Zona de Respiradores: Mistificar

Zona para Respiradores #05, por L. Lyra
Mistificar
(uma playlist inspirada na coluna / leia as colunas anteriores)

“Mystify” (2020), documentário que narra a existência de Michael Hutchence disponível no Netflix, nos deixa intoxicados pela presença do líder do INXS. É um documentário diferente, que lembra os livros do punk contados pelos próprios personagens. Falo de “Mate-me por Favor”, que já chegou inclusive a ser apreendido pela polícia do RJ na casa de um manifestante (podia ser hoje, ou ontem, mas foi em 2013).

O diretor Richard Lowenstein optou por não mostrar a imagem das pessoas que falam sobre Hutchence: vemos fotos, vemos vídeos caseiros, vemos clipes, sabemos quem são os outros, ouvimos suas vozes durante seus depoimentos, mas estamos sempre com os olhos postos em Hutchence. O filme, que ainda conta com a trilha sonora de Warren Ellis, parceiro de Nick Cave, engrandece além da conta a sua figura, o que não invalida a morbidez de ver a vida do rockstar ir se descarrilando até o abismo.

A melhor canção – talvez a única? – do INXS é “Never Tear Us Apart”, single do álbum “Kick”, de 1988. Tudo nela é perfeito: o andamento, o arranjo de cordas, a paradinha pós-refrão, o riff da guitarra, o solo de saxofone!, a letra. Quem quer que esteja sob as flechas da paixão reconhece o poder de “Never Tear Us Apart”. Passamos a semana toda trocando versões e covers. A cada momento alguém oferecia um novo link: este é o melhor! Por exemplo:

Ou este, com harpa, que surgiu esta semana e está fresquinho de visualizações:

Mesmo os covers caseiros não decepcionam, porque a canção é tão forte que sobrevive até aos erros de execução – e, no fim, é o sentimento que sobrevive e comunica. Mas o cover que mais chamou a atenção foi do velhinho Joe Cocker:

Michael Hutchence disse ter composto “Never Tear Us Apart” para sua ex-namorada Michele Bennett – aliás, os depoimentos das parceiras do Hutchence, sozinhos, já valeriam o documentário (tem até a Kylie Minogue, que fala bastante do ex numa conversa com… Nick Cave, olha ele aí outra vez, em outro documentário, “20 Mil Dias Sobre a Terra“). Isto talvez explique o ultra-romantismo de “Never Tear Us Apart”.

Paixão que se torna ainda mais avassaladora no vozeirão do Joe Cocker. Não é um cover melhor do que a original do INXS, mas descortina a violência dos dois mundos colidindo.

Este tipo de autoridade parece vir apenas com a idade. Hoje Hutchence estaria com 60 anos, 2 anos a mais do que o Joe Cocker quando fez a sua versão. Talvez ele gritasse com fúria o refrão. Nunca saberemos. Talvez ele fizesse como Morrissey, que substituiu o fervor e o desespero adolescentes por um lamento delicado quando toca a sua clássica “Please, Please, Please Let Me Get What I Want” (canção que ao vivo dobrou de tamanho se comparada à dos Smiths, opção que Johnny Marr também pratica ao vivo):

Esta autoridade é o que confere a nobreza das “American Recordings”, do Johnny Cash. Todos se lembram quando ele tomou “Hurt” da mão do Trent Reznor. É nisto que andei pensando ao ouvir o cover de Emma Swift para a recém-lançada “I Contain Multitudes” de Bob Dylan:

Swift gravou um disco inteiro de covers do Dylan, com o excelente título “Blonde on The Tracks” e participação de Robyn Hitchcock. Mas o que na voz do Dylan é a recitação dos nomes que fazem parte de sua vida se tornam apenas… nomes que Swift canta, talvez com uma beleza mais imediata, mas sem a autoridade de quem viveu tudo aquilo e pode fazer a sua listinha. Chegou agora e quer sentar na janelinha?

“Para mim esta canção virou uma obsessão, um mantra, uma oração”, diz Emma Swift na descrição do vídeo. Algo da força, da mística, se perdeu. Não por acaso Dylan já afirmou inúmeras vezes que escreve suas canções para si próprio. Por isso ele não só é o seu melhor intérprete, como é muito difícil fazer uma versão de uma canção sua: falta a vivência pra tomar a canção pra si ou descobrir o que estava oculto – como fez Jimi Hendrix em “All Along The Watchtower”. Afinal, o maior mistificador é o Bob Dylan, o nosso falso profeta. Ele contratou até o Martin Scorsese pra fazer um documentário fake

E aqui encerramos mais uma semana, com uma das canções mais bonitas que o Bob Dylan já compôs. Olhando bem, você encontra até o Michael Hutchence ali no meio dos microfones:

PS: Um soluço para Bucky Baxter, responsável pelo pedal steel durante a década de 1990 na banda do Bob Dylan. Aqui está uma compilação com alguns de seus melhores momentos:

(uma playlist inspirada na coluna / leia as colunas anteriores)

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