introdução por Renan Guerra
faixa a faixa por Bossa Noise
Lucas Rechtman tem 25 anos, nasceu no bairro cidade Tiradentes, extremo Leste de São Paulo, e foi criado no Bom Retiro. Cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista, ele assina como Bossa Noise e está lançando seu primeiro disco, “Flutuar” (2020), em que mistura sons diversos como música eletrônica, lo-fi e MPB num caldeirão interessante, de clima quase onírico.
Construído de forma caseira, “Flutuar” nasceu entre um porão em Seattle e o quarto de Lucas em São Paulo. “Tenho a mania de dormir com meu computador, placa de som e microfone do meu lado. Muitas vezes gravo coisas quando já tinha ido tentar dormir e me senti inspirado às 5 da manhã. O disco tem vocais que gravei na cama assim que acordei”, conta Bossa Noise. Lukas também foi baixista da banda Luzia de 2016 a 2017 e, além disso, morou dois anos em Seattle, em uma residência artística onde organizava eventos gastronômicos e musicais para celebrar a cultura brasileira na cidade norte-americana.
Essas andanças ajudaram a construir o que viria a se tornar seu primeiro disco. “Se tivesse um gosto, ‘Flutuar’ seria um chá de camomila com pimenta: ‘calminho, porém arretado’”, brinca Lukas. Na sacola de referências, Lukas Rechtam cita nomes diversos como Toro y Moi, Hiatus Kaiyote, Ava Rocha, Luiza Lian, Mahal Pita, Toninho Horta, entre outros. E dessa mistura também pode vir o fato de ele compor ora em inglês, ora em português. “No início, o inglês me ajudou a superar a timidez de compor em português. Me sinto mais confortável me comunicando através do instrumental e da produção e tem sido um trabalho bem complexo e difícil de aceitar minhas composições e me soltar”, explica o músico.
O projeto conta ainda com contribuições da cantora e compositora Anna Therese, de Seattle, em “Tão Muito” e do cantor e compositor norte-americano Your Friend Deej em “Consume”; além da ajuda do produtor e saxofonista Limbo Swan nas músicas “Flutuar” e “Consume”. Para o Scream & Yell, Lucas Rechtman desvendou um pouquinho de cada faixa do disco “Flutuar” e assim convida a um mergulho no universo de Bossa Noise. Confira:
01) “Intro / Líquida”
A sonoridade da bateria já existia na minha cabeça, algo chamado de drunk beat influenciado pelo J. Dilla. Os áudios surgem como síntese da causalidade que eu gosto de colocar na música. Fui experimentando áudios recebidos por WhatsApp na melodia, e no meio das experimentações percebi que os escolhidos se comunicavam entre si e sobre o Zeitgeist do momento, que é produzir um disco antes e durante a pandemia.
02) “Tão Muito”
Faixa com participação de Anna Therese. Tão e muito são duas palavras que representam a intensidade e juntas se potencializam. A música representa a dor de um social democrata que não teve coragem pra aceitar a revolução como ela tem que ser. É a dor de procurar caminhos mais seguros, fáceis e no fim ver que eles só te levam a ilusões e tristezas, é uma metáfora para outras situações parecidas na vida, escolhas de carreira.
03) “Flutuar”
Algo que me dá fôlego é analisar a história de uma perspectiva mais longeva. A gente tem a tendência a ser pessimista quando não vemos resultados imediatos, mas se analisarmos a nossa história individual e coletiva do mundo com um intervalo maior de tempo, conseguimos enxergar os progressos e uma pontinha de esperança.
04) “Dark Spot”
Como nasci na cidade, antes eu via a natureza como uma coisa mágica, mas rara, algo especial para se entrar em contato nas viagens de férias. Já tive fases de enxergar a natureza idealizada e como fuga de todos os problemas também. E nos últimos quatro anos, por ter morado em cidades com acesso a natureza, comecei a enxergar como uma coisa mais equilibrada, uma fonte de vida, prazer e ensinamento, menos idealizada. Ela se tornou um espaço de cura pra mim. Sobre os quartos escuros da música: o “spot”, na verdade, simboliza um lugar, um quarto. Estive nesse lugar quando cheguei sozinho em uma cidade pequena no inverno, estava de férias por três meses. Estava bastante deprimido nessa época, foi um momento de isolamento bem parecido com a quarentena que estamos vivendo. Sou escorpiano e um tanto quanto pessimista então tenho que lutar contra o meu próprio cérebro a todo o momento.
05) “Precious Stone”
O que trago de mais precioso comigo é a minha inquietude. E o ensinamento mais precioso da quarentena foi o enfrentamento real da situação, não mascarar ou encontrar subterfúgios para os sentimentos e ações. Dia após dia, eu posso ver o outro com maior clareza, consigo enxergar que somos um só. Na verdade, todos queremos paz e amor no sentido real e denso da palavra. “Sem justiça não há paz, há somente escravidão”.
06) “Doutor”
Essa música brinca com a projeção da sociedade de ver a gente como Doutor e não como um artista, ou em profissões menos tradicionais. E também fala sobre cura de uma maneira abstrata. O som se ressignifica quando começo a editá-lo na pandemia e se torna também uma homenagem aos heróis da saúde. Viva o Sistema Único de Saúde!
07) “Consume”
Faixa com participação de Your Friend Deej e Limbo Swan. Meu amigo norte-americano que gravou comigo tinha acabado de entrar num trabalho super exaustivo, e a vida dele agora era aquele loop capitalista: acordar, comer, trabalhar, consumir. É uma música que fala sobre o cotidiano de um trabalhador explorado. O que mais me arrepia nesse som é a repetição, exaustão de fazer algo no piloto automático – nele, há uma leve influência de “Cotidiano”, do Chico Buarque –, e no solo tento trazer algo mais caótico, um vômito com a guitarra, e o sax com um bit rate baixo e distorcido de Limbo Swan.
“Laranjinha” • Faixa bônus escondida dentro de “Consume”
Este foi um dos sons com menor pretensão do disco, ele só nasceu, é como é: abstrato. inclusive a letra eu fiz com palavras aleatórias e pretendia trocá-las para dar mais sentido, porém a abstração me atraiu mais do que uma busca por um sentido nesse caso.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.