Texto por Marcelo Costa
A Terra de Vera Cruz sempre foi um local pródigo em maniqueísmos. As regras, aqui, são muitas vezes deixadas de lado em prol de um jeitinho brasileiro de ver e entender seu próprio mundo em constante caos, afinal, aqui tudo parece construção e já é ruína, uma sensação que acomete o cidadão nascido neste mundo velho sem porteira desde que Cristovão Colombo avistou as deliciosas curvas do Nordeste, mas decidiu (por sorte, susto ou uma voz divina no ouvido – direito ou esquerdo? – de um “deus brasileiro” dizendo “sai daqui, safado”) atracar sua nau em outro território que será eternamente vilipendiado pelos intere$$e$ próprio$, a América do Norte (desculpa ae, Canadá).
Dito isto, é preciso pontuar algumas coisas antes de iniciar a digressão sobre “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” (2020), documentário do jornalista Pablo Guelli – disponível nas plataformas NOW, iTunes, Vivo, Microsoft e Looke –, que busca mostrar a luta dos jornalistas independentes no Brasil para romper o embargo informativo imposto pelas seis famílias que dominam o sistema de informação do país (Jair Bolsonaro curtiu isso): se você viu alguma vez na vida “Beyond Citizen Kane” (“Muito Além do Cidadão Kane”), documentário de Simon Hartog exibido em 1993 pela emissora pública britânica Channel 4 (e censurado no Brasil), ou teve oportunidade de decupar alguma vez a “escalada” do Jornal Nacional, da Rede Globo, em alguma aula de comunicação, nada do que você verá aqui é novidade.
Ok, há atualizações. Um grande número de entrevistados (jornalistas, filósofos, blogueiros) que reúne umas duas dezenas de repercutidores de pensamentos de esquerda na Ilha de Vera Cruz (e fora dela) tenta recriar a narrativa construída por, principalmente, Rede Globo (mas também Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, SBT e Grupo Abril – na “figura” da revista Veja), de como a luta por 20 centavos de real desembocou numa pauta sobre corrupção culminando no golpe político sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016. São fatos recentes que, enviesados por manchetes jornalísticas tendenciosas que culminaram na ascensão do pensamento de extrema direita no Brasil, mais ou menos explicam porque estamos vivendo essa miséria intelectual, social e econômica, hoje.
Gente como Glenn Greenwald, Noam Chomsky, Luís Nassif, Laura Capriglione e Jessé Souza, entre muitos outros, lamuria o império manipulativo do crudelíssimo jornalismo mainstream no Brasil, mas tanto se esquece de dar nomes aos bois (é sempre “a Rede Globo”, “a Veja”, “a Folha de São Paulo”, como se esses veículos não fossem constituídos por pessoas, gente como a gente, que dorme, acorda, vai para o trabalho e escreve uma editorial do tipo: “Uma escolha muito difícil”) quanto falha em ouvir o outro lado (há um monte de acusações e nada de “procurado para falar sobre isso, fulano decidiu ir pra Ilha de Caras”), nem mesmo vozes destoantes que deem ao espectador médio material para decidir, por si só, que a Globo e a Folha e a Veja são mesmo as grandes vilãs (num momento que a extrema direita brasileira as acusa da mesmíssima coisa).
Oportunidades não faltaram. Em dois momentos importantes do longa de Pablo Guelli, por exemplo, que mostra dois jornalistas (Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, e Marco Aurélio Carone, do Novo Jornal) que foram perseguidos por lidarem com “forças ocultas” nada ocultas (no caso, a cúpula da Lava Jato e a família mineira Neves), não se foi atrás das pessoas envolvidas para escarafunchar os exageros das ações. Carone, inclusive, que ficou preso por nove meses “para manutenção da ordem pública” diz no documentário que um dos delegados no segundo inquérito disse que ele “era um preso político”. Quem é esse delegado? O que mais ele pode dizer sobre isso? Silêncio. Não há novidades, furos, surpresas em “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha”. É tudo mais do mesmo.
Não me entenda mal, caro leitor. Os temas apresentados no documentário são verdadeiros, reais, táteis, importantíssimos, mas são apresentados de forma desleixada no longa. Há aqui muito colunismo e pouco jornalismo, o que torna “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” um filme feito pela Esquerda Festiva para a Esquerda Festiva assistir enquanto come pão com mortadela batendo panela na janela. Seu reconhecimento diz muito tanto sobre o momento quanto “Bacurau”, um bom filme repleto de buracos ignorados por um público em busca de acolhimento. Porém, é impossível imaginar que essa narrativa derrotista possa convencer alguém em 2020, principalmente aquelas pessoas que o gabinete do ódio do desgoverno genocida de Jair Bolsonaro alcança com memes virais de fake news com menos de 30 segundos no Whatsapp. Nesse ponto, o filme definitivo do período é “Democracia em Vertigem” (2019), de Petra Costa. Infelizmente, “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” é energia gasta a toa. Mas vai lá, assista, indique praquele tiozão do Zap e aguarde ele retornar com um “mas o PT” para mais uma briga no grupo da família. A caravana seguirá passando…
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne
Excelente texto! Boas observações! Não sou muito afeito a teorias da conspiração, mas as vezes parece que esse tipo de filme só é feito para aumentar ainda mais a polaridade estúpida da sociedade atual. Algo que de forma superficial, sem provas definitivas e concretas, só aumenta o ódio da direita com a esquerda e vice-versa. O camarada que odeia a direita vê isso, acredita em tudo e se sente representado, o camarada que odeia a esquerda vê isso, não acredita em nada e se sente enganado e manipulado. Enquanto isso, o país desmorona com os psicopatas que estão no poder e com os psicopatas que querem voltar ao poder.
Concordo em número, gênero e grau
ótimo texto!
assisti esse documentário no santos film fest desse ano de forma online, e ainda bem que tenha sido via streaming, pois se fosse numa sala de cinema na qual ao final da fita as pessoas aplaudissem e eu ia ficar com vergonha alheia pois achei meio decepcionante.
e sabe o que é pior, caro Marcelo?
o Santos Film Fest ainda o premiou como melhor longa!
isso só me fez ter mais certeza que premiações de festivais são uma besteira, só servindo para encher o ego do vencedor (e o bolso se tiver algum dinheiro envolvido).