entrevistas por João Paulo Barreto
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, a cada hora, no Brasil, quatro meninas de até 13 anos são estupradas. Além disso, segundo estudo do Ministério da Saúde, a maioria das vitimas de abuso sexual tem até cinco anos de idade. Um estudo trazido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública concluiu que 82% das vitimas de estupro são do sexo feminino, sendo a maioria delas negras e jovens, e que, segundo relatório de atividades da Childhood Pela Proteção da Infância, surgem, a cada ano, 500 mil casos de exploração sexual infantil.
Diante de tais fatos e estatísticas, a urgência de uma obra como “Um Crime Entre Nós” (2020), e o necessário alcance da mesma para o maior número possível de pessoas, é algo prioritário. Mas para além dos números e frieza das porcentagens e estudos citados, o que o filme dirigido por Adriana Yañez traz ao seu público é humanidade. Prioritariamente humanidade, mas, também, afeto e empatia para as crianças traumatizadas e que, por consequência, se tornam adultos para sempre marcados.
O Scream & Yell conversou com a cineasta Adriana Yañez e com a diretora do Instituto Liberta, a professora Luciana Temer, sobre o processo de criação do documentário, bem como sobre as ações do Instituto na luta contra o abuso e exploração sexual infantil no Brasil. Adriana trabalha há mais de 10 anos com documentários, como diretora e roteirista. Luciana é advogada e professora da PUC-SP e da Uninove, é presidente do Instituto Liberta; foi secretária de Esporte, Lazer e Juventude do Estado de São Paulo (2001-2002, gestão Alckmin) e secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (2013-2016, gestão Haddad).
Trazer um tema de tamanha urgência para o espectador em um documentário é algo bastante desafiador no aspecto da capacidade de transmitir ao público tal urgência. Seu filme consegue isso de maneira pontual ao mesclar, junto ao peso dos depoimentos das vítimas, as falas com as animações que ilustram, sem cair no óbvio ou no gratuito, aquelas situações monstruosas para a audiência. Algo que traz um poder imenso de reflexão ao filme. Você poderia falar um pouco sobre esse processo de criação relacionando a narração em off, com os depoimentos e a animação?
Adriana Yañez – As entrevistas com as pessoas da rede de proteção oferecem um panorama muito profundo da questão e olhares muito sensíveis às histórias das vítimas. Mas acredito que as histórias individuais, as experiências vividas com todas as suas particularidades, nos fazem nos aproximar de qualquer tema de uma outra maneira. É como melhor podemos compreender a dor, o alívio, o medo, o desamparo. Conecta com a nossa humanidade. Pedir à uma criança vítima de violência que sexual pra que conte a própria história para ser gravada é algo inconcebível, por melhores que sejam as intenções. Gravaríamos a história, teríamos o controle sobre ela e a criança continuaria no mesmo lugar, talvez mais fragilizada, por ter revivido a experiência ao contá-la e ainda imaginar que sua história seria exposta sem que ela entendesse muito bem como. A partir desses pensamentos, acessamos um número enorme de relatos de meninas e meninos através de conversas com vítimas que hoje são adultas, conversas com pessoas da rede de atendimento e publicações. Eu quis manter o discurso em primeira pessoa na maior parte para preservar a subjetividade de cada universo particular. Com a escolha dos relatos, começamos a rabiscar traços para dar forma à essas narrativas. Assim surgiram as animações.
Da mesma forma, as leituras das cartas no final têm um grande poder no que se refere à humanização daquelas vítimas, dando um rosto àqueles números e estatísticas, dando-lhe vozes. A fala de Ana, que ao final conta sua trajetória traumática pós abusos infantis que a marcaram até a vida adulta, permite a audiência ter essa maior proximidade com ela e, por consequência, com aquelas pessoas, uma maior empatia por elas. A sua aproximação com Ana e com outras vítimas de abusos se deu seguindo algum processo específico de planejamento? Você poderia falar um pouco desse aspecto do filme?
Adriana Yañez – Senti durante o processo que o filme abriu uma fresta de escuta que escancara o silêncio e invisibilidade a que se destina a maioria das vítimas de violência sexual. Pra além da pesquisa, de conversas, entrevistas e leituras, fui procurada e ouvi muitas histórias espontaneamente. Cheguei a passar horas da madrugada com a cozinheira do hotel em que estávamos hospedados quando ela soube o que aquela equipe estava fazendo em Recife. Ela precisava contar sua história. Da mesma forma, Ana era uma das pessoas que estava passando na rua e convidamos pra entrevistar. Nesse espaço, não perguntei a ninguém sobre histórias pessoais de violência, mas ela viu nessa conversa uma oportunidade pra falar algo que não tinha falado a ninguém a vida inteira. Acredito que ela precisava tornar visível o que foi desacreditado e invisibilisado ao longo de todos esses anos. A presença da câmera às vezes desperta isso. Procuro acolher com muito respeito e responsabilidade.
Logo após a fala de Ana, uma pessoa já adulta e com uma trajetória de vida traumática que poderia ter sido evitada caso sua infância tivesse sido diferente, você corta para a imprescindível abordagem da necessidade de se falar de sexualidade nas escolas, para crianças. Com os recentes ataques políticos relacionando o uso de métodos pedagógicos como ferramentas visando resultados eleitorais, como foi feito o planejamento dessa abordagem essencial tanto para o filme como para a resolução de um problema social que precisa, sim, ser trabalhado desde a infância?
Adriana Yañez – A educação é uma chave fundamental para o combate à violência sexual infantil. A escola se mostrou, em todas as pesquisas, o principal espaço de denúncia e encaminhamento desses casos. Falar de sexualidade com crianças é dar ferramentas de autoproteção pra que ela conheça o próprio corpo, os limites que deve colocar para as outras pessoas, o que não deve aceitar e como pedir ajuda caso esteja sentindo algo errado. A falta de informação e a falta de atenção no comportamento das crianças faz com que muitas delas sejam violentadas durante muitos anos sem que nenhum outro adulto saiba. Outro ponto elementar é o papel da educação na transformação do pensamento machista, racista e misógino que rege nossa cultura. Desde muito cedo, é preciso que as relações de gênero, a história, a cidadania e o respeito sejam trabalhados com as crianças, despertando questionamentos e consciência para pensar e fazer diferente. São conteúdos tão importantes quanto português e matemática, sem os quais não será possível transformar as desigualdades e violências estruturais.
Porém, tal desesperança não significa de maneira nenhuma um conformismo, saliento. A fala da socióloga e terapeuta Adriana Araújo, inclusive, define de maneira precisa essa questão atrelada ao não conformismo, quando ela coloca em xeque a sociedade machista “na qual o homem pode fazer tudo; o homem branco e rico pode fazer tudo ainda mais e a mulher é sempre submissa e a mulher negra e pobre ainda mais”. A força dos depoimentos é um ponto imenso no seu filme. Na construção do discurso e argumentos na montagem, como você seguiu esse norte para alcançar a eficiência do resultado final na conscientização e urgência da mensagem existente no documentário?
Adriana Yañez – Nosso processo de construção do filme partiu da escuta de mais de 50 pessoas que trabalham na rede de enfrentamento à violência sexual infantil. A cada nova pessoa e organização que você escuta, mais se aproxima da complexidade do tema em um país tão grande e tão desigual. Entrevistamos pessoas de conhecimento e sabedoria preciosos, uma delas é a Mana (Adriana Araújo), que lidera o trabalho do Coletivo Mulher Vida em Olinda e está há anos na linha de frente atendendo vítimas de violência. Ela tem um olhar verdadeiramente humano e ao mesmo tempo análises muito lúcidas dos problemas estruturais que são causas e consequências desse ciclo de violência no Brasil. Muitas entrevistas duraram mais de 3 horas, fora todas as conversas off câmera. Fizemos um esforço grande na montagem para colocar essas pessoas e ideias em diálogo, abordando com seriedade os diferentes ângulos para a construção de uma reflexão que pudesse se aproximar da complexidade que o tema pede.
Essa construção narrativa, inclusive, de trazer à tona as opiniões retrógradas e prejudiciais daquelas pessoas, encontra um impacto imenso quando, na leitura das cartas, muitos dos entrevistados que traziam falas inóspitas de culpar a mulher pelos crimes que elas sofreram são confrontadas por suas próprias consciências. Você pode falar acerca dessa opção e como o resultados se deu de maneira exata no que se refere ao reflexo, também, que o longa poderá alcançar em muitos(as) espectadores(as) que vão assistir ao filme?
Adriana Yañez – As leituras das cartas oferecem um contraste ao discurso naturalizado de constante culpabilização das vítimas de violência. Acho que estamos muito acostumados a reproduzir discursos prontos, gritar nossas opiniões e ouvir cada vez menos. A leitura dos relatos é um convite de pausa e reflexão. “Será que se você parar pra ouvir/ler alguém que viveu algo diferente de você, seria possível olhar de um outro ângulo? Reconsiderar suas certezas e ideias?”. Nesse sentido, o filme oferece vários convites ao espectador, oportunidades de rever e refletir sobre aquela velha opinião.
O filme “Um Crime Entre Nós” apresenta dados impactantes acerca dos índices relacionados à exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes. Como foi a preparação dessa estrutura do documentário e a importância de levar isso ao espectador?
Luciana Temer – É um desafio gigante, porque a temática é muito difícil. Discutimos muito sobre isso. Quais eram os caminhos para a estruturação desse documentário? Ele foi construído para ser um instrumento. A gente quer sensibilizar as pessoas sobre essa temática. A missão do Instituto Liberta é fazer o Brasil falar sobre esse assunto, criar uma empatia das pessoas com essa situação e entender a dimensão desse problema, que é um problema gravíssimo, seriíssimo. A violência sexual não é uma exceção. A violência sexual é uma regra no cotidiano do nosso país. Temos que apontar a gravidade disso e ao mesmo tempo apontar o que nós acreditamos ser um caminho, que é o caminho da educação. É por onde caminha o documentário. Pelas boas práticas. Levar esses processos de discussão às escolas, que é o que pode salvar nossa sociedade no final das contas.
E um dos pontos que o filme aborda de maneira precisa é o fato de que os casos de abuso e violência sexual envolvendo crianças e adolescentes tornam-se , também, casos de feminicídio, que, no Brasil, possuem índices alarmantes. E isso se relaciona muito com os traumas que essas jovens têm e que carregam para sempre na vida adulta.
Luciana Temer – A criança e o adolescente têm que ter direito ao desenvolvimento integral. Inclusive, o desenvolvimento sexual. O desenvolvimento sexual tem que ser saudável, tem que ser sadio. Essa sexualização precoce, que…(pausa). E, veja, aqui não tem nenhuma conotação moral. Ninguém aqui está falando de moralismo. A questão está na naturalização. E na verdade, eu acho que isso tem menos a ver com a questão da sexualização, e mais com a questão do machismo, da objetificação do corpo da mulher, que independe da idade que ela tem. Essa conotação…(suspiro) de que a mulher é um objeto a servir o homem. Isso é uma mentalidade muito machista e que está enraizada na nossa sociedade. Lembro de uma pessoa que viu o documentário perguntou por que falamos de dados de mortes de mulheres. “Mas não é um filme de criança, de adolescente?”, ela perguntou. Quando você olha para esse contexto machista, ele tem a ver com feminicídio. A taxa de feminicídio tem tudo a ver com o fato de como a mulher é vista na sociedade. A criança já é vista dessa forma. Sexualizada, como propriedade do homem, e isso é algo que vai se construindo ao longo de todas as idades. Desde a menina até a adolescente, a jovem e a mulher. Eu acho que o que é muito feliz no documentário é que a gente sai de uma ideia macro, que é essa de ser uma questão de gênero. Porque a violência sexual no Brasil, lógico, abrange meninas e meninos, mas a característica ainda é muito relacionada às meninas vitimas. Desde essa situação de violência contra a mulher em geral até a situação da violência sexual contra crianças e adolescentes.
Essa normatização da sociedade perante os casos de exploração é algo que o filme, inclusive, pontua muito bem nas entrevistas com populares.
Luciana Temer – São duas as grandes violências que o documentário coloca em evidência. O estupro de vulnerável, que as pessoas conhecem como uma situação de abuso, popularmente conhecido como abuso, e a situação da exploração sexual de crianças e adolescentes. Então, na verdade, você vai até chegar na exploração, que é o foco do Instituto Liberta. Quando você chega na situação da exploração, o que fica muito claro é que o Brasil não liga para a situação da exploração. Quando o Luciano Huck conversa com os populares lá em Manaus, ele fala: “mas ninguém chama o conselho tutelar? Ninguém chama a polícia?” E as pessoas fazem aquela cara de “não, já virou paisagem”. Nesse momento, tem uma pessoa que fala: “é, tá errado. Mas já virou paisagem”. É essa ideia de que já virou paisagem, em especial a exploração, que o filme quer mudar. E eu gosto de fazer essa diferenciação, porque a verdade é que o abuso, ele gera indignação social. Quando uma menina é abusada aos cinco, seis anos de idade, isso gera indignação nas pessoas. Agora, quando essa mesma menina é explorada sexualmente, o que você escuta? “Ela é uma sem vergonha. Ela está lá porque ela quer. Ela gosta de dinheiro”. Essas são as falas que a gente escuta no documentário. Então, essa naturalização da exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, é algo que a agente tem que olhar com muita seriedade. É fruto deste contexto machista, patriarcal e de objetificação do corpo da mulher. Eu acho que tentamos. Porque se a gente não chegar à raiz, a gente não vai resolver. Tem que chegar à raiz do problema para entender qual é esse problema. E, a partir daí, o que a gente quer? Queremos a construção de políticas públicas eficientes para tirar meninas e meninos dessa situação de violência. E uma coisa que a gente tenta muito desmistificar também é o seguinte: aqui no sudeste, em especial, quando você fala de exploração sexual, as pessoas falam para mim: “ah, sei é horrível. Ali no norte, nordeste, o turista que vem…” E aí eu faço muita questão de explicar para as pessoas que este é um recorte importante dentro da exploração sexual, mas a exploração sexual é muito mais do que isso. Porque exploração sexual acontece bem aqui no centro da cidade de São Paulo. Não é verdade que a exploração sexual é uma coisa somente do norte e nordeste, e do estrangeiro que vem para cá em busca de turismo sexual. A verdade é que essa situação é absolutamente naturalizada no Brasil inteiro. O que muda é o preço da menina e quem está pagando. Mas verdade é que nós temos essa situação naturalizada em todo o Brasil.
Algo que, pessoalmente, me incomoda muito é a ação religiosa como elemento moralizador e, muitas vezes, hipócrita, criando mais obstáculos do que pontes na conscientização social quanto a necessidade de informar acerca de tão urgente assunto. Principalmente nas escolas.
Luciana Temer – Primeiro que a gente está falando de um assunto tabu. Sexo é um assunto tabu. Ainda é. Daí quando você pega a questão religiosa, você tem vários enfoques das diferentes religiões. Mas, normalmente, é um enfoque moralizador. Há muitas igrejas que são de vanguarda e focam mais nessas questões, mas, como regra, você tem a questão religiosa às vezes incidindo de forma perversa, restringindo a possibilidade de falar com franqueza e abertura sobre essa temática. Isso é muito ruim, logicamente. Muito ruim porque a gente defende no Instituto Liberta que falar sobre sexualidade é o ponto mais importante para a gente ajudar na prevenção. Mais do que apenas repressão. E essas situações não são averiguadas e, muitas vezes, não são punidas no Brasil adequadamente. E isso porque existe esse tabu, esse silêncio, ou no caso que você está me trazendo, não existe silêncio nenhum, está escancarada a questão. Mas, por alguma razão, a justiça não consegue chegar em uma punição. Porque não há empenho suficiente, por exemplo. Muitas vezes, há uma naturalização dessas violências. Uma relativização da importância. Lembro de que tivemos uma situação de alguns anos atrás onde um fazendeiro de 79 anos teve uma relação com duas meninas, uma de 13 e outra de 15 anos. E ele acabou sendo absorvido porque as meninas eram prostitutas conhecidas na cidade. Esse é o termo usado na decisão judicial. Então, você imagina um tribunal que diz que uma menina de treze anos é uma prostituta conhecida na cidade, e, portanto, o cara não teria praticado um crime. É um grande absurdo! Esse conceito social que marginaliza essas meninas ao invés de enxergá-las como vitimas. Voltando para a questão religiosa, eu acho que a religião tem um papel muito importante na sociedade. E ela é um instrumento muito poderoso que, se bem utilizado, pode ser muito interessante. O que eu mais tenho preocupação hoje é dos riscos que corremos de retrocessos a falar sobre sexualidade nas escolas. Hoje, nós temos um risco real de uma tentativa de cerceamento dessa possibilidade. E isso seria um grande retrocesso. Porque eu acho que a gente nem falava o suficiente ainda. A gente teria que falar mais e melhor nas escolas sobre essa temática. E talvez mais cedo. Porque tem uma lógica absurda de que você tem que falar sobre sexualidade com meninas de 14, 15 anos. E meninos, também. E eu sempre digo: é bom que ele/ela já vão com o filho no colo assistir à aula. Porque falar de sexualidade com uma menina de 15 anos é piada. Hoje em dia, as pessoas começam a vida sexual muito cedo. E nisso não vai nenhum julgamento moral. A questão é: a menina, desde que consciente e consentidamente, ela pode começar a vida sexual quando ela quiser. Mas tem que ser com consciência e consentimento. E isso não acontece nos casos de violência nem de exploração. Precisamos trabalhar com mais honestidade essa questão, mas, também, com franqueza e liberdade. E o espaço para fazer isso, no nosso entender, é nas escolas. A preocupação que eu vejo é um movimento conservador que, sim, tem relação com as igrejas, um movimento conservador que busca cercear a discussão da sexualidade nas escolas. Esse é o maior risco que a gente tem hoje.
É trágico que, muitas vezes, a religião seja utilizada como obstáculo para esse trabalho de conscientização.
Luciana Temer – Sem o discurso moral, porque é muito complicado a gente falar de qualquer questão ligada à sexualidade, hoje, sem que você não seja acusado de estar incentivando crianças a terem relação precocemente, ou, muitas vezes ao contrário, você ser acusada de conservadorismo e captada por um discurso conservador que não é o nosso de forma nenhuma. Ao falar desse assunto, tem gente que xinga a gente. Chama a gente de conservador. E, ao contrário, também tem gente que diz que a gente está querendo liberar todo mundo. E não é uma coisa nem outra. O que a gente entende é: precisa haver uma consciência. E a consciência vem com educação, com instrução, com discussão. Temos que empoderar meninos e meninas para entender o que é violência sexual. Nós enxergamos, hoje, que tem muitos jovens submetidos voluntariamente a uma grande violência sexual. Por exemplo, nós fizemos um trabalho com jovens de seis escolas públicas, aqui em São Paulo. Na capital e no interior. Um trabalho de oito meses. Com um grupo de 30 jovens em cada escola falando sobre o que é violência e o que a violência sexual para eles. E foi incrível o trabalho. Porque os jovens estão se dando conta do nível de violência ao qual eles estão submetidos sem perceber. E isso é muito transformador. Agora, como é que a gente faz isso? Com diálogo. Com discussão. Com conversa sobre masculinidade, sobre feminismo, comportamentos sociais. Não é com cerceamento. Nem religioso, nem moral. Com respeito entre as pessoas. Respeito aos direitos. Direitos no sentido mais amplo.
O filme traz essa reflexão muito forte acerca da ideia de “se tornar paisagem”, de banalizar algo que é muito sério. Ao final, a sensação que ficou em mim foi de pessimismo em relação ao Brasil.
Luciana Temer – Existe uma inversão. A nossa luta tem que ser visando uma mudança cultural brasileira. E que pregue o respeito igualitário entre homens e mulheres. Entre os seres humanos. Lógico, estamos falando de toda uma dimensão. E eu sou professora de Direito Constitucional. Tenho uma militância nos direitos humanos há muito tempo. Quando você fala de ser feminista ou não ser feminista, você está falando, na verdade, de uma situação igualitária e que diz respeito à dignidade das pessoas. Isso independe de sexo, gênero, raça. Tem que ser um pressuposto de respeito das pessoas pelas pessoas. Independente de qualquer outra característica. Eu estou falando de uma coisa muito ampla, mas é claro que isso vai rebater na importante questão dentro desse quadro que é questão da exploração sexual de crianças e adolescentes. A exploração sexual de crianças e adolescentes está baseada dentro de uma lógica de desrespeito. Desrespeito pelo outro. E, veja bem, a nossa sociedade resolveu dizer que fazer sexo com uma criança até 14 anos é crime punível com até 15 anos de prisão. Estupro de vulnerável. E resolveu dizer que fazer sexo com um(a) adolescente entre 14 e 18 anos em troca de algo, ou seja, com pagamento, que é a exploração sexual, é crime com pena de ate 10 anos de cadeia. A gente tem uma lei. E o que é uma lei? A lei é um consenso social. A nossa sociedade brasileira decidiu dizer que isso é crime. E isso é crime! Está no código penal. Ora, como é que isso é crime no código penal e existe esse nível de naturalização dessa prática? E aí a gente tem que fazer uma distinção entre o abuso e a exploração. Porque o abuso ele não é punido muitas vezes porque as crianças são muito pequenas, às vezes não conseguem configurar a violência. Às vezes as violações são tão intra-familiares que ficam no sigilo e ninguém fica sabendo. A criança também, às vezes, não tem consciência do que está acontecendo com ela. Mas o fato é: a sociedade tem algum olho sobre a violência sexual reconhecida como abuso. E gera uma indignação. Quando você olha para a exploração, a vitima, para a sociedade, é uma prostituta. E não importa se ela tem apenas 13 anos. A sociedade não olha com empatia. Ela marginaliza esta menina, este menino.
Ações sociais e de políticas públicas.
Luciana Temer – Um dado importante e que aparece no documentário, também: o Liberta encomendou do Datafolha em 2018 uma pesquisa para entender como é que a sociedade enxergava a questão da exploração sexual de crianças e adolescentes. E um dos resultados importantes que a gente teve foi de que, mesmo que a maioria das pessoas, quase a totalidade, sabia que é crime pagar para fazer sexo com uma criança de 10, 15, 16 anos de idade. Mas dentro do universo de pessoas que viram ou sabem de uma situação de exploração sexual, não de abuso, mas de exploração sexual, só 24% denunciam. E por que só 24% denunciam? Porque não tem importância para a sociedade a exploração sexual. Não tem. Agora, a exploração sexual, além de ser uma grande violação dos direitos humanos, ela tem custos sociais gigantes. Que não são computados por essa sociedade. Porque essa menina, primeiro, vai sair da escola. 18% da evasão escolar no Brasil é de meninas que têm gravidez na adolescência. Tem o envolvimento com álcool e drogas, porque a questão do tráfico está muito ligada com a exploração sexual. E você tem meninas que vão tendo filhos e esses filhos vão entrando nesse ciclo perverso. São meninas que vão ficando submetidas a isso e que vão ser as adultas que, no futuro, serão vitimas de feminicidio. Porque elas saem das escolas, não se capacitam, ficam na dependência da exploração sexual ou elas vão arrumar um homem para tomas conta delas e vão ficar submetidas a essa violência. É um problema gigante. Um problema social gigante. E a gente precisa acordar para isso. O documentário tem esse objetivo. Fazer o Brasil falar desse assunto. É importante falar sobre esse assunto porque isso só muda com políticas públicas. A gente está falando de mudar uma consciência, mas estamos falando, também, de forçar políticas públicas efetivas. A política pública só se constrói a partir de pressão social. Pressão social só acontece com algo que incomoda a sociedade. Quando é que a questão da violência contra a mulher passou a ser pensada como política pública? E aí, sim, no Bolsa Família, no Minha Casa Minha Vida, as coisas são colocadas no nome da mulher. Por que? Porque começou um movimento social há mais de 30 anos que impulsionou esse desconforto social. E esse desconforto social gera uma pressão no governo e o governo começa a pensar em construir políticas públicas. Enquanto violência sexual contra crianças e adolescentes não for um desconforto social, não se vai pensar em políticas públicas consistentes para se acabar com isso. É simples assim.
Curiosamente, durante o filme, eu me peguei pensando (e me identificando e me censurando por pensar assim) em Travis, protagonista de “Taxi Driver”, do Martin Scorsese.
Luciana Temer – Outro dia, eu vi uma charge em que o menino perguntava para o pai: “pai, se os bons matarem todas as pessoas más, só vão ficar os bons?” E o pai respondeu: “Não. Só vão ficar os assassinos”.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
É crime Sim!
Mesmo com a autorização, Como eles dizem. Estamos falando de crianças que as vezes nem sabe do que se trata, pois imaginam viver dias melhores. Não devemos nos calar e exigir providências da Sociedade diante de Tamanha Crueldade.
Ps:. “E se fosse com seu filho (a)?