por Adolfo Gomes
A filmografia de Stanley Kubrick comprova: sua poética cinematográfica sempre foi materialista. Depois de morto, é lícito esperar algum escrúpulo em evocá-lo, reencarná-lo através das imagens. Gregory Monro, diretor do documentário que é uma das atrações da atual Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, tem plena consciência disso.
As únicas sequências em movimento do cineasta norte-americano são da sua infância já no final do filme, como se repetisse o movimento misterioso de “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968) em direção às origens, ao ventre – que é o que se espera, de um materialista, após a vida (o começo também é o nada, o pré-consciência).
“Kubrick por Kubrick” (“Kubrick by Kubrick”, 2020) é um documento raro, construído quase sempre de vozes, sobretudo a do biografado, stills de filmagens e entrevistas de época, de colaboradores e do grande exegeta da obra kubrikiana, o crítico francês Michel Ciment. É baseado nas extensas entrevistas ao longo de décadas conduzidas por Ciment e numa respeitosa coreografia cênica que o filme de Monro se põe de pé, altivo e pragmático.
Aliás, em certo sentido, o documentário é a celebração do encontro de homens práticos que se aturavam pelo senso de respeito e admiração mútua (também uma forma de amor). É difícil imaginar que Kubrick concedesse tanta abertura a um crítico de cariz mais especulativo e simbolista. Ciment é cartesiano nas suas formulações. Seu engenho está na frontalidade de suas perguntas. O realizador de “Laranja Mecânica” (1971) responde no mesmo nível, nunca a explicar seus filmes ou idealizar suas intenções, mas trazendo elementos concretos e diretos para sinalizar o trajeto do seu processo de criação.
Longe do caráter laudatório, as inserções de depoimentos de outros críticos, atores e escritores como Arthur C. Clarke (e até astronautas) são austeros e jornalísticos, no melhor sentido puramente informativo. Monro organiza cenas de filmes e realça a presença de um gravador – a emular o que Ciment usava nas conversas com Kubrick – por fidelidade ao seu senso de retidão formal.
“Kubrick por Kubrick”, no entanto, não é um retrato íntimo de um artista. É, antes e ainda bem, uma aproximação cuidadosa de sua obra, das suas estratégias de filmagem e interesses temáticos e estéticos. O homem, cabe a Christiane Kubrick, sua esposa, conservar na projeção que faziam da vida a dois dentro dos muros de sua mansão nas cercanias de Londres. O que desponta aqui é o criador. E ele, como sabemos, é enorme.
De 22 de outubro a 4 de novembro de 2020, acontece a tradicional Mostra Internacional de Cinema em São Paulo —em 2020, em versão majoritariamente on-line e disponível para todo Brasil. Durante duas semanas, serão exibidos 198 títulos de 71 países em três plataformas (a Mostra Play, o Sesc Digital e a Spcine Play) e em dois cinemas ao ar livre: o Belas Artes Drive-In e o CineSesc Drive-in. O valor para cada sessão na plataforma será de R$ 6 e a maior parte das produções, porém, tem um limite de público de até 2.000 espectadores. Depois que essa quantidade de ingressos é vendida, o filme não fica mais disponível.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)
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