por Adolfo Gomes
Sequencia de cinco curtas experimentais (um preludio e mais quatro episódios) lançados entre 1961 e 1964 que quase sempre são exibidos juntos como um único filme, “Dog Star Man” é, na cosmogonia de Stan Brakhage, um gesto de desbravamento. Conta-se que o cineasta norte-americano pretendia aqui evocar um vislumbre da criação do universo. Mas seu cosmos bem que poderia estar dentro de nós, em nossas entranhas – ou, paradoxalmente, também na película, outrora a pele do cinema.
Não é a única das contradições que emergem da poética de Brakhage. Se por um lado, tudo é terreno, superficial, quase endoscópico (há aí uma ontologia dos organismos); nem sempre o que vemos, pela velocidade e estranheza das imagens, nos é discernível (o desconhecido, em última instância, é o sobrenatural, o invisível) .
Ainda assim, o filme está longe de se render ao viés abstracionista e esotérico. Temos o seio, o leite, o bebê, a neve, o sexo e as árvores como lastros do homem e da natureza. Até as estrelas, os planetas, as nebulosas siderais resultam de contornos humanos. Nada escapa à presença das coisas.
O dispositivo cinematográfico, em si, é outra linha de força. A tela escura, as não-imagens, emulam os interstícios mecânicos da troca de rolos; a ausência de uma banda sonora realça os ruídos do fora de campo – e se o nosso som fosse somente o do barulho do projetor? Parece apropriado à visceralidade concreta de “Dog Star Man”.
Essa espécie de bricolagem conceitual tem algo de irônico: é operada no seio de uma arte industrial, hegemonicamente narrativa, calcada na empatia entre o espectador e a dramaturgia da representação. Brakhage, no entanto, recusa tais códigos em prol de um ensejo cinematográfico que beira o totalitário. Para ele, a potência do cinema é o fluxo contínuo das imagens, para além da(s) história(s).
“Dog Star Man” remonta um universo que, povoado por todos nós e pelos filmes que consolidaram o nosso imaginário (“já não somos inocentes”, convém lembrar a assertiva de Jacques Rivette), continua a reivindicar um olhar mais livre e ancestral, descolado das demandas cronológicas e dos compromissos da progressão dramática. É um território que permanece novo e pouco explorado, como o Cosmos. Brakhage foi, definitivamente, um realizador de ambição.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)