por Renan Guerra
Uma cena: Bagdá (Grace Orsato), de 17 anos, folheia uma revista feminina dessas de adolescente, ao lado da mãe (Karina Buhr) e de uma amiga (Paulette Pink), enquanto questiona o fato de que aquelas mulheres da revista não são e não representam a mulher que ela é. Essa pode ser uma forma de apresentar a narrativa de “Meu nome é Bagdá” (2020), segundo longa de Caru Alves de Souza. Também podemos falar que é um filme sobre uma adolescente skatista em sua descoberta de mundo – como uma espécie de coming of age. Pode ser lido ainda como um filme sobre skate, sobre família ou mesmo sobre amizade.
São múltiplos universos que explodem na tela durante a projeção de “Meu Nome é Bagdá”. A história central é basicamente acompanharmos o cotidiano de Bagdá, uma jovem da Freguesia do Ó, periferia de São Paulo, que gosta de andar de skate ao lado de seus amigos – em sua grande maioria homens. Ela vive junto da mãe e de duas irmãs. Completam esse cenário: a dona de um bar vizinho e os dois atendentes de um salão de beleza – um homem gay e uma mulher trans.
Durante mais de uma hora e meia acompanhamos o cotidiano dessas pessoas, em suas alegrias e tristezas, de forma bastante realista. Não há uma construção de roteiro aos moldes clássicos da jornada de herói e não temos aquela necessidade fabular de dar alguma lição de moral no final. O que “Meu nome é Bagdá” traz é um olhar extremamente sincero sobre crescer e aprender a existir no mundo, nem que seja na marra, isto é, em um mundo que nega todas essas existências que não são a norma.
Bagdá é uma menina de trejeitos masculinos, que não se veste como as meninas das revistas e isso é apenas uma característica dela. Assim como sua irmã prefere roupas consideradas mais femininas. É nessa construção de diferentes possibilidades de ser mulher que o filme de Caru se mostra extremamente rico: não há definições pré-estabelecidas. Essas personagens existem, amam e sofrem e é sobre elas que dedicamos esse tempo do filme. São essas personagens que nos conduzem em uma jornada complexa: cada uma é construída em detalhes, em singularidades e complexidades que deixa tudo mais atrativo. Cada uma delas poderia ter seu próprio filme, sua própria narrativa, tamanha é a construção do roteiro.
O longa é livremente inspirado no livro “Bagdá — O skatista”, de Toni Brandão, lançado em 2009. O livro é protagonizado por um menino, mas durante o laboratório de roteiro no qual Caru participou, as perspectivas mudaram e as personagens femininas ganharam força. A narrativa do longa ainda ganhou a colaboração de um coletivo de mulheres skatistas de São Paulo. Grace Orsato, protagonista do longa, também é skatista e chegou até o papel quando foi abordada pela produtora de elenco do filme na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, num dia em que apenas estava andando de skate por lá.
“Meu Nome é Bagdá” vem sendo bem recebido por onde passa: no Festival de Berlim, o filme recebeu o prêmio da seção Generation 14Plus. Agora o longa está na Mostra Competitiva do 28º Festival MixBrasil e teve alta procura nos dias que ficou disponível. De caráter quase naturalista, ele consegue cativar especialmente pela química de seu elenco, que além de Grace, conta com a cantora Karina Buhr (em sua estreia no cinema), a drag queen Paulette Pink e Gilda Nomacce. Um dos destaques é a atriz mirim Helena Luz (da novela “Carinha de Anjo”), que encanta como a irmã mais nova de Bagdá que é apaixonada por Ets e pelo espaço sideral.
Além de tudo isso, como um bom filme de skate, destaca-se a trilha sonora que dá o tom para os takes na pista de skate e pelas ruas de São Paulo. A trilha original é composta por André Whong, que além disso reúne algumas outras faixas já conhecidas do público, que vão do funk do Heavy Baile ao punk da banda Bulimia.
Caru Alves de Souza fez um filme que discute gênero, tensiona a realidade e prova que as mulheres são mais fortes em grupo e longe das caixinhas nas quais as querem enquadrar. Há uma sinceridade e uma força em cada detalhe do filme que é difícil não se cativar por esse universo. “Meu Nome é Bagdá” é uma espécie de visita que fazemos ao mundo de Bagdá e seus amigos, é como se passássemos um tempo ao lado deles e depois ficássemos com essas memórias por aqui.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.