Zona para Respiradores #03, por L. Lyra
No queda más que el viento
(ouça uma playlist inspirada na coluna)
Mais pra frente falaremos das teorias que cercam as novas canções do Bob Dylan. Envolvem “O Livro Egípcio dos Mortos” e outras inspirações. Na Argentina, talvez o maior apreciador de Mr. Zimmerman seja Charly García. Se é a primeira vez que você lê este nome sugiro que comece por aqui:
Muitos de nós conhecemos o portenho graças à versão dos Paralamas do Sucesso:
Os Paralamas são considerados a melhor banda argentina que canta em português. Tudo isto está bem registrado nos documentários e livros do grupo do Herbert Vianna. Aqui no Scream & Yell, João Barone disse certa vez: “Eu acho que Charly [García] e Fito [Páez] influenciaram o Herbert mais que qualquer artista brasileiro”. Mais: nalgum documentário (pode ser livro também), Bi Ribeiro comenta algo do tipo: “Charly García é o cara mais louco que eu já conheci na minha vida”. E, bem, o Bi Ribeiro tinha um jacaré na banheira (ou era lenda?). Aqui podemos ver todos enlouquecidos num ‘gran temazo’, uma das mais contundentes canções políticas dos 80s:
Era a fase em que o Charly García usava o bigode bicolor. Fiquemos com esta mistura de Dylan e Stones:
Ainda nos 90s, com o magnífico baixista Pedro Aznar, Charly pariu o que é talvez a versão mais linda da mais linda canção dos Beach Boys:
Los Super Ratones também homenageiam a genialidade de Brian Wilson num cover bastante divertido:
Enfim é chegado o momento de trazer o Fito Paez pra conversa, que já manejava o teclado em “Piano Bar”:
(Esta bela canção de amor doméstico deve ter como inspiração a bailarina brasileira Zoca, grande paixão de Charly, que inclusive veio dar com os costados em Búzios. Quem quiser conferir o amor dele pela nossa música pode se esbaldar no disco “Como Conseguir Chicas” (1989). Zoca é uma figura bastante misteriosa ou então falta pesquisa. Pouco se sabe dela, uma espécie de Sara Lownds brasileira casada com um rockstar argentino malucão.)
Nas últimas semanas tenho ouvido várias vezes esta canção do Fito Paez, só ele e o piano, 7 minutos de verso em cima de verso e citações e tudo o que compõe ‘o perigo de estar vivo’:
Dava pra educar um filho com esta canção. Na família do rock argentino, Fito Paez se dá bem com os pais. Ele recorda o tempo em que era “un pibe triste y encantado / de Beatles, caña Legui y Charly García” (isto é puro Dylan destilado, aqueles minutos finais de “Murder Most Foul” em que ouvimos dezenas de referências amorosas a artistas que povoam a sua mente e o seu coração).
Há outra canção que também me comove até dizer chega. Fito a compôs para um amigo que lutava contra o câncer: “Muchas veces me pregunto / ¿Qué estamos haciendo acá? / Dejo de pensar / Y veo que al final / Siempre estarás / Siempre estarás en mi”:
Esta versão em particular tem outro significado: Luis Alberto Spinetta, o grande pai do rock argentino, havia se recuperado também de um câncer e subiu ao palco pra tocar a canção daquele pibe de Rosário. É bonito de ver o Fito abrindo os braços no fim.
A próxima canção foi composta por Gustavo Cerati, líder do Soda Stereo (os Paralamas de lá, ou os Police de lá), quando descobriu a doença de seu pai e o Spinetta também está junto, embora desta vez as notas dolorosas do solo de “Cementerio Club” não soem:
É o que canta o Dylan nesta nova fornada de canções: há uma tradição, há um modo de transmissão de sensibilidade, de conhecimento e de sabedoria que não se pode perder. Pode ser um simples café com a família, pode ser aqueles que morreram antes de nós e que atravessam o tempo para chegar até aqui. Por isso cantamos, por isso damos nomes, por isso ouvimos vezes sem conta a mesma canção, o mesmo artista.
Por isso o Spinetta podia ir até a Casa Rosada com a sua telecaster azul e abrir seu coração e deixar a todos admirados, crianças, jovens, velhos, gente de terno, gente de vestido, gente nas cadeiras, gente no chão, gente amontoada. Inveja da Argentina, né, meu filho.
Spinetta também deixou pelo caminho algumas canções que o próprio Dylan teria orgulho de assinar, como aquela em “Kamizake”, que narra a morte violenta de Tupac Amaru pelos invasores espanhóis:
E aqui ficamos com a melhor composição feita durante a quarentena, obra de Fernanda Takai e John Ulhoa. Quem ainda pode confiar na sabedoria do mundo? Só quem acredita no futuro. Até a próxima semana!