por Adolfo Gomes
O contracampo que revela o cineasta e sua equipe de filmagem é quase um fetiche de tão recorrente desde o começo do cinema moderno, lá pelos anos 1950. Mas, no documentário tautológico “O Reflexo do Lago” (2020), que estreou em Berlim e agora chega ao Brasil, é um pouco diferente. De alguma forma, tal expediente ao mostrar o realizador paraense Fernando Segtowick e seu câmera remete à fotografia, à moldura fixa e atemporal.
Esse enquadramento nos faz pensar em Murnau face aos encantos e sortilégios dos “mares do sul” no seminal “Tabu”. Também pode vir à tona qualquer coisa de Flaherty ou Grierson.
Enfim, não pense o leitor que esse grande preâmbulo é “reflexo” de um saudosismo atávico. Há sim, um travo amargo de nostalgia no olhar de quem trafega nas ruínas dessa paisagem em decomposição que é a Amazônia. Porém, a ecologia cinéfila implica outras demandas.
A principal delas é constatar a sobreposição de texturas (ora a placidez emoldurante, ora o cinema direto), de regimes de representação (o naturalismo elaborado e a cine-reportagem despojada) e artifícios narrativos na construção do registro. Já sabemos que as fronteiras entre o documental e a ficção são sutis, que o cinema híbrido é uma tendência contemporânea e tudo, não importa o grau de distanciamento e fidelidade, é mise-en-scène…Isso está posto – e nos últimos 30 anos, é quase impossível escapar desse paroxismo autorista.
No entanto, diante da natureza, dos rios, troncos, das inundações e perfis humanos que alternam do prosaico ao épico, da vastidão do belo à destruição, acaba parecendo um tanto “over” essa sofisticada composição formal – o espelho d’àgua aqui está estilhaçado.
“O Reflexo do Lago” é um filme afetuoso com as pessoas. Todos – dos realizadores aos moradores da região, passando pelo depoimento do jornalista Lúcio Flávio Pinto – têm a mesma envergadura criativa e reveladora. Segtowick consegue encadear os diversos discursos de maneira equânime.
Por exemplo: especialista em Amazônia, Lúcio Flávio faz, em poucos minutos, uma síntese de enorme profundidade e amplitude, perfazendo os descaminhos do corrosivo processo de ocupação da região. É notável ainda como o doc escapa ao mero didatismo do filme de tese. Segtowick reconhece que a questão é mais complexa: há também alegria ali, apesar dos pesares.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que registra imagens únicas, como se elas já pertencessem ao pós-mundo, imprime à sua trajetória uma familiaridade intrínseca com o cinema contemporâneo que alguns planos parecem saídos de outros filmes recentes.
Talvez seja demasiado esperar que “O Reflexo do Lago” se descole do seu tempo, da sensibilidade do momento. É difícil, mas, se pensarmos bem, os grandes filmes têm essa capacidade de se projetar à frente ou se instalar numa espécie de umbral ancestral, o que lhe conferem, entre outras coisas, longevidade e mistério, justamente o que evoca esse imenso lago criado artificialmente a partir dos delírios de grandeza dos homens.
O cinema não é um delírio menor em meio aos sonhos de grandeza humanos. O detalhe é que quando essa empreitada poético-visual nos comove, é porque quase não notamos o seu artifício.
O 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba irá acontecer de 07 a 15 de outubro e será online em 2020. Você pode assistir “O Reflexo do Lago” na plataforma do festival nos dias 11 e 15/10.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)