Faixa a faixa: Hiran comenta “Galinheiro”, seu segundo álbum

introdução por Nelson Oliveira
faixa a faixa por Hiran

Existia um lugar-comum muito utilizado para se referir a Hiran quando ele surgiu no cenário da música baiana, na virada de 2017 para 2018: ele era “o rapper gay”. Sim, ele é mesmo abertamente homossexual. É preto e bicha. E também VIP, como afirma em “Baile de Ideia”, uma das melhores faixas de “Tem Mana no Rap” (2018), seu álbum de estreia. O (necessário) tom de manifesto do primeiro disco fez com que algumas pessoas preferissem não enxergar o artista que existe por trás de rótulos identitários. Em “Galinheiro” (2020), seu segundo trabalho – lançado nesta segunda, 06 –, aqueles que desejarem colocar em prática essa cegueira seletiva terão um exercício ainda mais árduo.

Uma forma eficaz de lidar com o desdém de terceiros é o deboche – e isso Hiran tem de sobra. O baiano ironiza os que o menosprezam já na abertura do álbum de nove faixas, na “beat ciranda” que intitula o trabalho. Em “Galinheiro” também estão presentes as críticas a contextos sociais, que já permeavam canções anteriores.

O flerte de Hiran com ritmos como o funk carioca e o pagodão baiano produziu faixas de grande apelo pop, que podem fazê-lo ultrapassar os limites do rap queer e da música independente. Exemplos disso são a acústica “Gosto de Quero Mais”, em parceria com Tom Veloso (Dônica), e “Chora”, um hino à volta por cima. Por sua vez, “Kika (Cara de Mau)”, dueto com a drag soteropolitana Nininha Problemática, é hit digno de qualquer paredão, fluxo ou baile.

A versatilidade do baiano de Alagoinhas não se restringe a canções alegres, debochadas e dançantes: o rapper se mostra um cantor apurado também no drama e na melancolia. Já sabia quem prestou atenção em “Lovesong”, última canção de “Tem Mana no Rap”, mas Hiran fez questão de reafirmar este potencial em “Desmancho”, rhythm & blues com timbres psicodélicos conferidos pela banda Astralplane, de Salvador.

Produzido por Matheus Gonçalves e Tiago Simões, “Galinheiro” ainda conta com as participações de Illy, Majur, DiCerqueira e do babalorixá Ed Oladelê. Definido pelo próprio Hiran como “uma resposta à loucura de 2019” e “um disco de amor no meio desse caos”, o álbum marca o crescimento do baiano de 25 anos como artista. Uma trajetória ascendente que já podia ser observada por quem acompanhava seus lançamentos e apresentações mais recentes.

Para falar com mais propriedade sobre o quanto o álbum reflete este amadurecimento, o Scream & Yell convidou o próprio Hiran para comentar o disco faixa a faixa. Confira abaixo.

“Galinheiro”, faixa a faixa, por Hiran

01) “Galinheiro”
É a faixa que dá o tom do projeto. O disco é sobre meu ano de 2019, sobre uma história de amor no meio do caos. A minha vida amorosa estava muito conturbada e tudo que estava ao redor parecia que acompanhava. Me vi realizando meus sonhos e ao mesmo tempo lutando por migalhas. Quando o dinheiro virou parte da minha meta de vida, tudo ficou mais complicado. Antes eu estava acostumado a ter pouco e de repente eu queria mudar de vida, ser uma referência de sucesso pra minha cidade [Alagoinhas, interior da Bahia]. Até eu entender que usar roupa de marca emprestada e poder comprar uma roupa cara prum show eram coisas diferentes, fui percebendo que tudo que eu celebrava parecia parte de um sistema que ainda assim não me torna dono da minha voz. E me vi como uma das galinhas no galinheiro, brigando por migalhas na hora de me alimentar (tanto no amor quanto no sonho). Nessa hora, o Matheus [Gonçalves “Aloha”], que produziu as quatro primeiras, estava lá pra salvar o dia e me dar a chance de começar a contar isso tudo.

https://www.youtube.com/watch?v=-TR0z6cwbZk

02) “Shalalala / Transbordante”
Fiz a ‘Shalalala” nas costas da “Galinheiro”. Acabei uma e já comecei a fazer a outra. “Galinheiro” é mais sobre mim e “Shalalala” é mais uma análise de tudo que vi em alguns locais que estive presente em 2019. Hipocrisias em realidades aparentemente quase ideais, cheias de falhas brutas, censuras e opressões disfarçadas me fizeram cuspir essa música. A Illy é uma das cantoras baianas que mais amo e sempre quis ter ela comigo num disco meu – e ficou linda a participação dela. Colocar “Transbordante” (o texto recitado por Majur) foi pra apresentar o elemento “amor entre o caos”. E eu sou apaixonado perdidamente pelx Majur, acho que todo mundo sabe. Não existia forma melhor de trazer isso pra narrativa.

03) “Gosto de Quero Mais”
Aí começa o lance do amor. Foi um relacionamento estranho, intenso e marcante, mas também abusivo e arrebatador, o que me inspirou a partir daqui. Essa música é sobre o primeiro contato, a excitação, o desejo e a vontade de virar a pessoa do avesso (se é que me entendem) que dá quando a gente começa a sentir paixão por alguém. Tom [Veloso] pintou no estúdio comigo e com o Matheus e a gente viajou junto. Tom é um dos artistas que mais amo e ele se tornou uma das pessoas por quem mais tenho um carinho, pela música que ele traz e pela pessoa que ele é. Considero ele um irmão mesmo, me importo muito e torço muito por ele e pela carreira dele.

04) “Chora”
“Chora” vem na sombra da anterior, já pra dar a real: era furada. Eu acordei, fiz a desapegada e ao perceber ter sido feito de otário, dei o fora e tirei onda.

05) “Holograma”
A partir daqui, as produções são do Tiago [Simões] – inclusive, essa música foi ele que fez letra e melodia. Nem sei bem o que o inspirou a escrever a letra, mas quando a ouvi pela primeira vez, já bateu onda. E quando dei por mim, ela entrava na narrativa. Seguindo com o fora e a tirada de onda, veio (tcharam!!) a recaída maldita e a ilusão do amor perfeito. Me conectei nisso e ela soou como uma bela declaração de amor estranha e caótica, apesar de fofa e suave, que era exatamente o que eu queria pra esse momento.

06) “Funk Amor”
Tudo já estava tão conturbado que a melancolia virou tesão, viciou. E conseguir sair, e de repente voltar pro mesmo ponto parecia que era a única coisa que eu podia e sabia fazer. Comecei a achar que o problema era eu. O normal em um relacionamento abusivo, né? Nessa estou chorando uma face da minha depressão, porque sou muito carente e as desilusões amorosas me deixam muito desestabilizado. O Tiago conseguiu capturar o caos que estava na minha mente. Ele sabe me observar bem. Ter o DiCerqueira na faixa pra mim é luxo, amo o trabalho dele.

07) “Kika (Cara de Mau)”
A gente já lançou Kika lá no começo do ano, mas ela é uma música que compus nesse processo. É o alívio cômico que precisei me dar, contando uma história que é real, mas de uma forma divertida. Percebi que a gente se cobra tanta coisa e finge ser tantas pessoas por ter medo de interpretações que nem deveriam estar ali, quando na verdade é de boa. Quicar com cara de mau é o auge, não precisa fingir que não é mil grau (risos), eu adoro. Nininha é a pessoa perfeita pra cantar isso comigo – eu amo!

08) “Kzoid / Vai Passar”
Quando fiz essa música, eu estava me sentindo meio maluco. Muita coisa sem fazer sentido na minha mente. Estava viciado em ver noticiário e documentários sobre o espaço e sobre a Teoria da Relatividade, duas coisas que podem te deixar doido se você linkar a nossa percepção rasa da natureza da realidade ao mundo podre que a gente criou. E o relacionamento quebrado ainda estava me perturbando. É um pedido de socorro numa cabeça muito confusa. Coloquei nela um áudio do meu babalorixá, pai Ed Oladelê, cantando uma música que eu sonhei que ele me cantava, onde nossa mãe Yemanjá ouvia um pedido dele pra cuidar de mim. Mandei pra ele, ele me retornou o áudio cantando e eu tive que colocar no disco. É a tranquilidade que encontrei nos orixás, na religião e na relação que tenho com ele, que foi o que me salvou de enlouquecer e me trouxe de volta.

09) “Desmancho”
Então, eu ouvi muito R&B na minha vida e eu sempre quis fazer uma música assim com uma banda. Astralplane é uma banda de Salvador que me emocionou muito quando assisti ao show pela primeira vez. Desde então, queria fazer algo com eles. Ela fala do amor que ficou. Eu sou um romântico e mesmo o que não dá certo consegue me deixar coisas positivas. Eu sou um pouco apaixonado por todo mundo com quem me relacionei na minha vida até agora, apesar de não mais voltar atrás quando vejo que não dá certo. “Desmancho” é sobre o amor que ficou, em mim, do boy e da minha história nesse período. É a beleza do processo. É o que ainda restou ao atravessar todas as coisas ruins.

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. 

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