introdução por Leonardo Vinhas
André Prando é um caso incomum entre os nomes de sua geração, e a diferença é tanto prática quanto conceitual. Como vários de seus contemporâneos, bebe em fontes que começaram a jorrar no passado, mas se recusa ao pastiche ou ao comodismo da “atualização” do som de outros tempos. Usa das redes sociais ostensivamente para divulgar seu trabalho, mas procura constantemente sair do circuito de autossatisfação com o qual a maior parte do indie se conformou. Pensa em álbuns, não em singles, e tem uma visão de construção de carreira que talvez seja anacrônica.
A maior diferença, porém, talvez esteja justamente na disposição de lapidar a composição para que ela seja a ponte entre o ouvinte e o seu próprio senso estético. Essa habilidade – ou melhor, essa vontade – de sair do hermetismo sem cair no popularesco tem sido pouco vista nos últimos anos, especialmente na música associada ao rock.
E Prando, não tenha dúvidas, é um roqueiro, que tem suas influências mais fortes nos proscritos do rock brasileiro e da MPB (Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Belchior), na geração 90 do mainstream norte-americano (John Frusciante acima de todos, mas também Pearl Jam, Kula Shaker) e em neopsicodélicos que sabem que a psicodelia não é só “doideira” (The GOASTT, por exemplo). São, ao fim, todos artistas pop, mas não unanimidades do pop – o que o dá uma pista de que a busca pela simplicidade não implica em barateamento criativo.
Sua música se propõe a ligar esses pontos, coisa que fez com êxito no primeiro álbum (“Estranho Sutil”, de 2015) e de forma confusa e nem sempre certeira em “Voador” (2018). Esse último, na verdade, soa como se o cantor estivesse testando alguns limites, e tinha notável “presença” do produtor Junior Tostói na estranheza de alguns timbres e arranjos, em oposição à clareja e concisão de Rodolfo Simor, que pilotou a mesa no disco de estreia.
“Canções Calmas do Apocalipse” (2020) é um EP de três faixas, semiacústico, que retoma a rota de “Estranho Sutil” com o conhecimento de causa que a pré-produção de “Voador” lhe trouxe. Nascido em pleno confinamento pandêmico, tem duas faixas autorais e uma releitura de Belchior. Nas três, escuta-se novamente um Prando mirando ser popular e “psicodélico na poética”, como definiu sua meta ao Scream & Yell em 2017. É um disco curto, que cumpre a promessa de seu título, mas também entrega canções sentidas e apreciáveis como quase não se faz – ao menos, nessa linguagem mais comumente associada ao rock. No texto a seguir, Prando conta a gênese e o desenvolvimento de cada faixa, e a leitura vale tanto quanto a audição.
Faixa-a-faixa: “Canções Calmas do Apocalipse”, por André Prando
01) “Gatinho na internet” nasceu em 2019 com o refrão composto por mim, inspirado na sequência desanimadora de catástrofes ambientais, episódios políticos e comportamentais polarizadores que temos vivido nos últimos anos. O teor irônico da música traz a crítica social com doses de humor, e então surgiu a ideia de convidar os amigos da banda Biltre para fazerem a música em parceria. Juntos, continuamos o processo de composição – via Whatsapp – e finalizamos durante o período de quarentena. A princípio não havia data de lançamento definida, apenas a ideia de lançá-la como single/feat em algum momento. A música entra no EP, com minha interpretação solo, mas futuramente será lançada em nova versão junto com a banda Biltre.
Foi uma música desafiadora de conseguir finalizar, já que ela fala de notícias ruins que vemos diariamente e que, a cada dia, se multiplicam. Vide a situação política que estamos vivendo enquanto passamos por uma pandemia mundial… é inacreditável. Como não surtar? A música brinca um pouco ao abordar memes e passar por essa reflexão, já que as crises são reais… a crise política, a crise sanitária, a crise de ansiedade. Sempre me preocupo em falar de nosso tempo, mas pensando que a música precisa fazer sentido futuramente – não só como um recorte de uma época. Então a letra deixa as aflições em aberto para diferentes interpretações também.
É uma música que todo mundo aqui em casa participou, tem a voz da minha esposa Luara Zucolotto e os miados dos nossos gatos Larika e Chapado. À distância, recebi participação especial de Carlos Sales na percussão, Jackson Pinheiro no baixo (Jackson também é o responsável pela edição e mixagem do EP) e um destaque especialíssimo para Rick Ferreira na guitarra e no pedal steel guitar – gravar com Rick foi a realização de um sonho pra mim! Um dos maiores guitarristas da música brasileira. Foi o primeiro músico a tocar o pedal steel no Brasil, gravou com vários artistas lendários, Belchior, Erasmo Carlos, Zé Ramalho, mas o destaque especial é a discografia e parceria com Raul Seixas. Nos conhecemos através do próprio Carlos Sales e, antes mesmo do EP, já estávamos preparando algo incrível, que iremos lançar em breve. Mas aí já é outra história…
02) “Dharma” foi a primeira música que entrou no repertório e é uma parceria com Luiz Gabriel Lopes (artista mineiro integrante da banda Rosa Neon, e ex-membro da banda Graveola). Nossa amizade já vem de alguns anos e ele já havia feito participação especial no disco “Voador” (2018), cantando “Na Paz do Caos”. O processo de composição de “Dharma” começou em 2019, também via Whatsapp. Os últimos versos e intenções foram fechados já durante a quarentena, o que fez com que a música trouxesse uma mensagem que abraça o momento atual.
“Dharma” fala sobre mudança, sobre o processo de reaprender, sobre como nossas intenções e ações conspiram para o funcionamento da vida e que, logo, você colherá a energia que você emana. Ela traz um bom sentimento de que as coisas que estamos passando serão, de alguma forma, aprendizado para nós e que ficaremos bem. Por isso batizei de “Dharma” – conceito oriental de múltiplos significados, que pode ser entendido como “o que se faz e que se colhe de bom”. Diferente do Karma, que é relacionado ao que se faz e que se colhe de negativo. A música tem participação especial de Felipe Duriez, músico carioca incrível, tocando guitarra slide lindamente, bem na vibe George Harrison.
03) “Clamor no Deserto” entrou como uma feliz surpresa. Amo Belchior e o disco “Coração Selvagem” (1977) é um dos favoritos aqui em casa, mas nunca tinha me atentado TANTO para essa música. É incrível como ela conversa com o momento no qual vivemos. A letra toda é atual, tem até uma coincidência curiosa, que é o fato da música fazer referência à “1984”, livro de George Owell que criou o conceito do Big Brother – entidade que observa invasivamente e frequentemente a sociedade. Muitos fazem a interpretação de que hoje essa ideia é materializada como o Google ou a Internet em geral. Ora, numa releitura contemporânea o conceito deu origem ao Reality Show: BBB – um assunto tão comentado esse ano e durante a quarentena. Enfim, foi a música perfeita para fechar o EP com uma mensagem de esperança. As participações especiais de Carlos Sales (mais uma vez na percussão) e Federico Puppi nos cellos trouxeram a emoção e a espacialidade que eu queria para a versão, que é bem diferente da original de Belchior. Puppi também gravou cellos no Voador (2018) na música “O Mundo Com Tudo Que Há”.