entrevista por Renan Guerra
Craca – pseudônimo de Felipe Julián – é um artista sempre em movimento. O produtor musical e artista visual tem seu nome em inúmeros projetos e produções, incluindo aí uma parceria bem-sucedida ao lado de Dani Nega – o disco “O Desmanche” (2018), por exemplo, é audição necessária (apareceu na lista da APCA em 2018). Nos últimos meses, Craca tem se lançado em diferentes experimentações: projetos audiovisuais que flertam com o downtempo, parcerias experimentais ao lado de Sandra-X e singles produzidos em tempos de quarentena.
Ao lado de Sandra-X, que é cantora, compositora, performer (e sua esposa), ele lançou “Oxóssi”, uma faixa que é uma espécie de forró-cumbia-dub, além de “Um Livro de Amor”, peça que era uma instalação e foi recentemente lançada como single. De forma solitária, ele lançou “Affection Reflection” e “Squamata”, duas peças audiovisuais que contam com trilhas sonoras eletrônicas e downtempo.
Agora, Craca está lançando “Terceirizados”, faixa em que toca uma Cigar Box Guitar, isto é, uma guitarra feita de caixa de charutos e cabo de vassoura tocada com o bottle neck: um pescoço de garrafa de cerveja presa ao dedo; essa guitarra era usada por ícones do blues como Blind Willie Johnson e Muddy Waters. É nesse espírito sempre criativo e inquieto que Craca segue produzindo e investigando sonoridades.
Em papo virtual com o Scream & Yell, Craca contou mais sobre a produção de suas músicas, mas também falou sobre as complexidades econômicas de ser artista em tempos de pandemia e como essas estruturas caóticas apenas expõem situações repetidas nessa indústria. Confira o papo na íntegra abaixo:
Para começar, aquela pergunta já clichê nesses tempos: como você tem passado essa quarentena?
Tenho estado bem. Preocupado com o caminho das coisas. Mas meu home studio já era home mesmo. Então, apesar de ter perdido muitos shows, não perdi outros trabalhos fundamentais como gravações, mixagens, trilhas e os cursos online que passei a dar. Estes últimos aproveitei pra canalizar toda a verba arrecadada junto aos alunos, que podem escolher o quanto pagar, para destinar às campanhas de redução de danos da Covid. Mas já tá tempo demais né?!
Nesse tempo de isolamento você já lançou duas obras audiovisuais, o “Squamata” e “Affection Reflection (Afeto Reflexo)”. Queria que você explicasse um pouco dessas duas peças, já que eles vão para um lado mais downtempo.
Pois é, existe um downtempo dentro de mim que nunca aflorou! (risos). Adoro músicas downtempo. Mas o amor pela festa, pela dança, pela farra sempre atropelou esse sujeito mirrado e ensimesmado que, na verdade, é muito importante dentro de meu percurso musical. Essas peças surgem mesmo de um desejo de outra relação com o público. Algo mais um pra um. Íntimo. Pessoal. Caseiro. E claro que tudo isso ganhou muito mais sentido a partir da pandemia e seu isolamento social. Assim, essas peças audiovisuais são uma boa síntese do que tenho pesquisado. Novos sons e novas imagens. E novos tempos. Este último, em ambos os sentidos: tempo musical e tempo do devir. Tudo isto está intimamente relacionado a esse desejo de um mundo novo. A essa possibilidade de, enquanto artista, contribuir com a construção de uma nova subjetividade humana que nos afaste da distopia em que mergulhamos e re-aponte nossa bússola rumo a verdadeiras e honestas utopias.
Você trabalha muito com instrumentos criados por você mesmo e com processos bastante fluidos. Como funcionam esses projetos pra você: há uma rotina de trabalho? Há um processo criativo definido?
Cada música é um processo. Ela surge de um instrumento novo (ou velho) ou de um achado musical novo. Enfim, o disparador é sempre a partir do caos e tenho pouco controle sobre isso. Mas, depois de 25 anos trabalhando com música seriamente, pude desenvolver processos de consolidação dessas ideias iniciais selvagens. Então, via de regra, registro longas improvisações, seleciono pequenos trechos e gero a composição a partir da edição e montagem desse material. Entendo aqui o termo composição como essa estrutura narrativa de começo meio e fim que vai conduzir o ouvido e o cérebro ao longo desses 5 ou 6 minutos.
Você lançou dois singles ao lado da Sandra-X, que é uma artista com longa carreira dentro da música e das performances. Como se dá esse processo de criação em dupla? Acho curioso, por exemplo, como a improvisação é um passo importante para a construção da faixa “Oxóssi”.
“Oxóssi” é um bom exemplo de como uma música nova é um troço no qual a gente tropeça sem querer, mas se for esperto, consegue levantar do chão e botar em pé. Eu havia criado um pequeno groove de três partes bem na linguagem do dub pra improvisar ao vivo, nas festas que volta e meia eu toco. Muito simples. Numa dessas festas a Sandra-X topou experimentar algo pra cantar em cima desse groove. Ela pegou um oriki de Oxóssi e experimentou contar em cima numa lógica meio spoken word. Ficou muito legal. Começada a pandemia, a Sandra está harmonizando a primeira parte dessa música no piano. Botei pra ela a batida que havíamos feito juntos e em seguida ela deu continuidade à harmonia e a uma nova melodia. Gravamos uma guia de voz e piano com essa batida minha e a partir daí fui produzindo. Criei uma linha de baixo, novas baterias, gravei guitarras etc… E o resultado foi esse. Ficou muito com a nossa cara. Afro-latina. Cumbia Dub. Forródombé!
Já “Um livro de amor” era parte de uma instalação que tinha a participação do público. Nesse sentido, como você tem repensado essas formas de expor, digitalmente, a sua arte? Você entende que isso irá modificar as nossas relações futuras com as obras de arte? Você até fala em uma nova ressignificação do DIY em tempos de quarentena, não é?
“Um Livro de Amor” tornou-se uma instalação interativa antes de virar esse single. Esteve exposta em algumas ocasiões em São Paulo, Campinas e Uruguai. Uma pessoa de cada vez senta na obra e, ao tomar o livro para si, inicia-se uma peça sonora difundida em oito cornetas falantes. Uma experiência super imersiva e ao mesmo tempo muito íntima. Não me sinto com propriedade para fazer previsões. Mas acho que a intimidade é algo que surge ai como um campo de possibilidades. Também acho que a medida que o mercado não ofereça soluções democráticas de acesso à cultura e siga reproduzindo modelos de algoritmos ou curadorias ralas, os artistas, cada vez mais apropriados dos meios de produção e difusão, passarão a praticar bypass nesses intermediários. Seja um Spotify, seja um pequeno Blog, seja a curadoria de um grande festival, seja o edital de uma empresa, cada vez menos precisamos deles. E uma hora começarão a sentir nossa falta. Lamento muito que tenha que ser assim, pois na verdade isto tudo poderia ser uma grande e revolucionária parceria. Mas enquanto o mercado não se colocar de verdade, sem restrições e com ousadia à serviço da arte, os artistas seguirão criando seus próprios meios. Estamos cada vez mais empoderados quanto a isto. Tecnologia e mercado andam juntos. Tecnologia e arte também. Desde a origem. Se mercado e arte não andarem juntos, então não fechamos o triângulo e segue cada dupla por si. A única parte que se favorece sempre é a tecnologia. Não precisava ser assim. Já são as maiores empresas do mundo.
Sobre seu mais recente single, “Terceirizados”, ele conta com um instrumento especial: a Cigar Box Guitar. Como você chegou nesse instrumento?
Guitarras de caixa de charutos são muito tradicionais na história do blues americano. Mas, claro, são muito pouco utilizadas hoje em dia. Encontrei a minha numa feira de artes a céu aberto em Buenos Aires, na Argentina. Ela foi feita pelo próprio rapaz que a vendeu para mim com o qual pude solicitar alguns pequenos ajustes ainda antes de levá-la de vez. É um instrumento muito rústico e simples. Sua sonoridade marcou demais a minha adolescência enquanto ouvia discos do Muddy Waters. Acredito que os discos que ouvi já foram gravados com guitarras de verdade. Mas a técnica e a sonoridade, estou certo que Muddy Waters não abriu mão de transportar de suas primeiras cigar box guitars para a eletric guitar quando finalmente pode comprar uma.
O vídeo de “Terceirizados” conversa com essa estética “juntos e separados” das lives e das performances online. Como você tem lido toda essa profusão de lives e concertos digitais? Você costuma assistir essas apresentações?
Não tenho aquela famosa “paciência” pra ficar assistindo lives. Por um lado acho muito legal, mas por outro, sinto falta da presença física mesmo. E da boa qualidade de áudio. E de todo o resto que envolve esse ritual maravilhoso de ir a um show. Tive frequentando e tocando em algumas festas online. Foi muito bom. No momento estou desenvolvendo um setup que me permita fazer uma live minha quase como se fosse um show mesmo. Incluindo videomapping. Com isso acho que não só fica mais legal para mim como que também se torna uma experiência de fato para o espectador que poderá sentir-se transportado de fato para o local do show. É um sistema de videomapemanto virtual em arquitetura que, sincronizado a minha música, resultaria quase que exatamente, no que eu faria ao vivo se pudesse ir a esse lugar escolhido para esse show. Enfim, um troço meio multiverso.
Falando em questões práticas: viver de arte de forma independente no Brasil nunca foi coisa simples e nesses tempos parece ainda mais complexo. Como tem sido isso para você? Acredito que ainda teremos que repensar em outras possibilidades de subsistência até o momento em que consigamos retornar com os shows, as festas e as apresentações ao vivo?
Estava ruim e piorou. Fato. Mas abre-se uma janela interessante ai. Por um lado, tiveram que parar de tratar artista como criminoso ou vagabundo. Não falo apenas do governo não. Esse não vale nada mesmo. Refiro-me também ao mercado que com seu poder curatorial meritocrático cria enormes desigualdades sociais, mas passa o pano pela lógica das cotas. O que quero dizer é que, ficamos sem mercado. Mas quase não tinha mercado antes. O que tinha era um sistema bastante burro de seleção e empoderamento instantâneo “dos melhores” sem que se pense em políticas públicas consistentes. Sem que se pense qual a função da arte nesta sociedade para além de fazer girar sei lá quantos míseros por cento do PIB. Enfim, não tínhamos um mercado que nos acolhe-se. As recentes políticas públicas de que dispúnhamos foram completamente destruídas. Restou o que? Além do SESC, que tem compreendido a gravidade humana (e não mercadológica) da situação e tem tentado atuar nesse sentido. Mas, para, além disso, não tem muito mais senão aquilo que nós mesmos venhamos a criar a partir de agora. Talvez (reforço o talvez) estejamos de frente para a possibilidade de recriar um mercado nós mesmos. Uma espécie de DIY de mercado. A possibilidade está dada. Vai rolar? Talvez.
Para terminar: o que você tem visto, ouvido, lido nesses últimos meses que têm feito sua cabeça?
Nossa, em três meses ouvi tanta coisa. Vamos lá, tem sido importante para mim neste momento: Amon Tobin, Oumou Sangaré, Massive Attack, Alsarah & the Nubatones, Nina Simone, mas tenho ouvido muito que os amigos têm lançado. Muita coisa. Às vezes gosto muito, às vezes gosto menos, mas, sinto uma sinceridade na maior parte. Uma sinceridade com o momento.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.