por Adolfo Gomes
O “fakir” é o cosmo ou como diz a cineasta Helena Ignez, “é tudo uma trama para a gente ser feliz”. Pode ser uma condição espiritual ou um gesto libertário? A abordagem da realizadora no documentário homônimo sinaliza para tanta coisa, que fica difícil restringir seu alcance: parece não ter fim, nem começo. Um tipo de necessidade original e sempre presente: equivale a lembrar-se, por exemplo, de quando sentimos fome pela primeira vez. E não para por aí: ela trata do preconceito, da violência, da boçalidade, da injustiça, do sexismo e outros percalços terrenos.
Amparado numa ampla e espantosa pesquisa iconográfica, jornalística e musical, o filme percorre décadas do faquirismo no Brasil – com algumas incursões internacionais a título comparativo – alargando o tema também para o naturismo e o “pitonismo”( como se nomeava nos anos 1950/60 a arte de dançar com cobras enroladas no corpo).
O famoso e hoje desconhecido faquir Silk, patrono e recordista (passou mais de 100 dias sem comer), é o ponto de partida narrativo, que não demora a incorporar figuras femininas – faquirezas – notáveis como Suzy King, cantora, atriz, dançarina e, sobretudo, espírito livre, forte e contestador -entre outras mulheres invisíveis na historiografia oficial brasileira.
Helena Ignez, por sinal, tem se ocupado com organicidade desse magma feminino que, pouco a pouco, vem despontando na superfície dos debates nacionais. Não faz, necessariamente, um cinema engajado, mas pessoalíssimo e algo anárquico. Muito belo o plano quase uterino (e cósmico) que encerra o documentário.
De outra parte, sua poética parece ainda em construção, à procura de uma certa autonomia possível, num ambiente tão contaminado por imagens e (auto)referências. Aqui, Ignez maneja muito bem o material de arquivo, o cancioneiro popular, a voz over; mas sua encenação fica entre a fantasmagoria e a homenagem aos cineastas com quem trabalhou como atriz. O recurso de desnudar o dispositivo e a filmagem já não incita a consciência da representação. É preciso buscar outras estratégias. A multiartista Luz del Fuego, figura extraordinária que é resgatada novamente em todo seu esplendor criativo no filme, é um bom exemplo a ser seguido, inclusive como cineasta.
À realizadora Helena Ignez uma mudança de parâmetros talvez eleve sua filmografia a algo único, revolucionário e desafiador, tal e qual o seu talento para a dramaturgia, tão bem demonstrado ao longo de tantas obras fundamentais do cinema brasileiro.
O 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba irá acontecer de 07 a 15 de outubro e será online em 2020. Você pode assistir “Fakir” na plataforma do festival nos dias 08 e 12/10.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)