Texto por Renan Guerra
Desde que a pandemia do novo Coronavírus deixou muitos dentro de casa, em quarentena, pulularam nas redes fotos de pães, bolos e tortas: o isolamento social levou muitos para a cozinha. Adriana Calcanhotto, por sua vez, disse que não sabia fazer pão, por isso sua atividade matinal era fazer música. A meta era uma música por dia antes do almoço. Depois ela se envolvia com as questões do dia: faxina, livros, notícias. Dessa leva de composições solitárias, surgiu o disco “Só” (2020), lançado no final de maio.
“Só” nasceu de forma rápida e intensa, bem distinto da maioria dos trabalhos de Calcanhotto. A compositora gosta de escrever e reescrever e parece ter aquele respeito imenso por suas palavras, por isso mesmo esse novo disco – que chega menos de um ano após o ótimo “Margem” (2019) – é capítulo a parte nas criações da artista. É como se os outros fossem poesia e esse fosse prosa, mais especificamente, crônicas. São 9 canções em menos de 30 minutos que captam como uma polaroide esse momento do Brasil e do mundo.
Adriana estava residindo em Coimbra, Portugal, antes da quarentena, porém pelas complicações iniciais da pandemia na Europa, ela acabou ficando em quarentena no Rio de Janeiro. E foi de lá que ela se uniu a diferentes nomes para a construção desse disco. Todas as composições são assinadas de forma só, porém o disco tem produção do paraense Arthur Nogueira, com coprodução dos jovens STRR e Leo Chaves. Além disso, surge aqui e acolá o piano de Zé Manoel e uma inesperada parceria com Dennis DJ, nome marcante do funk carioca nos últimos anos.
A parceria com Dennis DJ, aliás, é o calcanhar de Aquiles do disco, por isso falemos dessa faixa logo: “Bunda Le Lê” é o chamado “funk da quarentena”. Para quem acompanha a artista, não é novidade os flertes dela com o funk, porém eles sempre vinham em uma espécie de “proto-funks”, feitos ao violão ou de forma descompromissada. Nessa nova faixa ela faz um joguete com palavras usuais nas letras de funk e propõe ações específicas a serem realizadas na quarentena. Na internet, muitos classificaram a faixa com ares de elitista. Em entrevista a Folha de São Paulo, ela deixou tudo mais estranho ao dizer que o que mais gosta no funk é a batida: “Acho incrível, mas sempre penso nas letras. […] Às vezes, as letras constrangem, impedem.”
No geral, “Bunda Le Lê” é uma composição bem esquecível no universo de faixas de Calcanhotto, porém sua associação com Denis DJ e o universo do funk, nesse momento em que as tensões de classe estão em ebulição, soa bastante complexo. Não nos alongaremos aqui nesse tópico, mas é fato que essa faixa rende interessantes tratados sobre funk, MPB, cultura e classes no Brasil do século XXI. Ouçam e façam suas análises (ouçam a música abaixo e usem a caixa de comentários).
As outras canções de “Só” também seguem pelos caminhos da música eletrônica, mas dentro de um universo mais usual, com o qual Calcanhotto flertava desde os anos 1990, como no excelente disco “Maritmo” (1998). São beats delicados que fazem uma cama para que os versos cantem a monotonia da quarentena, os silêncios e as solidões desses dias. Há espaço para o enquadramento das janelas, para a saudade das viagens e até mesmo para um sample de panelas a bater. As tensões políticas também permeiam o trabalho, como na excelente “Sol Quadrado”, que diz “O mundo dá voltas / E agora até o gado tá baratinado / O que jogas pro alto / Volta para o teu telhado”. Bem claro para quem é a mensagem, né?
Sua relação com Portugal também surge na faixa final, “Corre a Munda”, uma lembrança do rio Mondego, que corta Coimbra – Munda é um nome arcaico do rio. É como uma “Canção do Exílio” de quarentena, em encerramento melancólico, mas ao mesmo tempo esperançoso. Nesse sentido, “Só” tem sua maior sacada: este é um registro de dentro do furacão, que não fala em um mundo pós-Coronavírus, que não versa sobre um “novo normal” e que nem especula o que será o porvir, é o agora e isso é belo. Para completar esse universo, o diretor Murilo Alvesso filmou Calcanhotto em dois planos-sequência no que foi chamado de “Clipão da Quarentena” – se a cantora não sabe fazer pão, Alvesso diz então que ela terá um “clipão”.
“Só” é o primeiro disco de Calcanhotto após o encerramento de seu contrato com a Sony Music e terá sua renda dos direitos autorais revertida para nove iniciativas diferentes como o Redes da Maré, Ação Cidadania, Rocinha Resiste e Funk Solidário, além de sua equipe de técnicos, que está sem trabalhar desde o início da pandemia. Além de tudo isso, esse lançamento é simbólico, pois é muito bom vê-la em contato com artistas jovens interessantes e criativos. Mesmo para quem tenha suas questões com o disco, é interessante ver Adriana em movimento e abrindo caixas de diálogo, o que é bem raro quando se fala desses nomes grandões da MPB.
No final das contas, “Só” é Adriana Calcanhotto refletindo o agora, vivenciando o agora e tateando o amanhã.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
Coincidências das redes. hoje pela manhã tirei os quase 28 minutos pra ouvir Só.
Gostei do disco e acho que muito por isso: ” No final das contas, “Só” é Adriana Calcanhotto refletindo o agora”; tem tanta gente tentando ler/dizer o futuro, dá uma angústia…
enfim, todas as alternativas que a gente vive lendo por aí que esse disco dá uma pausa.
Estava com saudades dessa Calcanhoto!
obs.: sobre bunda le le, acho que dá pra criticar o teor elitista, pois né? quantas discussões urgentes! tomara que ela esteja aberta pra crítica e pra revisão; mas eu tenho que admitir que gostei do bunda le lê pq tô em processo de luta com uma dissertação hahahh