entrevista por João Paulo Barreto
Durante esta entrevista ao Scream & Yell, o editor-chefe da Revista Elipse, Paulo Henrique Silva, cravou uma precisa análise da triste, porém necessária, metáfora existente no nome da única publicação impressa atualmente dedicada aos variados aspectos de criação do Cinema Brasileiro: “Depois de duas décadas de uma produção contínua, de uma mesma política, um pensamento para o cinema brasileiro, isso está sendo, mais uma vez, descontinuado. Mas buscamos outras maneiras de pensar. E eu acho que a (palavra) elipse é muito clara nesse sentido. Agora, estamos um pouquinho longe do sol, mas vamos fazer esse movimento. Daqui a pouco, estaremos próximos e vamos nos aquecer de novo”.
Ao manter um olhar voltado à produção nacional, a revista Elipse, concebida em Minas Gerais pela ONG Contato, salienta a importância do nosso Cinema como modo de propagação da Cultura Brasileira, bem como um potente gerador de emprego e renda. Algo, hoje, ainda mais urgente. E esse salientar acontece de modo embasado, distante de falácias e “achismos” que regram a opinião comum que busca marginalizar a produção cinematográfica do país. Na leitura da Elipse é perceptível uma preocupação com tal embasamento das informações apresentadas, mantendo um senso crítico, sim, mas, do mesmo modo, apresentado fatos concretos, oriundos de pesquisas oficiais, para comprovar a estupidez governamental de um projeto de executivo calcado em birras, polêmicas infundadas e em um proposital e leviano interesse na desinformação como plataforma política.
Após a edição 1 trazer a atriz paraense Dira Paes na capa e um foco na produção cinematográfica mineira, a ponte Minas com Bahia é feita para o exemplar 2. Duas entrevistas pujantes com dois dos principais nomes recentes da atuação oriundos do estado apresentam um panorama analítico do cenário: Wagner Moura e Fabrício Boliveira. O diretor de “Marighela” traz um relato profundo sobre vivermos a época do “triunfo do homem medíocre”, quando governantes de dois dos principais países economicamente relevantes no mundo apresentam uma “predisposição psicopática” durante a atual crise pandêmica. Paulo Henrique explica que “a entrevista é muito forte na maneira como ele (Wagner Moura) percebe o Cinema, a Cultura e a própria política do Brasil. E isso vindo de uma pessoa que está morando (a trabalho) nos Estados Unidos, país com um governante que é, também, conservador, e que tomou atitudes muito semelhantes (às do daqui) no início da pandemia em relação ao enfrentamento da doença viral. O Wagner, na entrevista, fala sobre isso com muita propriedade. Nós queríamos uma entrevista que fosse algo de fôlego, como aconteceu na primeira edição, quando a capa foi com a Dira Paes”, compara.
Na presença de Fabrício Boliveira como outro destaque da Bahia na edição de Elipse, uma conversa sobre questões de raça dentro do audiovisual, bem como acerca das atitudes predatórias do governo contra o potencial de uma indústria como a cultural. “Ele falou sobre a idiotice que é a atitude de um governo ir contra o próprio Cinema. Porque o Cinema é economia. O audiovisual movimenta muito mais recursos que outros setores da economia. É dinheiro que está sendo investido em diversas áreas do audiovisual. Então, é uma burrice”, contextualiza Paulo. O editor-chefe da Elipse salienta, ainda, a fala de Boliveira na comprovação de que, apesar da sabotagem, o movimento cinematográfico não vai parar. “Os grupos e os coletivos vão continuar fazendo cinema. Mesmo que seja na guerrilha”, pontua.
Com matéria sobre a rica produção do cinema de animação na Bahia; uma reportagem sobre “Café, Pepi e Limão”, próximo lançamento de Lula Oliveira (DocDoma), bem como um resgate de duas obras simbólicas a tratar dos aspectos da religiosidade de matriz africana e da diáspora (“Barravento”, de Glauber Rocha; e “Jardim das Folhas Sagradas”, de Pola Ribeiro) em um brilhante artigo escrito pelo professor, babalorixá e acadêmico Erisvaldo Pereira dos Santos, a edição dois de Elipse abrange, em suas 72 páginas, um panorama histórico do cinema baiano, sem deixar de focar no futuro desse cenário.
“Quando começamos a pensar a número 2, chegou a passar pela cabeça a possibilidade de lançar tudo digital. Mas, não. O carinho das pessoas (pelo impresso) ficou evidente. Vamos perceber isso daqui a 10, 15 anos, quando alguém chegar e falar que tem guardada a revista até hoje. Que tem muito carinho com ela, que a usa como fonte para as matérias, para as pesquisas, para os estudos”. A Revista Elipse pode ser solicitada gratuitamente pelo e-mail ongcontato@gmail.com. Abaixo, você confere o papo completo.
A revista Elipse chega a sua segunda edição impressa trazendo um destaque variado a nomes da cinematografia baiana. Com uma capa dedicada a Wagner Moura, uma entrevista pungente feira pela Flávia Guerra, o diretor de “Marighella” traz uma perspectiva profunda sobre a situação do Brasil em termos políticos e culturais. Como editor-chefe, como foi essa busca por um nome como o de Wagner para ilustrar a revista?
O Wagner Moura está morando nos Estados Unidos, onde se prepara para a série “Narcos”. Sentimos que ele estava num momento de autopreservação, porque sabia que, quando falasse, seriam coisas muito potentes. E não deu outra. A entrevista é muito forte na maneira como ele percebe o cinema, a cultura e a política no Brasil. E isso vindo de uma pessoa que está morando nos Estados Unidos, com um governante que é, também, conservador, e que tomou atitudes muito semelhantes no início da pandemia, em relação ao enfrentamento da doença viral. Na entrevista, o Wagner fala sobre isso com muita propriedade. Nós queríamos uma entrevista que fosse de fôlego, como aconteceu na primeira edição, quando a capa foi com a Dira Paes. Não queríamos nos ater a apenas os filmes mais recentes dele, mas falar da maneira como vem projetando a carreira e desse momento difícil do cinema do país. Ele é, sem dúvida, o grande ator latino americano da atualidade. Era muito oportuno falar com ele sobre diversas coisas. A Flávia Guerra conseguiu conversar com ele via plataforma digital e encontrou um Wagner Moura bastante à vontade para falar sobre Brasil, Bolsonaro, cinema e tudo que está envolvendo a Cultura neste momento. E também sobre “Marighella”. Da expectativa de que, agora, finalmente, o filme vai ser lançado. Foi uma entrevista na qual ele estava bem à vontade. Ele estava muito precavido antes, por conta de uma leitura errada que fizeram de uma entrevista dele em Sidney, quando foi júri de um festival (N.E. Entrevista concedida ao jornal The Daily Telegraph). Nessa entrevista, inclusive, ele fala que não tem rede social. É uma forma dele se proteger. Porque, certamente, ele seria atacado de todos os lados, como vem sendo já. O cara cujo personagem Capitão Nascimento era o símbolo da direita, “virou para o outro lado” ao fazer “Marighella”. Falo entre aspas, porque não tem isso de direita ou esquerda nesse caso. Mas tem essas leituras oportunistas que as pessoas fazem, sem ao menos ver o filme. Quando foi lançado no Festival de Berlim, no ano passado, o Wagner chamou a atenção para o que acontecia no Brasil. Assim como o Kleber Mendonça fez na época de “Aquarius” e “Bacurau”. A estagnação do cinema brasileiro veio em um momento em que estava no ápice. Vínhamos de um ano como 2019, com uma dupla premiação em festivais importantes. (N.E. “Bacurau” e “A Vida Invisível”, do diretor Karim Aïnouz, ambos premiados em Cannes). Nós estávamos na crista da onda. Depois de 20 anos de uma construção de uma política, de uma formação de uma “indústria”. Digo entre aspas porque essa indústria nunca aconteceu de fato. O que aconteceu foram políticas que favoreceram que esses filmes pudessem ser feitos. Quando conseguimos encontrar meios para assegurar uma continuidade, veio esse duplo baque. Primeiro por parte do governo que, descaradamente e explicitamente, vem sabotando o cinema e a arte de forma geral. E depois com a pandemia, que surgiu como um golpe fatal, a ponto de paralisar as produções.
É um momento de desolação, mesmo. Em um dos textos da revista, o Alfredo Manevy cita uma das falas do atual presidente acerca da declarada extinção da Ancine sob o pretexto de que o poder público “não tem nada que se meter a fazer filme”. O que é uma imbecilidade, uma vez que o cinema é um gerador de empregos, de renda. Um potencial econômico imenso.
Sim, o Wagner Moura cita isso na entrevista dele. O governo não pode ter essas atitudes de ir contra o cinema. É uma idiotice, porque o cinema é economia. O audiovisual movimenta muito mais recursos que outros setores. É dinheiro que está sendo investido em diversas áreas que envolvem o audiovisual, gerando emprego e renda. Então, é uma burrice. Mas o Fabrício Boliveira, em outra entrevista potente da revista, fala que, apesar disso, ele tem visto que há um movimento que é difícil de parar, que é difícil de se interromper. Que já está por aí, espalhado. Os grupos e os coletivos vão continuar fazendo cinema. Mesmo que seja na guerrilha. Um exemplo disso é o que trouxemos na seção Making Off, um matéria sobre o filme “Café, Pepi e Limão”, que o Lula Oliveira produziu. Foi um filme feito na guerrilha. Câmera na mão, filmado na rua. Isso não vai parar. Durante a entrevista, Wagner Moura citou uma frase da Fernanda Montenegro que nós até colocamos na capa da revista. “Eu sei que nós, artistas, a Arte e a Cultura, vamos existir. E isso vai passar. Governos passam”. O cinema vai continuar, só que é difícil. É doloroso. Tem muita gente que vive disso, que realmente precisou de auxílio durante a pandemia. Porque não é só diretor, não é só ator. Nós acabamos por falar muito de uma certa parte que está ali em cima, na ponta do iceberg. Mas tem todo um chão de fábrica. Tem os eletricistas, os maquinistas, os contrarregras… Enfim, é muita gente que recebe um, dois salários. Recebe só quando tem alguma coisa sendo realizada, pois, muitas vezes, é um trabalho freelancer. E esse pessoal ficou muito na mão agora. A Lei Aldir Blanc vem ajudar nesse sentido. Trata-se de um momento muito complicado que estamos passando. Os filmes vão continuar, certamente, mas não com aquela mesma frequência, com aquela mesma regularidade. Sempre vai ser uma luta para conseguir colocar esses filmes em cartaz, para conseguir uma liberação da Ancine, para conseguir levar um filme a um festival. Os obstáculos serão muitos. Temos um governo que, infelizmente, não apoia a arte brasileira, que é a grande bandeira do país. A imagem que o país tem lá fora vem muito dessa produção artística, com a música e o cinema, principalmente. Desde Glauber Rocha, que foi de suma importância para a internacionalização do nosso cinema, e “O Pagador de Promessas”, cujo diretor, Anselmo Duarte, não é baiano, mas fez o filme que respira toda essa baianidade ao ser realizado na Bahia. Enfim, é complicado.
A revista Elipse é um projeto que tem você como editor-chefe e a ONG Contato à frente da empreitada. Como surgiu o convite da ONG para você assumir essa missão de editar uma revista impressa?
Eu já cubro essa área de cinema há 25 anos. Puxa, 25 anos, já? Isso tudo? (risos) E a Contato é uma ONG cujas pessoas que fazem parte eu conheço há um tempo. Trata-se de uma ONG voltada fundamentalmente para a área cultural. E o Helder Quiroga, que é um dos coordenadores, tem uma presença política muito forte aqui em Minas Gerais. Ele está sempre presente nos debates, nos pleitos que são feitos pela classe juntos aos governantes. Tanto na esfera municipal como na estadual. Ele é uma voz muito ativa e eu já o entrevistei algumas vezes antes. Com a mudança dos jornais a partir da internet, nos últimos anos, a parte de Cultura (no impresso) foi ficando cada vez mais debilitada. No caso do cinema, o espaço para as críticas de cinema foi diminuindo. O espaço é sempre maior para os blockbusters, para os filmes mais conhecidos. Eu agradeço ao jornal onde trabalho há mais de duas décadas (o Hoje em Dia) por eu ainda poder continuar escrevendo sobre cinema. Atualmente, eu sou o único setorista cobrindo cinema no Estado. Isso entre os veículos tradicionais. Então, o Helder, conhecendo o meu trabalho, vendo a cobertura que eu fazia da política cinematográfica em Minas Gerais, me chamou para ser o editor da revista. E eu fiquei muito feliz. Porque era um sonho antigo meu fazer uma revista de cinema. Enquanto presidente da Abraccine, eu cheguei a cogitar isso algumas vezes. Mas o pessoal achava que era uma loucura por todas essas mudanças que eu acabei de falar. A impressão era de que o papel é algo ultrapassado. Há um certo consenso de que tudo, hoje, tem que ser digital. Mas nós já tínhamos o site da Abraccine, que, entre suas seções, publicava críticas e matérias. Então essa ideia de fazer uma revista ficou guardada. Quando veio o convite do Helder foi como um sonho sendo realizado. E eu confesso que fiquei meio temeroso. “Puxa, uma revista em papel? (risos) Como é que é isso? Como vai ser essa recepção?” Aquele temor de todos, aquelas ressalvas todas, pareciam ter me contaminado no início. Durante a produção da revista, porém, eu não tive dúvida de que a revista seria um marco. Hoje, ela é a única revista de cinema impressa com reportagens e análises exclusivamente sobre a produção brasileira. Existe a Teorema, que publica críticas, mas com esse nosso perfil, a Elipse é única. Antigamente, a gente tinha a Revista de Cinema, que infelizmente encerrou a parte impressa. Não queremos que isso se repita com a Elipse. Esperamos que ela não seja uma revista de curta duração, como aconteceu muito no passado. Minas Gerais tem um exemplo disso com a Revista de Cinema, lá nos anos 1950, feita pelo Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais. Importante celeiro de críticos, de debates para o cinema brasileiro. E eles fizeram poucas edições. Mas eram revistas muito fortes, muito potentes. Apesar de feita há cinco décadas, até hoje recorremos aos seus textos para falar sobre neorrealismo, a metodologia de crítica…
As entrevistas com Wagner Moura e Fabrício Boliveira, realmente, trazem reflexões urgentes sobre o que vem acontecendo.
É meio estranho eu falar isso como editor, mas são matérias muito fortes, muito pujantes. Que retratam bem o momento que o audiovisual brasileiro está passando. De bom e de ruim. Isso ficou bem claro para a gente desde o início. De que precisávamos traçar esse diálogo. Não seria mais uma revista para falar apenas de bastidores, sobre o que estava vindo. Nós precisávamos ir mais a fundo e refletir todos os setores da produção do audiovisual do Brasil. E, para isso, você tem que falar de política, muitas vezes. A Elipse é uma revista muito forte nesse sentido, politicamente. Até pelo momento que a gente está vivendo, não tem como você escapar disso. Quando você pergunta para um ator, para um diretor, como o Fabrício Boliveira ou o Wagner Moura, que são muito articulados, muito ligados à questão do cinema como um movimento, como representatividade, a resposta é direta. No caso do Wagner, mesmo hoje ele estando com uma carreira internacional, a questão dele, hoje, é fazer um projeto com personagens latinos que não caiam num estereótipo. E o Boliveira, durante essa quarentena, está na Bahia fazendo vários experimentos de lives, filmes feitos na guerrilha. Esses dois, ao darem entrevistas e ao serem questionados sobre como estão vendo o momento atual, oferecem uma resposta muito crítica, muito cética em relação ao pensamento do governo brasileiro em relação ao cinema. São observações que vêm bem fundamentadas. Temos uma coluna do Alfredo Manevy, que foi secretário do Ministério da Cultura e presidente da SPCine, uma pessoa que conhece profundamente a história da política cultural no país desde muito tempo. Quando ele fala nessa edição sobre a falta que o Ministério da Cultura faz em um governo como o de hoje, faz todo sentido. Porque você vê que a Cultura está sendo jogada aí, de secretaria em secretaria, ministério em ministério, mostrando qual é a dimensão que esse governo tem sobre a Cultura. Enquanto você tem um ministério, você valoriza a Cultura de um país, criando mecanismos para capacitar e engradecer mais essa arte que é produzida no país.
O nome Elipse é bem representativo deste momento.
É muito por isso. Eu mesmo, como jornalista, percebo que é algo muito notório escrevermos sempre sobre os ciclos. “O cinema brasileiro vive em ciclos”. Foi algo que virou quase um chavão. E hoje, mais uma vez, infelizmente, isso se comprovou. Depois de duas décadas de uma produção contínua, de uma mesma política, um pensamento para o cinema brasileiro, tudo está sendo, mais uma vez, descontinuado. O que propomos como publicação são outras maneiras de pensar sobre o cinema brasileiro que vão além dos filmes que estão em cartaz. E eu acho que a elipse é uma imagem muita clara nesse sentido. Agora nós estamos um pouquinho longe do sol, mas vamos continuar esse movimento de translação e, daqui a pouco, estaremos próximos de novo. É aquilo que eu te falei agora a pouco sobre o Wagner Moura. Isso vai passar. Nós estamos um pouco longe, está meio frio agora. Daqui a pouco, vamos nos aquecer de novo, pois tenho certeza que estaremos perto sol outra vez. Enquanto isso não acontece, a gente vai aqui, debatendo, conversando, apontando caminhos, mostrando onde que o cinema, apesar de tudo, está sendo produzido. Quais as ideias que estão sendo pensadas. Ideias, existem muitas. Em todos os lugares. E essas ideias não estão concentradas apenas em Rio, São Paulo ou Minas Gerais. Estão na Bahia, no Amazonas, no Pará… E esse é o grande barato da revista quando ela propõe fazer uma edição temática. Nós tivemos Minas Gerais, primeiramente, como norte da revista. E nessa segunda edição, a Bahia. Mas a Bahia como um exemplo do passado, do presente e do futuro do cinema brasileiro. Usando esse local para falar de uma realidade macro do país. E a Bahia, nesse sentido, funciona muito bem, porque tem uma presença muito forte na história do cinema brasileiro. Com o Cinema Novo, por exemplo. Temos um artigo saboroso do Orlando Senna em que ele fala que as origens do Cinema Novo estão lá, também, naquelas produções estrangeiras que vieram para cá e usaram a mão de obra dos profissionais baianos. Nós olhamos para o presente com os nomes que se confirmaram e contribuíram para dar essa cara tão diversa de nosso cinema. A Helena Ignez, musa do Cinema Novo e do Cinema Marginal, de uns 15 anos para cá se revelou como uma brilhante diretora. Ela até fala na entrevista que poderia ter se destruído totalmente ao ter convivido com duas potências intelectuais tão fortes (Glauber Rocha e Rogério Sganzerla). Mas, não. Ela se reinventou.
É perceptível um foco das pautas das duas edições para matérias que abrangem uma maior diversidade e representatividade no cinema brasileiro. Você poderia falar um pouco sobre esse direcionamento editorial e sobre a reflexão acerca disso no contexto do cinema brasileiro como indústria?
Nós temos essa preocupação de trazer pautas que foquem em mulheres, negros e gêneros. De mostrar essas várias vozes que estão presentes, hoje, no cinema brasileiro. Além da Helena Ignez e da figurinista Verônica Julian, nesta edição temos o Fabrício Boliveira, que está despontando fortemente, tanto no teatro e na TV quanto no cinema, com papéis muito potentes. O último deles (N.E. No filme “Breve Miragem de Sol”), dirigido pelo Eryk Rocha, eu acho que foi o grande desafio da carreira dele, como um personagem, um taxista, que retrata esse momento desesperançoso vivido no Brasil. Temos uma seção na revista chamada Representatividade. Acho que isso já diz muito. Na primeira edição, tivemos um excelente texto da Débora Ivanov, que é uma pesquisadora nesse assunto e, dentro da Ancine, estimulou muito a criação de editais e leis que se voltassem para o aumento da participação da mulher. Ela lutou muito para isso. Pela inclusão da mulher negra, da mulher trans. Ela traz esse artigo para a edição 1 e mostra muito claramente que houve um avanço muito pequeno ainda. Tem crescido, mas não ainda de uma forma que seja mais próxima da participação do homem. Ainda tem muito a ser conquistado. A gente pensa sempre em atriz, diretora e, no máximo, roteirista. Mas, nesse artigo, a Débora vai olhando para cada setor dentro do audiovisual. Diretoras de arte, diretoras de fotografia, cada vez que você vai aprofundando, vai percebendo o quão reduzido é a participação de pessoas negras e mulheres nesse segmento. Para nós, é muito importante falar sobre isso, porque reflete a discussão do hoje. Essa é a grande questão que se está debatendo. Não só na Cultura, mas no país como um todo. Tivemos avanços nesse sentido, da busca de igualdade, de dar voz a essas pessoas. E sofremos um retrocesso nos últimos dois, três anos. Na segunda edição, foi a questão da religiosidade. Como que ela foi tratada dentro do Cinema Brasileiro. Muitas vezes com certo estereótipo, principalmente quando você olha para as religiões de matriz africana. Quando você vai buscar um filme mais palpável, mais fiel aos preceitos dessas religiões, são pouquíssimos exemplos. Então, o Erisvaldo Pereira, que fez pós-doutorado na Universidade Federal da Bahia e é o autor do texto, pega o “Barravento”, do Glauber Rocha, e o “Jardim das Folhas Sagradas”, do Pola Ribeiro, e faz uma comparação de como isso foi abordado dentro desses dois filmes como drama. O Erisvaldo é um Babalorixá a quem nós demos essa voz na revista. Essa voz do candomblé, das religiões de matriz africana, que, também, estão sendo muito perseguidas hoje. Há certa pressão pelas religiões mais evangélicas como preponderantes na atualidade por partes de alguns governos. Então, é importante dar essa voz também. E não só nessa seção, mas tudo isso se reflete na própria condução da revista. Tivemos a Dira Paes na capa da edição 1, que, talvez, seja o maior símbolo feminino do atual cinema brasileiro. Uma atriz paraense. E a próxima edição vai ter uma outra mulher em destaque. Eu ainda não posso revelar, mas teremos uma novidade bacana para a terceira edição dentro dessa perspectiva nossa. Não se trata apenas de escolha das pessoas, mas do que elas podem falar. A entrevista do Fabrício Boliveira, por exemplo, é quase toda sobre a questão de raça. Hoje ele tem uma importância semelhante a do Lázaro Ramos. Ele conseguiu ser um protagonista de novela e de filmes. Na revista, Fabrício fala como é difícil se tornar um exemplo. Ele tenta tornar isso mais suave. Mas nunca deixa de ser um peso na carreira dele ter esse papel, essa incumbência. E isso justamente por serem apenas dois atores com esse destaque atualmente, ele e o Lázaro Ramos. Poderia ser muito mais. Fabrício gostaria que chegasse a um ponto que não precisasse dizer ator negro. Ele lembrou do que aconteceu com o Simonal. Se o Simonal estivesse com outros artistas negros ali em volta dele, se houvesse um movimento ali, haveria gente para apoiá-lo. E ele não ia passar parte da vida tachado como um mentiroso, como um delator, e não teria caído no ostracismo depois, como é mostrado no filme que o Fabrício protagonizou.
Na entrevista, inclusive, o Wagner Moura fala a respeito da situação difícil de profissionais do cinema que trabalham fora do holofote. Ele cita diversas profissões tão importantes quanto a dos protagonistas para a arte coletiva que é o cinema. Observei que a Elipse dedica uma seção especial a profissionais dessas áreas, como contrarregra, figurinista. Bem louvável esse destaque. Na que tem a figurinista Verônica Julien, as informações sobre paletas de cores, sobre junções com a direção de fotografia, são surpreendentes.
Sim, é a Seção “Tá nos Créditos”. É a dobradinha que a gente tenta fazer: ao mesmo tempo em que você está se aprofundando, apontando caminhos e discutindo o cinema brasileiro, está, também, informando. Essa é a dobradinha ideal que buscamos. Você tem uma pauta muito forte, que é uma entrevista como a do Fabrício Oliveira falando sobre a questão racial, e tem uma matéria sobre o funcionamento do cinema. A cada edição, vamos falar de uma profissão envolvida com cinema. Embora os atores estejam ali na capa da revista, porque é natural que isso aconteça, por questões comerciais e editoriais, nunca vamos esquecer dessas outras pessoas que estão ali participando para que o cinema continue existindo. Tivemos uma matéria sobre um contrarregra (Ben Bittencourt, conhecido como Benhur), que trouxe histórias saborosíssimas. É interessante perceber como eles participam com ideias e, muitas vezes, podem até mudar o rumo de uma história. Cinema é uma arte coletiva. Sabemos muito bem disso. Tem diretores que chegam ao set e abrem aquele processo de escuta. Estão muito abertos para isso. Helena Ignez trouxe uma frase ótima na entrevista a respeito disso. Uma coisa que ela aprendeu com o Sganzerla é você estar atento aos pequenos milagres que acontecem dentro do processo de filmar. Você chega com um filme já com roteiro, tudo estabelecido, mas ocorrem certas coisas durante o processo que são mágicas. Que podem ser uma ideia vinda de alguém, uma ação que está acontecendo ali do lado, uma conversa informal… Se ficar atento a tudo isso, você absorve, se apropria disso para o filme, e este fica cada vez mais rico. É o que o Sganzerla chamava de milagre. E ainda nesse aspecto de destacar outros campos técnicos, temos uma seção chamada “Som & Música”, escrita por Mário Di Poi e o Alexandre Guerra. É uma rara oportunidade de se aprofundar nesse tema do som, que é tão importante quanto a imagem. Nós nos atemos muito à questão da imagem, e esquecemos do som. Esquecemos o quanto ele contribui para o filme ser realizado, para criar um suspense. Por exemplo, quando você pensa na cena do “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, em que o Hal 9000 está escutando o astronauta desligando os equipamentos. O som, ali, entra para fazer o seu papel. No Brasil, o som sempre foi um pouco marginalizado e relegado. Felizmente, isso tem mudado. Temos empresas de ponta, como a INPUT, onde o Mário Di Poi trabalha. Hoje, ele está criando uma filial lá nos Estados Unidos. Ele fez o som do “Democracia em Vertigem”, filme da Petra Costa. Trouxe para o Brasil um designer de som famoso e premiado nos Estados Unidos, o Leslie Shatz, que ficou impressionado com o trabalho feito aqui. Ele mesmo fala que isso não tem muita bandeira. É só aprender, ter o conhecimento e fazer. Ter as condições ideais para você produzir e replicar isso no Brasil. Temos conseguido isso, felizmente.
Na edição dois, temos diversas pautas voltadas para artistas da Bahia, como o Wagner, o Fabrício. Produções daqui no âmbito de live action e de animações. Esse planejamento de contemplar a Bahia como tema surgiu de que modo na concepção da revista?
Não me lembro em que momento a Bahia surgiu como uma ideia da pauta. Eu gostaria muito de poder falar: “eu tive a ideia de dar o destaque à Bahia” (risos). Não. A coisa foi se formando. Por tudo isso que está acontecendo na Bahia. O interesse em entrevistar o Fabrício, em entrevistar o Wagner. Quando a gente começou a pensar a revista, o “Marighella” tinha acabado de ser exibido. Então, nós achávamos que era legal ter uma entrevista com o Wagner Moura. Ele está com essa super carreira lá fora, participando de filmes importantes. Só nos últimos tempos, foram três filmes em que ele atuou. E a gente aponta também para o futuro, com o cinema de animação feito na Bahia, que vem crescendo de maneira muito exponencial. Eram poucos antes. A gente tinha só o Chico Liberato que, mesmo com tão pouco, fez vários longas e construiu uma história importante dentro da animação brasileira. Hoje, você vê isso aí com várias produtoras, várias pessoas fazendo animação na Bahia. Além disso, temos pessoas próximas da Bahia que nos relatam como essa produção no estado vem acontecendo. O Orlando Senna é muito próximo ao Helder, é um amigo. Então, as coisas foram meio que sendo costuradas desse modo. Quando vimos, pensamos: “é Bahia!” E Minas com Bahia tem tudo a ver, né? Tem aquela música da Daniela Mercury com o Samuel Rosa em que eles cantam isso. E tem tudo a ver, mesmo. Nós temos uma conexão muito forte com a Bahia como trocas de ideias. Fizemos uma live recentemente com o Fabrício Boliveira para lançar a revista. Animado, vestindo uma camisa com a bandeira de Minas, ele lançou essa ideia de movimentar o pessoal lá na Bahia e a gente aqui em Minas. Unir forças. É muito isso. Acho que o baiano e o mineiro têm muito disso. Estão prontos para as ideias, para fazer trabalhos coletivos, a escutar.
Podemos imaginar as edições futuras com um foco em estados específicos do Brasil?
A coisa está caminhando nesse sentido. Mas não é algo estanque. Às vezes pode ser um estado, pode ser uma região. Por exemplo, não dá para fazer uma revista com foco em Roraima, pois a história deles com o cinema é bem recente. Mas pode ser uma região. Você junta ali Amazonas, Rondônia, Acre, aí sim, vai dar um panorama bom. Quantas pessoas bacanas que vêm dessas regiões, desses estados que pertencem a essa região? A ideia é ir vasculhando, ir passando por esses lugares, a partir deste prisma que eu lhe falei: falar do local para chegar ao macro.
Em um período no qual as publicações impressas têm deixado de existir (algo que me angustia, pois adoro o impresso. Trabalho em um veículo impresso e dependo disso para sobreviver nesse campo), como foi tratada essa questão financeira na elaboração do projeto de Elipse em um formato em papel?
Nós estamos viabilizando a revista porque ela foi aprovada pela Lei de Incentivo de Cultura do Estado. Temos patrocinadores que vão viabilizar um determinado número de exemplares. E a nossa expectativa é que isso continue. Porque ela vem dando super certo. Eu lhe falei do meu receio inicial, mas, quando você vê a revista, as pessoas a manuseando, tem um carinho, uma certa ternura ali. Ela é bem bonita, tem um projeto gráfico soberbo do Fred Paulino, um dos grandes artistas visuais aqui de Minas Gerais, que faz você querer folhear. Essa questão tátil é muito forte. Durante o lançamento da primeira edição, já que o da segunda foi totalmente virtual, nós trouxemos a Dira Paes aqui para Belo Horizonte, para a sede da ONG Contato. Também estava presente o Helvécio Ratton. Naquele dia, havia uma energia ali. Uma percepção da importância de uma revista como essa estar falando sobre o cinema brasileiro nesse momento. Ela dá um certo endosso. Percebemos que não estamos sozinhos. O virtual vem sendo, hoje, a nossa forma de comunicação por causa da pandemia. Mas nada tira a sensação de você estar ali, comungando aquelas ideias. É a mesma coisa com uma sala de cinema. Hoje, estamos vendo filmes cada vez mais em uma telinha. Acompanhando os festivais de cinema todos de forma on-line. Mas compare um festival on-line, como aconteceu com o Olhar de Cinema e Gramado, com o que acontecia lá de forma presencial. É algo muito mais rico. Você está muito mais aberto a aprender. Você está ali para aquilo. Em casa, cobrindo festivais, você está suscetível a interrupções. O telefone toca, alguém bate na porta. Enfim, em um festival, você está imerso naquilo. E com a revista, aconteceu algo semelhante. A importância que as pessoas dão àquilo é muito maior. A gente vai perceber isso daqui a 10, 15 anos, quando alguém chegar para mim e falar que tem guardada a revista até hoje. Que tem muito carinho com ela, que a usa como fonte para as matérias, para as pesquisas, para os estudos. Da mesma forma como é, hoje, a Revista de Cinema mineira e tantas outras publicações. A internet é um buraco negro. Ela te devora. Vai te levando para diversos caminhos. E nós não sabemos como isso tudo vai ser preservado. Nem os filmes sabemos como serão preservados. Como essas cópias ficarão no digital? É uma grande discussão hoje. Quando acontece alguma edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, essa é um grande discussão sempre: qual é o caminho? Qual é o padrão para preservar todo esse material? E vira e mexe acabam chegando à mesma conclusão de que a película é a forma mais segura, ideal de preservação de filmes. No caso das publicações, o problema do papel é que é bem mais caro. O digital se resume a contratar um webdesigner, pegar o conteúdo e colocar no ar. Aqui você tem outras instâncias. Você tem a gráfica e a distribuição. Mas tem valido muito a pena e acho que vai continuar assim por um bom tempo. Assim espero.
Sim. No meu caso pessoal, sempre recorro ao meu acervo de revistas impressas, como a SET, a Revista de Cinema, dentre outras. Imaginar esse potencial com a Elipse é algo bem empolgante.
A revista, da forma como a estamos concebendo, ela é só um ponto de partida. A nossa ideia é, futuramente, fazer uma plataforma também. Fazer um portal de notícias em que a revista vai estar lá dentro. É importante, politicamente, para o cinema brasileiro. Acho que não tem hoje um portal de informação, de notícia nacional falando de tudo que está acontecendo em todos os estados, em todos os lugares. Tem algumas coisas muito pontuais, que servem a alguns propósitos, voltados alguns deles para o mercado, mas o projeto que o Helder pretende fazer é uma coisa muito maior. E esperamos conseguir isso futuramente. Podem surgir livros e estudos em determinadas questões do cinema brasileiro que não foram contempladas. Precisamos fazer pesquisas sempre. Constantemente. Qual o número de produtoras nas cidades? Número de cinemas? Esse tipo de coisa. Prospecção, mesmo. É possível abrir mais um cinema? O que está faltando? Está faltando algum tipo de projeto? Esse tipo de compêndio de informação não temos. Não sei se na Bahia, mas em Minas não tem esse tipo de levantamento sobre a razão das pessoas irem ao cinema, ou não irem. O que se tem são coisas muito pontuais. Mas uma pesquisa de fôlego, que vai cruzando todas essas informações, não tem. É algo que vai ajudar muito a entendermos o papel do cinema brasileiro. Porque, vira e mexe, ouvimos aquela história de que não é necessário. Até hoje, ouvimos falar que só tem mulher pelada no cinema nacional (risos). É incrível esse argumento. “Ah, só tem pornografia, só tem devassidão”, esse tipo de coisa. Nós ouvimos isso com uma frequência aterrorizante, ainda. Então, a gente precisa tirar esses mitos. Ter uma pesquisa, nesse sentido, é fundamental para compreender o que as pessoas entendem como cinema brasileiro. O que elas esperam do cinema brasileiro? De onde elas tiram essas informações do cinema brasileiro? Elas assistem a filmes brasileiros, realmente? Quais filmes elas estão vendo? Dos anos 1970, por acaso? Estão vendo no Canal Brasil, na Netflix ou no cinema? Qual o parâmetro dessa pessoa? Qual seria o parâmetro de um filme que não é lascivo? Então, são perguntas que ficam meio que no ar. É um passo para a Elipse, já falando de uma coisa maior, fazer futuramente. As ideias são muitas, como você vê. Temos essa inquietação de trazer esses elementos para o cinema brasileiro e aprofundar mais nele. Fazendo essa revista, ficamos cada vez mais cientes dessas lacunas, dessas ausências existentes na nossa produção. Ausência de formação, mesmo. Quando lemos um artigo como o da Débora Ivanov e da Luciana Vieira apresentando números da participação da mulher, é uma coisa que dói na gente. Machuca, mesmo. O quão pequeno é o papel da mulher nos diversos setores da cadeia produtiva do audiovisual é impressionante. Sabemos que é pouco, mas não tão pouco como imaginávamos. Transformando tudo isso me números, vamos consolidando uma política, um pensamento, para mudar e melhorar o estado de coisas.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. A foto que abre o texto é de Julia Alves.