entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
“Quero que a minha música me surpreenda, porque se isso acabar eu deixo de ser honesto em relação ao meu próprio público”, afirma Benjamim (o nome artístico de Luís Nunes), no início de uma conversa focada no seu percurso e em seu mais recente álbum, “Vias de Extinção” (2020), que comprova a vontade contínua de evolução musical. Luís começou por editar discos como Walter Benjamin durante um período em que viveu em Londres, originando os trabalhos “The National Crisis” (2008) e “The Imaginary Life Of Rosemary And Me” (2012).
Enquanto músico e escritor de canções, Benjamim sentiu uma limitação pelo fato de não compor na língua portuguesa e embora gostasse das suas canções em inglês, achou que esse trabalho era uma fraude porque não era nativo e não conseguia passar algumas imagens comuns à língua inglesa nos temas. Quando regressou a Portugal, instalou-se na vila do Alvito (região do Alentejo), onde vive e possui o seu estúdio de gravação. No ano de 2015 lançou o álbum “Auto Rádio”, o primeiro cantado em português, num registo marcado pela atualização de sonoridades antigas, por via dos sintetizadores, e tematicamente orientado para a sua geração.
Seguiu-se “1986” (2017), um disco bilingue, em parceria com o músico inglês Barnaby Keen, no qual a boa capacidade melódica e o hábil equilíbrio entre momentos de introspeção e dinamismo obteve uma excelente receptividade e representou um grande salto na carreira de Benjamim. “1986 foi um álbum de colaboração e constituía também uma forma de aliviar a responsabilidade do meu segundo trabalho fazendo uma parceria só em vinil. Era quase um objeto de coleção. Quando gravamos, eu e o Barnaby pensamos na maneira das minhas músicas em português dialogarem com as canções dele em inglês e como iriam conviver no disco. Foi assim que nasceu o álbum”, conta.
O novo trabalho, “Vias de Extinção”, tem um caráter biográfico, refletindo sobre o que Benjamim designa como a sua “crise prolongada dos 30 anos”, fazendo um ajuste de contas com o passado e exibindo uma multiplicidade de sentimentos. Em termos musicais, o regresso ao instrumento da sua formação, o piano, e o aventureirismo sonoro proporcionado pela exploração das potencialidades do sintetizador são outros elementos marcantes do álbum. No conjunto de canções apresentadas destacam-se o pop oitentista de “Urgência Central”, o tom baladeiro da faixa-título, a divertida “Domingo” e a pegada dançante de “Incógnito”.
Para além de cantor e compositor, Benjamim é igualmente produtor, tendo produzido discos de músicos portugueses como Flak, Lena D´Àgua (dos quais integra as respetivas bandas ao vivo), Joana Espadinha, Cassete Pirata, Márcia e Noiserv, entre outros. “A música é o meu emprego e eu vejo a produção como uma área artística em que estou a servir a arte dos outros. Por isso, a possibilidade de estar rodeado de pessoas tão criativas, que têm características especiais, revela-se muito estimulante”, explica.
Até Dezembro, Benjamim fará cinco shows de apresentação do novo disco, iniciando o tour em Lisboa (26 e 27 de Outubro no Teatro Maria Matos), passando pelo Porto (28 de Outubro na Casa da Música), por Coimbra (6 de Novembro no Teatro Académico Gil Vicente) e terminando o ciclo de concertos em Águeda (5 de Dezembro no Centro de Artes de Águeda). Sobre os espetáculos que se avizinham o seu estado de espírito é otimista. “Este é o momento em que quero me divertir. Como artista independente tive de lidar com imensas coisas, trabalhei arduamente nos últimos dois anos e os shows são o momento em que sentimos ter valido a pena o esforço feito para apresentar as canções às pessoas. Tenho uma banda que puxa por mim, gostamos de ensaiar e de soar bem. Estou certo que iremos dar o máximo possível nesses shows”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Benjamim conversou com o Scream & Yell. Confira:
O que procurou alcançar com o seu novo disco?
Várias coisas. Como é o terceiro álbum senti alguma pressão para encontrar um bom sucessor do “1986”. Quando sou quase exclusivamente conhecido por uma canção (“Terra Firme”) isso poderá ser tudo o que algum público sabe de mim. Esse fato coloca diversas questões, porque eu não queria repetir a música ou o álbum. O meu objetivo era fazer algo que partisse daí e levasse o trabalho para outro patamar. Por essa razão, “Vias de Extinção” não quebra totalmente com “1986”, mas acaba por cortar com esse disco. No processo de reinvenção da minha música aproximei-me do piano. Quando lancei o álbum “Auto Rádio” (2015) tive uma canção licenciada por uma telenovela e com o dinheiro resultante comprei um piano. Concretizei o sonho de ter o meu próprio piano em casa, regressei ao instrumento da minha formação, e ao longo do tempo fui voltando às teclas. Entretanto, mandei concertar um sintetizador velho que não estava muito bom e depois do arranjo programei sons e fiz algumas músicas baseadas nesses ritmos e o processo entusiasmou-me para compor novos temas. No verão de 2018 nasceram os primeiros esboços de canção. Ao mesmo tempo, este disco surge no momento em que passo para uma nova editora, com outro alcance. Tenho uma banda que toca comigo, um agente e alguns técnicos. Somos uma equipe muito unida e eles fazem parte de todo o processo. Existem decisões, que não são artísticas e estão mais ligadas à forma de fazer as coisas. Por isso, foi espetacular ter a colaboração com a Sony Music e fazer um álbum em que a editora não interferiu. Pelo contrário, eles incentivaram-me a ser criativo. Era uma das premissas que eu mais ambicionava para este trabalho: ter mais condições para fazer música.
Li num texto promocional que este disco gerou em si uma “profunda descoberta interior”. Qual foi a maior revelação que obteve?
Acho que foi mais um diário, reflexão ou monografia do que uma revelação. Eu consigo falar dos meus álbuns anteriores, distanciar-me deles e perceber onde eu estava e o que esses trabalhos acabam por representar. No disco atual, ainda está a faltar que as canções sejam vividas pelo público para eu sentir uma revelação especial. Obviamente que “Vias de Extinção” é marcado temporalmente pela pandemia e existem várias coincidências significativas neste álbum, que começam no título e acabam no timing da pandemia. Durante a quarentena, no meu estúdio, eu consegui colocar o resto das minhas sessões de gravação e o próprio momento do desconfinamento, em que podíamos fazer a promoção do disco e os shows de apresentação, era algo que em Março nos causava medo. Todo esse período gerou revelações forçadas. O álbum, como você disse, assenta muito na inquietação. Eu li uma matéria no New York Times sobre a fuga aos impostos do Trump e é nesse mundo que nós vivemos, no qual o líder da maior nação mundial (e supostamente da maior democracia do mundo) é fraudulento, racista e não respeita ninguém nem os preceitos democráticos. O que me inquieta mais é o fim do humanismo ou pelo menos um abanar dessa situação. Nós temos vivido essa dura realidade e a conjugação com o aquecimento global poderá resultar no extermínio da espécie. Isso não está tão longe de acontecer e o que se passa agora é a prova de que muitas coisas más nos podem suceder. São imagens quase cinematográficas, no entanto devem ser levadas em conta.
Gostei bastante do tema “Incógnito”, porque você conseguiu criar um pop festivo e uma ideia de excesso que normalmente não está presente nos seus trabalhos…
Muitas vezes, numa canção, tentamos tornar a realidade mais bonita do que ela poderá ser. Eu quis falar da minha vida normal sem filtros e quando comecei a escrever gostei do fato de ser claro em relação à realidade. Nesse período da minha vida eu era solteiro e aconteceram-me diversas coisas. Nem tudo foi positivo e cometi alguns erros, como é normal. Na frase de abertura da música, “Eu vendi, promessas por cumprir”, fui bastante direto e julgo que não poderia ser mais frontal. Tentei escrever sobre outros assuntos e não me repetir. Escrevi a canção no Incógnito. O arranjo foi influenciado pelo som alternativo dessa discoteca lisboeta e gravei o clipe numa altura em que ninguém podia dançar lá. Devido ao confinamento.
Como antevê o futuro da música portuguesa em função desta pandemia?
Acho que é uma altura grave para as bandas que estão a começar. Porque ninguém vai querer marcar shows de músicos que ninguém conhece. Uma das coisas que me motivou durante a pandemia foi acabar o disco. Por um lado, gostei de fazer o álbum, mas, por outro lado, colidia com o que acontecia lá fora e, às vezes, sentia-me mal com isso. O fator principal para terminar este trabalho, como instinto de sobrevivência, foi a ideia de estarmos mais fortes quando a pandemia acabasse para podermos dar concertos e esta equipe ir para a estrada trabalhar. A música vai continuar e os artistas irão prosseguir o seu caminho, mas, garantidamente, haverá um tempo perdido e existirá igualmente uma filtragem entre os projetos mais preparados e os menos capacitados. Espero que todos tenham possibilidade de tocar, mas há uma questão muito importante: Que locais estarão disponíveis para fazer shows quando tudo isto acabar? Porque não é previsível quando irão abrir as discotecas ou os bares e em Março fará um ano que esses espaços fecharam. No entanto, é possível que ocorra uma reinvenção e surjam novas salas. Mas, enquanto músicos, também temos o papel de nos reunirmos, encontrarmos soluções e outros locais para dar concertos.
É conhecida a sua admiração por Chico Buarque. Existem mais músicos ou bandas brasileiras cujo trabalho lhe agrade?
Tanta coisa. Para mim, o Brasil é um caso muito curioso. Como é que uma parte da população permite que um presidente daqueles ponha em causa um legado cultural tão rico? É a mesma coisa que os americanos estão fazendo. O Brasil tem nomes como Tom Jobim, Vinicius, João Gilberto, Rita Lee, Mutantes, por isso nem sei onde terminar. Eu cresci ouvindo Tom Jobim e a bossa nova é uma referência da minha infância. O Chico Buarque é mais marcante para mim do que o Caetano, mas, ultimamente, tenho escutado bastante o “Transa”. A música brasileira faz parte da cultura mundial. E é interessante reparar como o Devendra Banhart vai buscar tantos elementos sonoros ao Brasil. Noutro dia li um artigo interessante do Patrick Dillet, engenheiro de som do David Byrne. Ele e o David faziam muitas gravações no Brasil com o Tom Zé. De certa forma concretizaram o renascimento artístico dele e isso também mostra o valor dos músicos brasileiros.
Quais são os seus objetivos futuros?
Para responder, lembro-me da música “A Gente Vai Continuar”, do Jorge Palma e da estrofe: “Reduz as necessidades se queres passar bem”. O sonho da minha vida é ser músico. Como estou a viver esse sonho o objetivo é continuar a vivê-lo da melhor maneira possível e aperfeiçoar-me enquanto ser humano. Às vezes é difícil conjugar esses dois aspectos, quando o trabalho toma conta do artista. É uma atividade um pouco egocêntrica, porque escreves sobre ti, promoves o disco e depois falas a respeito de ti. Por vezes, parece que estou obcecado por mim e tento virar-me para fora. Os meus objetivos passam por fazer boa música, viver e superar-me. Desejo também que o meu contributo para a sociedade e para as pessoas que me rodeiam seja igualmente muito positivo.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Vera Marmelo.
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