entrevista por Bruno Lisboa
Apesar da pouca idade (34 anos), a carreira do cantautor Luiz Gabriel Lopes tem ares de veterana: ele fez parte do coletivo mineiro Graveola por uma década como também tem uma prolífica carreira solo composta por três álbuns de estúdio mais dois com o trio Tião Duá. Não obstante ainda dedica suas atenções ao combo Rosa Neon e tem parcerias sólidas com Teago Oliveira, Chico César, Ava Rocha, Romulo Fróes e Samuel Rosa, entre outros.
Atualmente, Luiz está em Portugal, num autoexílio motivado por uma turnê local que não se concretizou devido a pandemia, e de lá lançou em maio passado o EP “Presente” (2020), lançado pelo selo Pequeno Imprevisto, um trabalho que traz quatro faixas em que o músico explora o formato voz e violão com letras que fazem uma ode a saudade em tempos de distanciamento social.
Nesta entrevista, Luiz Gabriel Lopes fala sobre o que tem feito para superar o período de confinamento, as diferenças entre o público brasileiro e o português, o processo de composição e gravação do EP, a carga de otimismo de suas composições, a arte e a politização, o legado deixado por Moraes Moreira, o caos brasileiro na era Bolsonaro, a cena musical belo-horizontina e a sua exposição a nível nacional, o mercado da música na contemporaneidade e muito mais. Confira!
Primeiramente como você está? O que tem feito para superar o confinamento e a pandemia?
Tô bem, felizmente num contexto massa, seguro. Vim pra Portugal no início de março pra uma turnê pela Europa que afinal acabou não acontecendo… Eu faria concertos aqui, e também na Itália, Holanda e Alemanha, mas aí apertou a coisa do Covid, foi sendo tudo cancelado, e eu fiquei. Por sorte, Portugal é um país onde tenho construído relações muito bonitas já há uns bons anos, passado temporadas por aqui, criando e fortalecendo trocas e intercâmbios artísticos… Portanto não me é uma situação estranha, pelo contrário. É um privilégio imenso estar seguro e com boas condições materiais, num momento em que tanta gente está sofrendo com necessidades básicas. Então tem essa sensação muito particular, de estar num contexto tão privilegiado, em contraste com o caos político que o Brasil atravessa nesse momento, desgovernado por uma milícia assassina e mentirosa, em plena pandemia. Daí meu desafio tem sido esse: administrar o sofrimento a distância, a saudade das pessoas queridas, a fritação do noticiário, as mil bads que se descortinam todos os dias nesse filme de terror que virou a política no nosso país, sem deixar, no entanto, de viver o momento presente, sem perder a vitalidade e a alegria. Tentar encontrar maneiras de estar pleno e forte pra poder contribuir de alguma forma com a oxigenação simbólica dessa travessia, com aquilo que posso oferecer de melhor, que é a minha música e a minha sensibilidade.
Você já havia excursionado por estas bandas desde os tempos de Graveola. Há alguma diferença no que tange a receptividade do público brasileiro e o daí?
Uma das coisas que me encantou desde o início, no contato com o público português, é a qualidade da sua capacidade de escuta. Percebo que há uma predisposição, construída historicamente, ao ritual do mergulho atento nos sons e nas palavras. Uma presença inteira investida no ato de ouvir, muito especial. Daí é todo um mundo que se abre: a maneira como reparam em detalhes das letras, das rimas, das imagens de cada canção, demonstra uma generosidade incrível, uma entrega mesmo com a jornada de cada canção, é muito gratificante. Em contraponto, sinto que no Brasil, apesar da imensa riqueza da tradição da nossa música popular, talvez pelas fragilidades do próprio circuito, dos modelos de consumo de música, existem vários obstáculos a essa qualidade de escuta. Não que não haja, mas definitivamente é algo que precisa ser desenvolvido num noutro nível. Talvez seja nossa natureza tropical, que nos leva a uma postura majoritariamente expansiva e portanto mais corporal, menos interior, na relação com a música. O que também é super rico e potente, nos abriu inúmeras portas criativas muito singulares. Mas, de fato, sinto que o desenvolvimento dessa outra capacidade, de experimentar um tesão mais contemplativo e silencioso pelas coisas, é um aprendizado importante. Principalmente nesse momento, onde a polarização do debate político fez com que as pessoas perdessem quase por completo a capacidade de escutar umas às outras. E o que é pior, há muitos que se orgulham disso. Então eu realmente tenho sentido que uma arte que de alguma forma nos proponha mergulhos interiores mais profundos, que nos convide a acessar a imensidão do silêncio que mora em cada um de nós, poderá ser muito benéfica pra nos ajudar a enxergar outros modelos de futuro.
O EP “Presente” é composto por quatro cartas musicadas em ode a saudade em tempos de distanciamento social. Como foi o processo de composição / gravação?
Quando comecei a visualizar a ideia do EP, fui pesquisar meu próprio repertório e percebi um campo de conexão entre essas quatro canções. Duas delas (“Lembrete” e “Recomeçaria”) já existiam e tinham gravações anteriores, mas nenhuma gravação minha ainda. Uma delas, a primeira (“Minha Irmã”), tinha acabado de nascer, mesmo como uma carta familiar, de conteúdo extremamente pessoal, mas que carregava em si uma síntese do sentimento que eu queria semear durante esse momento: a fé na travessia, a crença na nossa capacidade infinita de reinvenção e superação. A última (“Amigo”) é uma canção da minha família, escrita pela minha tia pro meu pai, uma carta de saudade também, de outros tempos. Então tudo acaba sendo também um recado também pra mim mesmo, de não esmorecimento, de entender meu papel no mundo e honrá-lo, ser grato e fazer vibrar esse sentimento através da minha música. A coisa de fazer tudo voz e violão foi uma decisão técnico-logística, mas também estética. Porque foi tudo gravado na sala de casa, sem grandes aparatos de produção, então tinha que ser simples. Por outro lado, eu tinha vontade de lançar algo nesse formato já há bastante tempo, muita gente que me conheceu nessa roupagem me pedia sempre, mas não tinha rolado ainda por mil questões. Então foi um encontro muito propício, da motivação com a oportunidade, e nasceu dessa forma. Vejo esse encontro da voz e do violão como uma tecnologia muito potente, ancestral e futurista, capaz de aproximar, aconchegar, embalar. É um lance muito direto. Por fim, tive ainda a alegria de contar com a parceria da galera do Pequeno Imprevisto pra mixar e masterizar o som, e lançar.
Suas canções de modo geral trazem uma certa carga de otimismo quanto a vida e ao cotidiano, apesar das dificuldades. Em tempos nefastos e de tantas mudanças como os nossos é ainda possível ver beleza na vida?
Acho que se a gente perde a capacidade de ver beleza na vida a gente está morto. Ou melhor, a gente está fudido. Mas sim, é algo realmente desafiador, nesses tempos bizarros que estamos vivendo, o Brasil nas mãos dessa corja de assassinos, uma pandemia mundial colocando todo mundo frente a frente com seus maiores fantasmas, arreganhando o abismo das desigualdades de quem pode e quem não pode ficar em casa… Então me parece que é justamente num momento como esses em que a alegria e a beleza se tornam gestos políticos ainda mais potentes e necessários. É um aprendizado que tem chegado muito pra mim pela escuta dos povos indígenas. Uma galera que está há cinco séculos em guerra, lutando contra a invasão das suas terras de origem e ainda assim conservam a alegria como um bem espiritual, sagrado; não perdem nunca a capacidade de cantar e dançar e ritualizar a maravilha e o mistério da existência. A arte é uma das grandes teias que pode nos manter conectados aos saberes dos nossos ancestrais, e cultivar as luzes desse caminho me parece uma responsabilidade histórica.
Ainda abordando o lado compositor, a política já se fez presente em muitas de suas canções, onde se manifesta acerca das dores do mundo. Qual a importância de manter uma arte politizada na contemporaneidade?
Sinto que, num passado recente, já tive mais “vontade de dizer” coisas, de soar relevante, de “mostrar o caminho” sobre alguma coisa. Com o tempo, fui sentindo que o despertar de cada um, e mesmo das grandes encruzilhadas políticas e sociais, vai bem mais pelo trabalho de encontrar as perguntas certas do que escolher respostas fáceis. Ninguém tem a verdade sobre nada, e quase sempre esse tipo de discurso supostamente politizado tem alto potencial de rápida obsolescência. Vivemos numa época onde a cultura do endeusamento e do cancelamento – principalmente de artistas e pessoas públicas – são os termômetros de funcionamento diário das redes de comunicação. Tudo passa muito rápido, o excesso de informação atropela qualquer possibilidade de aprofundamento. Nesse sentido, me parece importante escapar a essa tendência de anulação das singularidades, reforçar o ponto de vista oposto. Não sou nem quero ser líder nem guru de ninguém, sou apenas um compositor tentando balancear na minha obra o insight e a dúvida, a inspiração e a descrença, o medo e a fé. Então, hoje, estou mais numa de que tudo o que tenho é minha experiência, minha visão, minha sensibilidade. Parcial e única, singular e conformada por todos os meus defeitos e traumas, meus privilégios e frustrações. A capacidade de criar a partir disso, de alimentar o universo com canções que de alguma forma sejam úteis, pra povoar as memórias e vivências das pessoas, é uma missão que abracei com muito gosto e da qual muito me orgulho. E mais do que nomear as mil faces da estupidez humana, pessoalmente hoje me alinho mais com a proposta de reverberar territórios de sensibilidade e esperança, que possam estimular o horizonte imenso do nosso potencial criativo e mágico, que possam nutrir, numa dimensão bem funcional. Como diz aquela canção dos Mulheres Negras, “música serve pra isso”.
Acredito que Moraes Moreira é uma das suas fontes de inspiração. Recentemente a sua morte causou bastante comoção nacional. Qual é o principal legado deixado por ele?
Moraes é um gigante. Um monstro sagrado da linhagem baiana, que fermentou em seu caldeirão uma MPB muito própria, bebendo no samba, na bossa-nova, na chula, no rock. É uma síntese muito potente que ele faz, a maneira como articula a inventividade no violão, a malandragem e a leveza como intérprete, o talento de compositor com muita bagagem e arrojo nas formas. Uma capacidade maestra de driblar o óbvio, mas sempre tocando aquele terreno do que é também profundamente familiar, afetivo… futebol-arte. Curto muito também a capacidade de jogar em time que ele tem, a coisa do Novos Baianos é um lance que ainda está pra acontecer algo parecido na nossa canção popular. A potência e a harmonia daquela constelação, minha nossa, é um absurdo. E sim, sem dúvida a música dele segue presente também naquilo que faço, de várias formas, e também em muitos dos meus contemporâneos. Daquelas coisas que a gente só pode honrar e agradecer.
No mesmo período em que Moraes nos deixou o público brasileiro lamentou a morte do compositor Aldir Blanc e do escritor Rubem Fonseca. Se por um lado o falecimento de ambos rendeu homenagens diversas, por parte do governo e da ex-secretária de Cultura e sua equipe, nenhuma nota pública de pesar foi emitida, em mais uma clara amostra de como este governo desdenha a classe artística neste país. Em suas redes sociais você tem levantado opiniões acerca do Brasil contemporâneo contrárias ao governo Bolsonaro. Como músico como você vê este momento? E qual a melhor forma de encarar esta adversidade?
Quando não estou prestes a vomitar diante do noticiário, meu desafio tem sido tentar encarar esse tsunami de lama que se abateu sobre nosso país como um portal, através do qual vamos precisar recriar algum horizonte possível nos próximos anos. Pela transformação de velhos hábitos e crenças, pelo desenvolvimento de uma consciência mais refinada e complexa das coisas, do mundo que nos cerca, das nossas escolhas e suas reverberações. Eu acho que muitas coisas nos trouxeram até aqui, e precisamos assumir nossa responsabilidade enquanto povo, nas fraturas que cultivamos entre nós ao longo de todos esses anos, nos abismos que tanto se aprofundaram, dificultando a comunicação entre as várias camadas da sociedade, que foram se isolando e criando seus próprios mitos, suas próprias verdades. Isso tudo num mundo tomado pela terra sem lei que é a internet, que agrava ainda mais essa profunda crise dos saberes, das legitimidades, dos papéis de mediação. Sinto que o buraco é bem fundo mesmo, é um adoecimento psíquico, emocional, espiritual, de uma parcela grande da população, que se apegou à imagem de um “Messias” como a uma causa, um time de futebol. Tem a ver com uma disputa muito infantil, num certo aspecto, que é essa vontade de “ganhar o debate”, ao invés de construir algo comum através da soma de visões. O Bolsonaro e seu clã de ratos não são mais que os sanguessugas que estavam ali disponíveis e receberam a bomba no colo, no momento certo. Mas se a gente não resolver a base dessa merda, saem eles, entram outros, talvez um pouquinho menos toscos e mais maquiados de bons-moços, mas nada muda. Então tem um desafio imenso aí, que é o de reestabelecer um trabalho de formação, criar maneiras de fomentar a educação política como algo de base nas comunidades, nas famílias, nas escolas, em todos os ambientes onde isso seja possível. Que as informações não venham apenas através de memes e correntes de whatsapp, porque a gente sabe que tem que ir mais fundo. É todo um processo.
Já tive a grata oportunidade de entrevistar o Teago Oliveira (Maglore) e ele sempre elogia as parcerias que vocês realizaram. Como se deu a aproximação de vocês?
Teago é um artista precioso, sou fã. Já era fã da Maglore, a gente chegou a dividir uns palcos com o Graveola, tínhamos amigos em comum. Daí quando morei uns tempos em São Paulo a gente se aproximou mais, acabamos escrevendo algumas canções. É sempre um processo interessante, a gente tem uma complementaridade massa. Estamos sempre cozinhando alguma ideia em fogo lento. Ele tá com uma letra minha agora, vamos ver se em breve sai música nova (risos).
Atualmente para além da carreira solo você divide as suas atenções com a Rosa Neon. Como é fazer parte do grupo? E ainda: quais são as principais diferenças entre trabalhar em formato solo ou coletiva?
O Rosa Neon é um acontecimento meio imprevisto nas vidas de todos nós, um encontro muito potente que virou banda e virou disco e criou toda uma história massa. Pra mim tem sido uma pesquisa incrível, um puta aprendizado, estar perto de artistas tão talentosos e criar coisas a partir de uma proposta mais diretamente ligada à música pop, à cultura dos videoclipes, um outro rolê. É também um exercício interessante de metamorfose, mergulhar nesses universos por onde eu ainda não tinha andado tanto, trazer minha bagagem e absorver outras referências também. Como um outro heterônimo meu, que ativo quando estou naquele espaço, uma expansão dos meus próprios modos de ser na arte.
Somos conterrâneos de BH e vejo na cidade uma cena riquíssima cultural que segue a crescer, mas que certa forma precisa e merece se expandir a nível nacional. Por que você acha que isso não acontece?
Acho que depois do aparecimento do Djonga a galera finalmente começou a entender que BH e Minas Gerais como um todo tem um cenário foda e mega diverso, e interconectado, o que é ainda mais interessante. O lance da cidade não ser tão grande faz com que as trocas sejam mais próximas, as cenas estejam em diálogo e se influenciem mutuamente de um jeito muito especial. Claro que ainda existe essa geopolítica do eixo Rio-SP como um espaço de legitimação institucional, a imprensa “nacional” que supostamente é a que está nesses lugares, as grandes instituições de cultura, essa coisa do artista ter que ir morar nessas cidades, basicamente pra ser visto nos rolês e portanto poder “existir” dentro do circuito. Mas cada vez menos isso me parece fazer sentido, porque de alguma maneira acaba por promover uma anulação das singularidades de cada cena, uma necessidade de adequação a um “status quo” anacrônico e insuficiente, que é justamente aquilo do que a arte e o artista deveria querer fugir. E vale lembrar que o território da internet é muito vasto, então não é difícil pesquisar um pouco e descobrir que há um milhão de países maravilhosos dentro do Brasil, cada um com um sabor muito particular, outros sotaques, outros jeitos de fazer. BH é uma expressão disso, mas não é a única. O Brasil é imenso!
Sei que tudo ainda é muito novo, mas a pandemia impactou diretamente o mercado dos shows / espetáculos de modo geral. Então a pergunta é: qual o futuro da música? Estaria nas lives a salvação dos artistas que tem como ganha pão as apresentações?
Eu acho que tem uma discussão importante que é sobre a disponibilidade gratuita de conteúdo como uma espécie de regra silenciosa do mundo virtual. O excesso de coisa que a gente produz e dá de graça porque foi assim que o mercado quis, foram as regras do jogo que nos foram impostas nessa grande “primeira fase” da internet. E avaliar como isso muitas vezes cultiva um comportamento passivo no público, que não é convidado a se responsabilizar, a participar da viabilização dos trabalhos que consome, porque nunca ninguém quer levantar esse debate. Eu me lembro de, na época do myspace, uns amigos mais velhos da música virem me perguntar “mas será que é legal mesmo colocar tudo online de graça”? E eu era o jovenzinho que achava essa discussão reacionária (risos). Mas sim, acho que foi importante naquele momento, criou-se um espaço interessante, mais plural, a gente entendeu que tinha muita produção, muita diversidade. Mas talvez tenha chegado a hora de voltar nessa prosa, complexificar a visão, entender isso no horizonte desse 2020 nebuloso e do que virá a seguir. Discutir a monetização das plataformas de streaming, que é desenhada pra render muito pros artistas que já são muito grandes e pouco ou quase nada pros artistas de pequeno e médio porte. Entender e rediscutir a importância desses artistas de pequeno e médio porte no ecossistema do consumo de música, também me parece importante. Como seria o mundo se só houvesse a arte mainstream? O público sentiria falta ou nem ligaria? São muitas perguntas.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.
Maravilhoso papo! Luiz Gabriel é um dos grandes músicos brasileiros, e essa entrevista foi muito bem conduzida e ampliou minha visão do artista. Que bom é ler música desse jeito….