Texto por Marcelo Costa
“Cracolândia é a denominação comum para uma população em situação de rua, estimada em 1.680 indivíduos, composta, na sua maioria, por dependentes químicos e traficantes, geralmente de crack, que costuma ocupar uma determinada área no centro da cidade de São Paulo, nas imediações das Avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Cásper Líbero, Rua Mauá, Estação Júlio Prestes, Alameda Dino Bueno e da Praça Princesa Isabel, onde historicamente se desenvolveu intenso tráfico de drogas e meretrício”. Essa explicação você encontra na Wikipedia, mas não no documentário “Cracolândia” (2020), de Edu Felistoque.
É importante destacar isso logo no início deste texto, porque o documentário “Cracolândia” tenta muitas vezes entender o efeito do crack em uma pessoa esquecendo-se de focar na área ocupada por usuários na região central de São Paulo, o que faz do filme muito mais uma obra sobre drogas do que sobre um local que abriga viciados em drogas. Ao negar aprofundamento do território que a Cracolândia ocupa na cidade de São Paulo, o filme deixa de discutir temas como o abandono e a consequente degradação de regiões centrais de grandes cidades (um evento que se repetiu em diversas capitais do mundo), gentrificação e o espaço público antes abandonado e que foi ocupado por um grupo de pessoas a partir dos anos 90, com o número aumentando de maneira assustadora nas duas décadas seguintes.
Esse primeiro equivoco é facilmente perceptível quando o espectador se dá conta de que o roteiro, escrito por Heni Ozi Cukier, “Cientista Político, Professor, Palestrante e Deputado Estadual pelo Partido NOVO SP” (está na bio do Twitter dele), é usado como um palanque para que o deputado exponha suas opiniões (de um integrante do Partido NOVO), tendendo quase sempre ao pensamento de Direita, que tenta avalizar ações violentas da Policia Militar tanto quanto atacar o trabalho de ONGs. Essas “opiniões” surgem balizadas em entrevistas com integrantes de diversas áreas do Estado, mas nunca com ninguém de partidos de Esquerda ou, mais profundamente, de ONGs que trabalham no local, um olhar enviesado que, infelizmente, contamina um filme que toca num assunto de extrema importância para a cidade de São Paulo, mas o politiza antes de tentar entende-lo.
É possível não politizar algo nestes anos sombrios?, pergunta o leitor atento. Provavelmente, não. E a maneira mais honesta de lidar com isso é fazer um recorte que abrigue as opiniões mais diversas, os espectros políticos mais distantes, e deixar que o espectador faça a sua leitura. É ingenuidade esperar que um documentário que traz o roteiro assinado por um deputado de um partido x tome essa iniciativa e não puxe a sardinha para o seu lado? Pode ser, mas a função aqui não é destacar ingenuidade, mas tentar entender como a construção de um documentário sobre um tema tão urgente pode servir a esse ou aquele discurso. Nesse ponto, o viés ideológico de “Cracolândia” pode soar tão pernicioso quanto o de “Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha”, ainda que seja difícil alcançar o panfletarismo de botequim do segundo.
Logo nos primeiros minutos de “Cracolândia”, num pensamento “em cima do muro” bastante típico de pessoas ligadas ao Partido Novo, Heni Ozi Cukier critica tanto as pessoas (de Esquerda) que, quando questionadas sobre a Cracolândia, falam em “assistência, assistência, assistência” quanto as pessoas (de Direita) que acham que “tem que dar porrada, tem que acabar, tem que trancar essas pessoas”. Na sequencia dos 87 minutos do filme, porém, o segundo pensamento será muito mais defendido, e não há quase nenhum espaço para as pessoas que gritam “assistência” explicar o que está por trás dessa ideia, criando um discurso manipulatório que, eventualmente, cairá nos chavões tradicionais de “defesa de bandido”.
Diferente de “Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha”, em que quase nada se salva, há vários entrevistados em “Cracolândia” que conseguem fugir da preguiça argumentativa e expor pensamentos que consigam fazer a discussão andar. Um deles, por exemplo, conta que muitos dos “moradores” da Cracolândia “ganham a droga de graça só para estar ali, porque quem interessa aos traficantes são as pessoas de fora que vão comprar a droga no lugar”. Números são usados: “Os traficantes lucram R$ 15 milhões por mês na Cracolândia. R$ 180 milhões por ano”. O “sucesso desse empreendimento”, porém, não é aprofundado no filme, que tenta estudar como a droga funciona no corpo da pessoa ao invés de questionar por que o Estado não combate o crime organizado, que lucra uma fortuna de dinheiro debaixo dos seus próprios olhos.
Para ser mais claro: “Cracolândia”, o filme, prefere o conforto de focar o problema nas pessoas (sem rosto) a se indispor com o tráfico, que está ali, todos os dias, na figura de pessoas reais (não há relatos de drones entregando drogas na região… ainda), e estará durante muito tempo enquanto um trabalho sério não for feito para identificar como a droga chega, de onde vem, e quem manda. Como a área é delimitada é de se perguntar por que não há um estudo muito mais aprofundado da polícia sobre os movimentos dos traficantes, e porque é mais fácil chegar jogando bomba nos usuários, de maneira violenta e cruel. “Cracolândia” não faz isso, e o deputado chega, inclusive, a viajar para outros países e conversar com autoridades locais para entender como cada região do mundo lidou com seu problema de “parques de drogados”, e no final dizer que as estratégias usadas por eles não funcionariam em São Paulo “pelo tamanho da cidade” e “porque o crack tem um efeito diferente das drogas – essencialmente heroína –usadas nesses lugares”. As viagens teriam sido a toa se a maneira como países do primeiro mundo falam “sobre pessoas” e não “sobre drogados” saltassem os olhos. Humanidade, algo que falta bastante aqui.
Tudo isso quer dizer que o documentário é um desserviço? De maneira alguma. “Cracolândia”, mesmo com muitas ressalvas, merece ser visto. Em meio a muito lenga lenga de personagens defendendo o Estado e a Constituição, há opiniões bastante interessantes do médico psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da psicóloga Clarice Madruga e do escritor Márcio Américo (ex-residente da Cracolândia), entre outros, sem contar os entrevistados estrangeiros, que conseguem dar ao tema o aprofundamento merecido, e mostrar a distância do pensamento brasileiro, simbolizado pelo próprio olhar do roteirista, que ao ver uma pessoa usando droga em um local de uso controlado fornecido pelo Estado na Noruega, pergunta para a assistente social: “Como você se sente vendo isso todos os dias? Isso afeta você?” Ela está ali auxiliando uma pessoa viciada, fazendo algo bom, e o fato do roteirista querer saber se aquilo a incomoda demonstra seu preconceito contra o viciado. Na sequencia, a assistente dá uma aula de amor ao próximo: “Ele foi preso com 13 anos, algo aconteceu na vida dele. Ele está tentando reduzir a sua dor”. Boa parte dos brasileiros não está nem aí com a dor do próximo.
O documentário “Cracolândia” lida com um tema bastante espinhoso, e tanto erra quando coloca o Estado na frente do cidadão como acerta quanto tenta entender que há, ali, um ser-humano, com pele, ossos, sentimentos e uma história de vida. Mesmo Heni Ozi Cukier, em meio a seu emaranhado de certezas guiadas por seu modo pessoal de enxergar o mundo, parece em alguns momentos se contradizer, pois o tema é complexo e amplo, repleto de nuances. O que nunca se pode perder de vista é o ser-humano. Desta forma, a Cracolândia é um local inaceitável em qualquer sociedade, mas se o poder público “permitiu” que esse espaço se proliferasse, precisa agora ser bastante cuidadoso e engenhoso para fazer com essa área desapareça sem atos populistas, como as invasões comandadas por João Dória, que não resolveram o problema. “Cracolândia” não propõe soluções, falha em contar a história do lugar e foca muito mais na droga do que no tráfico, mas exibe o desejo de entender a situação. É muito pouco, mas em tempos de pensamentos de extrema direita, já é alguma coisa.
De 22 de outubro a 4 de novembro de 2020, acontece a tradicional Mostra Internacional de Cinema em São Paulo —em 2020, em versão majoritariamente on-line e disponível para todo Brasil. Durante duas semanas, serão exibidos 198 títulos de 71 países em três plataformas (a Mostra Play, o Sesc Digital e a Spcine Play) e em dois cinemas ao ar livre: o Belas Artes Drive-In e o CineSesc Drive-in. O valor para cada sessão na plataforma será de R$ 6 e a maior parte das produções, porém, tem um limite de público de até 2.000 espectadores. Depois que essa quantidade de ingressos é vendida, o filme não fica mais disponível.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne