, talvez, todas as partes do mundo. Óbvio que cada país tem o seu índice de violência próprio. Alguns mais do que outros, mas eu acho que existe, também, um esgotamento por parte das mulheres, por parte das pessoas negras, por parte das pessoas trans e LGBTQIA+, existe um esgotamento das pessoas indígenas. Um esgotamento de lutas. As pessoas estão um pouco cansadas e elas… (pausa) Há quanto tempo elas vêm lutando? E quanto tempo mais elas vão precisar lutar simplesmente para poder viver? Eu acho que isso está no roteiro, eu acho que isso está lá no filme, porque isso foi muito bem trabalhado por todo o elenco e eu acho que… enfim, acho que terminei respondendo e falando até um pouco mais.
O filme traz uma reflexão muito urgente sobre o Brasil atual, sobre o extermínio das vidas negras, sobre o extermínio das vidas LGBTQIA+, sobre o extermínio das vidas indígenas. Sobre as minorias serem chacinadas por um atual projeto de política que abertamente fala que “as minorias têm que se adaptar ou desaparecer.” Em um país no qual a mentira se tornou um padrão evidente, e que a normalidade se tornou um modo de enxergar esse padrão, refletir em meu próprio confinamento sobre tudo isso, ler notícias sobre isso, enfim, acabou se tornando algo que, no meu caso, tem me causando muita angústia e tristeza. A pandemia surgiu como um último golpe nessa nossa realidade de Brasil. E é perceptível que “Inabitável” tem essa urgência de abordar isso em sua narrativa.
Enock – Vou tentar responder sobre isso. Talvez eu me emocione. Eu acho que as pessoas estão descobrindo agora que políticos matam sem necessariamente tocar em uma arma. Eu acho que a pandemia abriu os olhos para algumas pessoas que não sabiam dessa possibilidade, por mais que, desde a época da ditadura no Brasil, tivessem pessoas avisando sobre isso. Tem uma cena do filme em que elas três estão descendo pelas escadarias, quando elas estão colando cartazes e procurando pela Roberta, e aí do lado esquerdo da escadaria tem um cartaz da Marielle, tem um cartaz da Matheusa. Óbvio que isso está muito sutil, mas são cartazes de pessoas que também desapareceram como a Roberta. Eu acho que é muito sintomático que a gente veja a história no Brasil se repetir várias vezes. Porque parece que faz parte de uma sociedade adoecida por não conseguir ver o próximo, não conseguir olhar para o lado. Não conseguir ter empatia e compaixão e, de fato, eu acho que é uma falha social. Isso é uma falha do ser coletivo, mas que não aprendeu a ser coletivo. Eu acho que quando as pessoas elegem políticos que são nocivos, que são ameaças, elas não têm, de fato, essa noção. Algumas têm, mas a maioria delas não tem noção do que eles podem ser capazes. E eles podem matar permitindo que pessoas morram. Eles podem matar deixando uma parcela da sociedade descoberta de leis que protejam seus territórios, que protejam seus direitos. E isso é matar. E você está colocando essas pessoas no poder. Você está votando por elas. Você está elegendo e endossando discursos. E o discurso de direita está muito atrelado ao racismo, ao fascismo, à homofobia. E é muito absurdo, mais uma vez eu repito isso, é muito absurdo você pensar que para você ser de direita, você precisa abrir mão dos direitos humanos, você precisa abrir mão que pessoas negras tenham seus direitos resguardados. Pessoas LGBTQIA+ tenham seus direitos resguardados. Eu acho que isso é o fundo do poço para essas pessoas. E isso termina afetando a sociedade como um todo. Quando fizemos o “Inabitável”, a gente estava muito movido por essa ideia de que aquele era um filme muito urgente. Que era um filme político estávamos fazendo. Mas eu acho que existia uma energia ali na equipe, no elenco, que era uma energia de amor, era uma energia de… estava todo mundo junto. Pessoas fazendo o filme porque sabiam que ele precisava ser feito. Contamos com uma equipe de quarenta pessoas. E víamos que as pessoas estavam em sintonia. Nós víamos que estavam todos ali porque precisavam fazer esse filme conosco. E eu acredito bastante que as pessoas podem se unir. Elas devem se unir. Eu acho que é muito difícil pensar no futuro. A gente não consegue ter uma ideia de futuro agora, porque estamos passando por um abismo no Brasil. É difícil imaginar o que vai acontecer daqui a alguns anos. Mas eu acho que fizemos esse filme muito movidos por pensar uma ideia de que as coisas serão melhores. De que elas podem ser melhores. Por mais que a gente se entristeça muito nos dias. Por exemplo, o pai do Matheus morreu de COVID em junho, e na mesma semana estava o presidente na televisão falando merdas, falando besteiras sobre a pandemia. A gente estava finalizando o filme na ocasião. Finalizamos, eu acho, duas ou três semanas depois, no máximo. E parecia que tínhamos chegado ali no lugar que nunca imaginamos que chegaríamos. Mas, de certa forma, eu acho que as coisas estão aos poucos indo para um caminho melhor. Eu acho que a gente está em um lugar muito ruim, mas eu acho que não vai durar tanto. Eu acredito. Essa é o meu pensamento. Que não vai durar tanto. É uma pena que tanta gente tenha perdido sua vida. Porque, talvez, enfim, se a gente não tivesse o presidente que temos, as coisas estivessem muito diferentes. E a gente tivesse perdido menos vidas, a exemplo de tantos outros países que souberam lidar com uma calamidade tão grande quanto essa pandemia. Eu acho que o filme conversa muito com tudo isso. Ele está no centro disso. Óbvio, a gente não podia imaginar que uma pandemia aconteceria, mas, de certa forma, o filme soa premonitório. Parece uma ideia premonitória, porque tínhamos uma ideia muito pessimista. Ainda temos. Estamos em um lugar muito ruim. Mas a minha torcida pessoal é de que isso tudo passe. É que isso tudo cesse. Eu acho que precisa haver uma movimentação muito grande para isso acontecer. Precisa haver um movimento que consiga romper tudo isso que está acontecendo, sabe?
Matheus – Eu também acho. Eu concordo com tudo que Enock falou. Assino embaixo, mesmo. E eu também acredito que, infelizmente, parece ser algo que aconteceu no mundo todo. Óbvio que em níveis diferentes. Os efeitos que a pandemia foram piores aqui. O fascismo disfarçado de discurso de direita tem causado esse efeito nas pessoas. E eu acho que ele, de certa maneira, está pulverizado no mundo inteiro. Os governos até ditos mais progressistas, mas é impressionante como no Brasil se normalizou a violência. A morte das pessoas está normalizada. Como Enock falou, eu perdi meu pai em junho. E a responsabilidade pela morte do meu pai está na conta de um pensamento de governo de Estado que não se importa com quem trabalha. Com a força de trabalho. Meu pai foi impedido de parar de trabalhar. E em tantos outro países esse tipo de coisa foi, sabe, tão facilmente resolvida. Infelizmente, meu pai se contaminou no ambiente de trabalho, passou 40 dias internado, e eu o perdi pela irresponsabilidade e pela agenda de morte de um Estado que descredibiliza qualquer tipo de verdade. É um sistema pautado na mentira, é um sistema pautado no caos. E quantas vidas perdidas nessa pandemia é fruto de uma irresponsabilidade de alguém que poderia, simplesmente, fazer diferente? Que teria todo poder nas mãos para fazer diferente. E quando pensamos nesses desaparecidos do filme, e a gente tenta criar um padrão desses desaparecimentos. Claro que a Roberta é o símbolo disso tudo, mas, como Enock falou, o filme trata de um contexto que envolve outros desaparecimentos. É como se outras pessoas, no Brasil, também estivessem sumindo. E essa foi uma ideia que foi se formando ao longo da finalização do filme. Porque a gente também começou a pensar em quem são esses desaparecidos, sabe? E é inevitável não pensar em cada uma dessas mortes provocadas pela pandemia como, também, pessoas que sofrem de uma violência do Estado. De um descaso dos políticos e de um descaso do Estado. Um Estado que parece que não se preocupa em manter as pessoas vivas. Roberta é uma delas. A Marielle, a Matheusa, a Dandara e tantas outras vidas que estão sendo perdidas todos os dias. E as pessoas parecem que estão nesse estado de letargia absoluta. A gente aqui está cansado, sabe? Está todo mundo cansado. Está todo mundo parecendo que está em um estado de hipnose absoluta, sem saber como reagir. Porque o medo, infelizmente, é maior do que a… (pausa) Parece que o medo é maior que a vontade de reagir. E eu não sei até onde a gente vai chegar. Mas eu também tenho a esperança de que isso não vá durar mais muito tempo. É uma pena que ainda precisemos perder tanta gente, que tantas pessoas morram, percam suas vidas em favor de um futuro que não temos certeza se existe, sabe? É muito complicado. Eu viro para Enock, às vezes, assim: “Enock, você consegue pensar em um futuro?” Pela primeira vez em minha vida, eu não consigo me planejar para mais de quinze dias. Porque tudo pode mudar a qualquer momento. E viver assim é viver sem esperança, sabe? E, de certa forma, eu acho que o Inabitável também tenta, apesar de termos uma visão muito pessimista em relação a futuro, principalmente no Brasil, com tudo isso que está acontecendo, eu acho que com o filme, a gente tenta exercitar essa esperança de alguma forma. A nossa crença no fantástico, a nossa crença no Cinema, na Arte, como uma possibilidade de escape, de fuga dessa realidade tão absurda que insiste em nos fazer viver e não queremos viver desse jeito.
Essas oportunidades de poder falar sobre isso, de poder expressar-se sobre o que está acontecendo de modo a usar nossas vozes como alguma forma de reflexão, é algo que, ao menos, aquece o coração. Extravasar o que nos angustia nesse momento ajuda.
Matheus – A gente também sente a mesma coisa. Nós participamos de alguns debates com o filme, em festivais aqui no Brasil e no exterior, todos on line. E eu quase sempre terminava a participação no debate dizendo assim: “Olha, é muito importante que esse tipo de coisa aconteça, assim como é muito importante tenhamos a oportunidade de discutir com a imprensa, com você, João, enfim, com todos os veículos, com os debates nas sessões, porque parece que durante esse momento que temos vivido, a gente tem tido poucas oportunidades de falar. E é por isso que as pessoas estão tão verborrágicas nas redes sociais. Há uma necessidade de falar sobre isso. Criar essas plataformas e essas oportunidades de falar sobre isso, parece que, de fato, aquece nosso coração. E ainda mais quando a gente coloca um filme em pauta, para falar sobre Brasil, isso é ainda mais importante porque entendemos a força da Arte, a força do Cinema, como sendo esse força motriz para discutir vida, para discutir mundo, para discutir futuro. Para discutir estratégias de sobrevivência. Por isso que eu me sinto muito honrado de participar de algo assim. E também aquece meu coração e me traz, de certa forma, alegria.