entrevista por André Aram
Filha de pai baiano e mãe mineira, e nascida no Rio de Janeiro em dezembro de 1949, a cantora e compositora Angela Ro Ro prefere se definir como a sem vergonha carioca. Em seguida, porém, derrete-se de amores pelos pais: “Eu sou uma cópia malfeita de Mamy, porque a verdadeira estrela é a Conceição, da onde eu puxei a voz e a música”, declara.
Criada em Ipanema, zona nobre do Rio, hoje Angela vive em Saquarema, na região dos Lagos, na companhia do caseiro e de alguns gatinhos que apareceram na casa dela, repleta de árvores, arbustos e jardins. Aos 70 anos, a cantora, famosa pelas polêmicas do passado, hoje transparece estar bem de corpo e alma, mas sem perder o bom humor sarcástico.
Aliás, em relação ao corpo, ela se mostra em excelente forma, com 60 quilos distribuídos em quase 1,70 de altura, come pouca carne e avisa que, desde 1998, deixou todos os hábitos nocivos, que ela chama de vícios no passado.
Em um bate papo por telefone, onde falamos basicamente sobre música, Angela Ro Ro não deixou de comentar o momento difícil (financeiro) que está vivendo há tempos, e ressalta que gostaria de fazer mais lives musicais, pois até o presente momento, desde que a pandemia começou, só fez duas e… “já foi o dinheiro”, revela.
Ela ainda diz que segue compondo (muito!) e que pretende lançar mais um disco (que seria seu 11º álbum de estúdio – “Selvagem”, o mais recente, é de 2017). E que também quer lançar uma biografia, que “talvez não seja uma biografia, talvez seja uma mistureba, meio hippie da época que eu era hippie há 50 anos”, explica. Papo divertido como Angela Ro Ro.
A pandemia te afetou bastante?
Vim pra Saquarema em fevereiro, para passar o Carnaval aqui. É uma casa que pertenceu aos meus pais. É melhor do que Copacabana, e me sinto muito bem comigo, falo sozinha, às vezes faço piada, às vezes, dependendo do texto que acabei de falar, pego um papel e escrevo. Tenho feito alguns esboços aqui desde março. Tem algumas coisas com o meu fiel escudeiro, o “Maestrinho” (Ricardo Mac Cord), meu pianista e arranjador favorito, 30 anos juntos e ele tem muita coisa, é o meu maior parceiro até hoje.
Há pouco tempo, você postou uma mensagem pedindo doações (financeiras). Você recebeu ajuda das pessoas após o post?
Várias pessoas ajudaram, com R$ 10, algumas R$ 5. No post, se você procurar no meu mural está lá: “Se puderem, né, estou passando por dificuldades financeiras…”. Não estava conseguindo vender live e… não sei vender. Fiz duas em julho, e já estou desesperada de novo financeiramente. Mas pedi para, se quiserem e puderem, depositar R$ 10, uma coisa que achei que poderia ser acessível para a maioria das pessoas que gostam da minha música. Teve pouquíssimas pessoas que botaram até R$ 40, R$ 50, mas isso foi em junho ou julho. Meu anjo, já foi o dinheiro, né. Fiz duas lives com um cachê honesto, uma pela APA – Amigos das Artes (Cultura em Casa), maravilhosa, da Secretaria de Cultura de São Paulo, e outra pelo SESC em Casa, também em São Paulo, que foi também um cachê honesto (nota: as duas lives podem ser vistas no final do texto).
Você lançou seu primeiro álbum em 1979, numa época em que os LP’s vendiam muito. O mercado fonográfico bombava na época, não deu pra ganhar dinheiro com a música?
Eu comecei em 1979, quase 1980. Eu vendi a casa que eu tinha por necessidade financeira há uns 7 anos. A princípio, eu a comprei com bastante dinheiro de direito autoral por uma razão: só tive uma casa na minha vida (no meu nome) porque a minha madrinha de carreira, a maravilhosa Maria Bethânia, gravou antes de mim uma canção minha. Meu empresário Paulinho Lima entregou uma demo tape a ela na época com algumas músicas, e ela vibrou em “Gota de Sangue”. Com toda razão, cá pra nós, sem modéstia, é uma música bonita pra caramba, né? Aliás, acho a minha obra todinha muito bonita (risos). E então Bethânia gravou e foi lançado antes do meu disco. Foi lançado com ela cantando no LP “Mel” (1979) que vendeu mais que o Roberto Carlos, que detinha o recorde de vendagem de vinil na época (nota do editor: outra canção da demo, “Renúncia”, entrou no repertório dos shows de Bethânia). Bethânia conseguiu vender 1 milhão e cacetada de cópias. Eu até a acompanho tocando piano (no disco), e me tremia toda porque sou tiete dela desde sempre. Comecei a trabalhar quando tinha uns 30 anos de idade, fui tardia na música, então sempre fui tiete de Bethânia. Essa música que ela gravou, eu fiz sozinha sem parceria, sem nada, e ela disse: “Eu quero você tocando piano”. E eu: “Aí, Jesus”. Quase tive trigêmeos, mas toquei, e graças a esse disco da Bethânia (Angela começa a cantarolar a canção “Mel”, que se tornou um hino lésbico, ao telefone) eu (comprei uma casa). Daí eu digo: de onde veio algum dinheiro na minha vida? Foi logo na primeira música gravada pela Bethânia, que vendeu mais de 1 milhão de cópias, coisa que hoje em dia não é alcançável por nenhuma pessoa. Minha mãe ficava enlouquecida e dizia “entrou dinheiro, compre um carro” e eu não fazia nada com o dinheiro, botava tudo na poupança. Não gastava um tostão, a única coisa que comprei foi uma bicicleta com uma cestinha na frente, mas é a minha cara, porque não sou deslumbrada. Fui hippie, ainda sou hippie, tento economizar, não esbanjo. Não tenho carro, você acredita? Já tive, mas nunca tive um carro importado, nunca tive um carro novo, zero, sempre tive carros nacionais e de segunda mão, e sempre fui muito feliz dirigindo eles. Há muito tempo não tenho carro.
Na década de 70, você viveu em Londres por uns tempos, inclusive a sua carreira musical começou lá, não foi?
Fiz o Teatro Ipanema em 1979. O teatro era pequeno (222 lugares), mas foi um sucesso, ficaram mais de 150 pessoas do lado de fora. Tive que voltar um mês depois para fazer dois shows ao invés de um, e dali o Paulinho Lima e o Luiz Felipe Aguiar me ajudaram muito. Paulinho me arranjou um contrato com a Polygram, que tinha grandes nomes desde sempre: Aloysio de Oliveira, Silvinha Teles, Caetano Veloso (no início), a Gal começou lá, Bethânia era contratada, Belchior estava lá, quer dizer, só tinha gente finíssima. E eu tive a chance de gravar pelo selo e gravei meu primeiro disco todo autoral (“Angela Ro Ro”, 1979), que graças a Deus e ao público de bom gosto faz sucesso até hoje. Mas eu já tinha feito na Europa, com 22 anos de idade (1971), uma participação com uma gaitinha de boca (sopro) no LP “Transa”, olha que luxo, do Caetano. Jards Macalé e Gil me convidaram: “Vai lá tocar, não precisa cantar não”, porque eu morria de vergonha de cantar, e até me pagaram um cachêzinho para eu tocar uma gaitinha, que me ajudou a pagar uma semana de aluguel – acho que comprei até um sapato para o inverno. É na faixa “Nostalgia (That’s What Rock’n Roll Is All About)”, em que também a Gal canta. Foi gravado em Londres, e me sinto privilegiada por essa chance. A Gal maravilhosa, eternamente, a acho uma das melhores cantoras do mundo até hoje. Ela abre a faixa imitando uma gaitinha de blues, e a gaitinha que ela faz com a boca soa melhor do que a minha (risos), mas de qualquer forma me ajudou a pagar uma semana de aluguel. Eu morava com a minha namorada na época. Gosto muito de casar. Isso foi quando eles estavam no exílio. Este LP é um dos mais importantes da vida, é o que tem “London, London”, e vende bem até hoje…
Você foi pra Londres por causa da ditadura?
Foi na virada de 1971/1972. Fui pra Londres por causa da repressão que havia aqui: o lema era “Ame-o ou Deixe-o”, e alguns deixaram por amá-lo. Eu, por amar o meu Brasil, preferi deixar, pra não ser uma das vítimas. Passei três anos na Europa, sendo a maior parte na Inglaterra. Quando voltei, fiquei naquela boemia, mas compondo muito, mas só em 1979 fui gravar – apesar do Nelsinho Motta ter me colocado no Festival de Saquarema em 1976 (nota do editor: há trechos imperdíveis do show de Angela Ro Ro no documentário “Som, Sol & Surf – Saquarema”). Ele ficava doido comigo, dizia: “Meu Deus, por que você não começa a carreira logo?”. E eu respondia: “Tenho medo”. “Medo de quê?”, ele perguntava. “Vão me arrebentar”, eu respondia, e me arrebentaram (diz, aos risos, se referindo as agressões sofridas por policiais na época da ditadura).
O que você acha do atual cenário musical brasileiro?
Pra ser sincera, continuo achando que a grande revelação é a Adriana Calcanhoto (que surgiu em 1990, risos), mas você está entendendo, não quero desprezar ninguém não, só continuo gostando de Gal, Gil, Caetano, Macalé, Tom Zé, Nana Caymmi, a despeito de qualquer besteira que ela fale… fantástica cantando, Silvia Machete e outras. É o tipo de música que eu gosto. O Zé Pedro Selistre (DJ Zé Pedro), através do selo dele, Joia Moderna, me fez uma homenagem inesquecível, maravilhosa. O selo dele tinha uma tradição de mulheres cantando compositores homens, e chegou o produtor Marcos Preto e sugeriu o oposto: “A compositora é a Angela Ro Ro, vamos pôr os rapazes pra cantar”. Então tem Tatá Aeroplano, Lucas Santtana, Lira, Leo Cavalcanti, Romulo Fróes, Thiago Pethit, Gui Amabis, Adriano Cintra, Pélico, Rodrigo Campos, Otto e outros . Eles gravaram músicas minhas e tem cada arranjo do cacete. O nome do disco é “Coitadinha Bem Feito” (2013). É um disco soberbo, eu amo esse disco, toda hora eu ouço, e toda hora eu fico encantada.
Em 2004/2005 você apresentou um talkshow no Canal Brasil chamado “Escândalo”. Como foi migrar de cantora para entrevistadora?
Foi ótimo, sabe por quê? Foram dois anos que fiz, se repetiu em 2006 e 2007, tamanho o sucesso. Me senti tão à vontade, eu misturava tudo, eu abria o programa tocando teclado, depois o Ricardo me acompanhou em algumas faixas. Adorei, porque tive uma chance magistral e única de ter como convidados Francis Hime tocando no meu tecladinho, já imaginou? Eu cantando “Sem Mais Adeus” com Francis. No making-of eu não estava nem aí se estavam filmando ou não e eu aos prantos abraçada com o Francis. Ele parecia um irmão mais velho, e ele me abraçava com um carinho imenso, uma ternura, e eu dizia: “Poxa Francis, acredite em mim, eu não sou de chorar” (risos), e eu sou super chorona. Tive a chance de fazer um programa com Sueli Costa, Alcione, Zélia Duncan, Jerry Adriani, Zé Rodrix, Frejat, Paulinho Moska, Alaíde Costa… tanta gente boa. É um luxo. Fiz 53 programas.
A revista Rolling Stone Brasil considerou você a 33ª maior voz da música brasileira…
Pra você ver que injustiça. Eu devia estar pelo menos entre as seis ou sete primeiras (gargalhadas). Acho ótimo tudo que venha reverenciar, seja o meu canto, seja a minha obra, acho tudo muito adorável, apesar de ser uma pessoa estranha. Não gosto de elogio fácil. Sabe aquelas pessoas que saem elogiando você de qualquer jeito pra encher o teu ego? Em 1982, troquei o meu ego por um Chevette de segunda mão, foi o melhor negócio que eu fiz na minha vida (risos).
Por que na década de 90, quando o mercado fonográfico ainda era forte, você gravou apenas um álbum?
Gravei um disco pela Som Livre, “Nosso Amor ao Armagedon”, ao vivo, em 1993. Eu já vislumbrava bem o nosso pequeno futuro que teremos… se tivermos, mas gravei muitos songbooks de outros autores, como intérprete, do falecido, infelizmente assassinado, Almir Chediak, que era uma pessoa queridíssima no meio, além de ser lindo, parecia o Tony Curtis, um grande ator americano. O Almir era mestre em violão, e era um produtor musical maravilhoso. Gravei songbooks do Chico Buarque, Braguinha, Dorival Caymmi, Gilberto Gil. Gravei tantas músicas com o Chediak, ele me convidava e eu ia lá com grandes músicos. Ganhei até um prêmio de melhor intérprete nos songbooks, por “Futuros Amantes”, no songbook do Chico Buarque. Olha que ‘responsa’ porque a Gal tinha acabado de gravar né (no disco “Mina D’Água do Meu Canto”, de 1995), e quando a Gal grava, fica difícil dos outros cantarem (risos), mas eu encarei. Então, gravei muito na década de noventa. Só não gravei mais de um disco meu, mas gravei trocentos discos de songbooks de grandes autores.
Você gravou muito songsbooks e também teve muitas namoradas…
Sim, várias mulheres maravilhosas. A maioria se tornou amiga, me aturaram mesmo eu sendo brocha (risos). Eu gostava muito de carinho. Eu vivia casando (risos).
Em junho, você escreveu uma frase bela, porém triste em uma rede social: “O segredo da boa velhice é simplesmente um pacto honroso com a solidão”. Qual foi o motivo?
Isso eu tirei de um post que não me lembro se achei no Instagram. Eu vi um post, e publiquei aquilo, mas foi um pedaço de uma pequena tristeza. É tão bonito que fiz até duas músicas sobre isso, mas não sobre solidão e pacto honroso, mas sobre amor, afeto, enfim eu sou poeta né, pobre de quem acredita (risos).
Como é a sua relação com as redes sociais? Você interage com as pessoas?
Eu me divirto tanto, porque faço umas bobagens. Se falam mal de mim em algum lugar, se sai um babado, se sai uma coisa truncada, mal entendido, ou então abusam da minha sinceridade para fazer fofoca, eu lido com isso tudo com muito humor. Custei a entrar na internet. Tenho acesso à internet, a smartphone… sei lá o que, menos de 10 anos pra cá. Inclusive sou uma anta e não gosto de ficar forçando muito as coisas, baixando aplicativos que não vem, e eu não enxergo direito pra ficar queimando o que tem de retina numa telinha. Mas adoro postar uma brincadeira, uma bobagem, uma declaração de amor, um desgosto, uma desilusão, um abandono, e aí faço uma piada logo depois. A vida é essa mistura disso tudo: tristeza, alegria, decepção, surpresa, esperança, encontros amorosos, separações, uniões… tem tudo né.
Você pretende lançar de fato uma biografia sua?
Se Deus quiser, porque papai era baiano de nascimento, quem herdou a rede nordestina, o jeito preguiçoso da Bahia fui eu. Eu sou muito devagar, mas quando eu tô no arranco, eu faço. Demoro às vezes anos pra fazer uma coisa, mas de repente quando você vê, está feito. Também quero fazer outro disco, e quero lançar um livro que será o meu primeiro livro, talvez não seja uma biografia, talvez seja uma mistureba, meio hippie da época que eu era hippie há 50 anos.
– André Aram é jornalista e redator. Tem passagens pela África, America do Norte/Sul e por vários países da Europa. Colabora com o Euro Dicas e outros sites e portais. É também consultor de viagens para destinos na África e Europa e apoia projetos de conservação da vida selvagem na África do Sul.
Uma das grandes. Eterna.