Texto por Renan Guerra
“Verdade Tropical”, de 1997, é a aventura verborrágica de Caetano Veloso, uma espécie de autobiografia com mais de 500 páginas que reconstrói a formação artística, cultural e social do artista. Uma leitura básica para os fãs de Caetano, mas que não há de se negar que um tanto enfadonha em algumas passagens. O que não se discute é que há em “Verdade Tropical” um capítulo especial, “Narciso em Férias”, com sua minuciosa descrição dos 54 dias de prisão de Caetano entre 27 de dezembro de 1968 e 19 de fevereiro de 1969, em plena Ditadura Militar.
Esse capítulo especial se expande agora no novo filme de mesmo título, “Narciso em Férias” (2020), de Renato Terra e Ricardo Calil, que teve estreia no dia 7 de setembro no Festival de Veneza. Em um movimento importante – influenciado pelo momento de pandemia mundial –, o filme foi lançado direto em streaming, estreando no GloboPlay no mesmo dia da estreia internacional. Uma prática que pode ser interessante considerando-se o alcance de um filme desses numa plataforma como o GloboPlay. Vale, por exemplo, retornar aos números da live de Caetano nessa mesma plataforma para que se tenha noção desse impacto.
“Narciso em Férias”, o filme, é mínimo: Caetano sentado numa cadeira em meio a um cenário de concreto fazendo aquilo que Caetano adora fazer, isto é, falar e falar. Inicialmente, o filme se mostra basicamente como uma simples narrativa oral do que está nas páginas de “Verdade Tropical”, mas mesmo quando reconta a mesma história, já há outro olhar de Caetano, até por que já se vão mais de 20 anos desde o lançamento do livro. Há aqui uma lucidez e um olhar muito específico de Caetano sobre esses tempos e isso torna essa narrativa interessante, sem se perder em enfado. Um ponto importante são as poucas intervenções dos diretores, que permitem e incentivam a narrativa contínua de Caetano.
Infelizmente, “Narciso em Férias” se torna um relato ainda mais amargo nesse 2020, quando temos na presidência um político que celebra e reverencia torturadores. A narrativa da prisão de Caetano, a prisão de Gil, seus colegas ilustres de cela e todo o cenário macro que compõem o filme são assustadores porque são tão próximos. 1969 parece distante, mas é uma data a se revisitar constantemente, para que se entenda e se compreenda melhor o passado e o presente. E, nesse sentido, o documentário de Renato Terra e Ricardo Calil é uma espécie de pecinha num quebra-cabeça maior que compõe a nossa história recente de Brasil – os dois diretores são também responsáveis pelo excelente “Uma Noite em 67”, de 2010, que reconta a história do 3º Festival de Música Popular Brasileira.
“Narciso em Férias”, o capítulo, está sendo relançado como livro autônomo pela Companhia das Letras, em edição que conta com registros do processo aberto pela ditadura militar contra o cantor e compositor. Esses documentos ficaram guardados no Arquivo Nacional e só chegaram até Caetano em 2018 e eles também formam uma parte importante do documentário, pois é quando Caetano lê os autos de seu interrogatório que temos algumas das passagens mais interessantes. Com perguntas estapafúrdias e com uma tacanhez tamanha, os autos do processo reverberam a burrice e a canalhice do regime ditatorial e, por isso, são relatos históricos importantes.
De todo modo, talvez a passagem mais bela de “Narciso em Férias” seja o momento em que Caetano tem em mãos de novo a revista Manchete com as tais fotos da Terra que o levariam, anos depois, a compor a canção “Terra”. Caetano perde as palavras, se emociona de forma sincera e comove. Sua interpretação de “Hey Jude”, dos Beatles, também é momento crucial de beleza, tanto que a faixa foi lançada como single, em versão voz e violão.
No final das contas, “Narciso em Férias” é como uma pequena polaroide dentro desse momento horrendo de nossa história, narrado por uma das vozes fundamentais da cultura nacional no século XX. Goste-se ou não de Caetano, sua importância é inegável e, por isso mesmo, é preciso celebrar que ele conte todas essas histórias com total lucidez e registre esses acontecimentos de formas múltiplas, para que, quem sabe, em algum arroubo de lucidez, o Brasil não volte a se perder em narcisismos patrióticos.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
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