entrevista por Leonardo Vinhas
“’Astucia‘ é um disco de soul felino”, afirma seu autor, Paul Higgs. A definição peculiar é apenas uma entre as muitas idiossincrasias desse cantor e compositor uruguaio, oriundo de família inglesa. Aliás, tudo em Paul pode ser definido como idiossincrático, desde sua estampa (esquálido, longilíneo, com um cabelo tão volumoso quanto encaracolado) até seu modo de falar, passando por sua música.
Em todos esses casos, porém, os desvios à norma são naturais. Suas canções estão longe de ser uma estranheza inaudível – pelo contrário. Higgs gosta de beber na fonte infinita de inspiração que são os compositores do Río de la Plata (Charly García, Luis Alberto Spinetta, Eduardo Mateo e tantos outros), admira contemporâneos como O Terno (de quem é fã), Los Siberianos e Mi Amigo Invencible, e sempre privilegia a melodia acima da estranheza.
Esse apreço já era evidente nos quatro discos que gravou com sua banda Algodón. Mas “Astucia” (2020), seu primeiro álbum solo, é um animal de outra estirpe, ainda que da mesma índole. Aqui, a psicoodelia é uma espécie de véu que cobre as harmonias, deixando espaço para que os ganchos melódicos ora se revelem, ora se interrompam. Em meio a isso, letras que são pequenas crônicas sentimentais urbanas ajudam a configurar uma identidade pop mais adequada a esses tempos de melômanos solitários e insistentes.
Paul Higgs passou uma temporada no Brasil no fim de 2019, quando “Astucia” já estava em seus caminhos finais. Essa experiência também impactou-o artisticamente, e por isso ela é um dos temas dessa conversa, que procurou preservar, tanto quanto possível, as particularidades de sua fala que mistura idiomas, estende sílabas e entrega neologismos. Até porque ouvi-lo falar é parte de sua experiência sonora. Então, dê play em “Astucia” e boa leitura.
Você foi a Buenos Aires para gravar “Astucia” ou, ao contrário, o disco só veio a existir porque você mudou de cidade?
Caí em Buenos Aires com a versão primitiva de “Astucia” pronta, fechada, terminada, completa, até com os b-sides. Quando eu o mostrei para Queruza (o selo que me edita e cuida), nos pareceu que era um experimento muuuuuuito profundo, com uma sonoridade extra-post-pre-lo-fi (risos). E por isso tomamos a decisão de selecionar e regravar as canções que se enredavam perfeitamente entre sí. Foi aí que a presença inspiradora, insuportável, selvagem, sofisticada e divertida da cidade ficou impregnada e representada na foto sônica que é este álbum.
Por falar nisso, esse é um disco de três cidades, não? Nasceu em Montevidéu, cresceu em Buenos Aires e respirou ares de São Paulo. Como essas paisagens urbanas impactaram no resultado final?
Montevidéu, sendo a capital de um país tão pequeno como o Uruguai, foi acima de tudo uma espécie de tela sobre a qual trabalhei durante toda a minha vida, na qual eu havia pintado e repintado. Por causa disso, o correto foi destruir o disco e atravessar essa tela para encontrar Buenos Aires do outro lado. Ali era outra tela, gigantesca e virgem, que me desejava quase tanto como eu a ela. Se em Montevidéu eu uni as partes para criar my own Dr. Funkenstein, em Buenos Aires lhe dei vida! Lá sim que existem raios épicos durante as tempestades elétricas. E depois São Paulo me deu a perspectiva de tudo o que eu tinha feito, comprovei que eu tinha música internacional em minhas mãos. Ao escutar com amigos e amigas e personagens do que chamo de “Nova Exótica Paulista”, e que admiro muito, me dei conta de que “Astucia” falava o pós-linguagem, o sentir.
No Brasil, você tocou com músicos locais, com argentinos, passou por centros culturais, clubes, bares. Agora que já se passou o entusiasmo da viagem, como você vê a movimentação musical que você testemunhou?
Fantásticaaaaaa! É como te disse, descobri um pouquinho disso que chamei de Nova Exótica Paulista. Vanguarda, estilo, ventos, tradição, amizade, respeito, uma cena variadíssima, tecnologia emocional de ponta! Fiquei fascinado. Imagino que São Paulo sendo tão gigante, devo ter conhecido só um pedacinho, eu até adoraria morar lá. É um dos meus planos, quando eu sentir que é o caso e as frequências se alinharem, ali estarei. Me apaixonei. Nutritivo e vitamínico como açaí. Entre muitas coisas, teve uma que fui parar em um show muito muitíssimo épico de João Donato! Não o conhecia, e vivenciar sua apresentação foi um grande prêmio, sinal de que “la shit estaba alright, u know”? Ele dava ao piano elétrico uma jovialidade eterna, infinita, presente e curativa. Um montão de aventuras e surpresas aconteceram durante minha permanência lá, imagina as que estão por vir!
Seus trabalhos solo permitem mais experimentações e ousadias que com o Algodón. É algo bem compartimentalizado, isso de “com Algodón tenho que me contralar mais”, ou não é assim tão rígido?
Acontece que as decisões do Algodón são tomadas por nós seis! E aí nem todos querem la crazy shit. Somos trilhos paralelos que às vezes se cruzam.
Você é um amante e um pesquisador de música. Sei sobre suas influências do passado – os cantores e compositores da Plata, Dylan, Beatles – mas quem são seus colegas e inspirações no presente?
Os irmãos Bernardes (Chico & Tim), Ana Frango Elétrico, Martín Buscaglia, Galean, Simón Poxyran, ANYI, Luca Bocci, Karina Vismara, Judee Sill, Fuxme, Julia Aventura, Leandro Aquistapacie, Andy Shauf, El Chacal & los Alpes Floreados, Luca Marchesi, Alice, O Terno!
Seu pai é músico, tocou em algumas bandas under do Uruguai. Como os pais podem ser influência pelo exemplo ou porque queremos nos rebelar a eles, queria saber qual foi o caso na relação musical com teu velho.
Lulo, meu pai, é neto de Tom Berry Higgs, um rapaz inglês que baixou em Montevidéu lá pelo fim do século 19! E de fato, desde 1964 ele participa de grupos de toda índole, atualmente toca em umas bandas de blues. Se vocês o conhecessem saberiam que Lulo é fera, extremamente groovy, extremamente funny, muitíssimo cool, gente boa, que me passou muitíssima informação de todo tipo, desde olhar para o céu e me ensinar as constelações até emprestar-me sua Gibson SG 68′ para tocar, compartilhar informação secreta sobre OVNIs, ou me dar certas recomendações para compor que uso até hoje. É como se eu tivesse me tornado o melhor amigo do meu pai, e ele cumpre ambas as funções (risos).
Você estava todo cheio de otimismo e de planos para lançar esse disco, incluindo turnês pela América Latina. Aí veio tudo isso que já se sabe. Como está seu ânimo agora? Faz sentido pensar em turnês e afins, ou você já bandeou as ideias pra outro canto?
Que nada, as turnês voltam com tudo assim que possível. São Paulo será o primeiro destino – real! Em um momento da minha vida, trabalhando em um restaurante de beira de estrada a caminho do leste uruguaio, decidi entregar totalmente minha existência às aventuras. De modo que continuando esse roadtrip eterno sobre as ondas da aventura, muitos destinos me aguardam!
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. As fotos que abrem o texto são de Karin Topolanski / Divulgação