entrevista por Bruno Lisboa
Surgido em 2009 em Salvador, o BaianaSystem construiu num curto espaço de tempo uma carreira extremamente sólida, colhendo elogios de público e crítica mundo à fora. Com três discos de estúdio na bagagem, o grupo consegue, de maneira ímpar, manter uma relação bastante próxima em termos qualidade entre o que é feito em estúdio e o que apresentado no palco. Quem já teve a oportunidade de ver / ouvir a banda solo ou em algum festival por aí sabe do que estou falando.
Seu disco de estúdio mais recente, o elogiado “O Futuro Não Demora”, foi eleito o 4º melhor disco nacional de 2019 na lista Scream & Yell e o 31º na votação dos melhores da década – “Duas Cidades”, o disco na anterior, ficou em terceiro! Lançado em 2019, em “O Futuro Não Demora” a banda segue mantendo em voga suas marcas mais latentes: o discurso político em ode das dores do mundo (em especial da América Latina) alinhado a um caldeirão multicultural de sonoridades.
Apesar da quarentena, a banda lançou recentemente dois trabalhos: “Futuro Dub”, disco de releituras dubísticas de “O Futuro Não Demora” (feito em parceria com o veterano Buguinha) e um registro ao vivo da apresentação realizada em novembro do ano passado ao lado de Gilberto Gil, em Salvador, que acabou também gerando um belo documentário – isso sem contar o não oficial “BaianaSystem Ao Vivo no Navio Pirata Furdunço 2020”, feito por um fã e disponível via mediafire.
Em entrevista concedida no início de abril, Beto Barreto, guitarrista e co-fundador do Baiana, falou com o Scream & Yell sobre a cultura dos festivais, parcerias (Manu Chao, Pitty), a verve política do grupo e o papel da rate politizada, a influência que a Bahia exerce no fazer musical do grupo, o produtor Daniel Ganjaman, a importância das apresentações ao vivo, a música em tempo de Corona Vírus e muito mais.
Antes da Covid-19, o BaianaSystem vinha figurando em diversos lineups de festivais, com públicos dos mais variados possíveis. Levar a música e a mensagem da banda para onde as portas abrirem é uma das bandeiras que vocês acham que todo artista que se preze precisa levantar?
Acho que sim. Mas não necessariamente entendo como uma bandeira, e sim como um movimento natural, de umas das etapas desse braço que, no caso do Baiana, é uma coisa que constrói muito para nossa arte. É essa relação com o público, a qual estamos sendo castrados nesse momento. As pessoas ouvem os discos de várias formas, mas essa coisa daquela música chegando ao público (no show) e de como aquilo é recebido naquele lugar, as diferenças de um lugar para o outro, os feedbacks que você tem de um lugar para o outro… Isso é o que constrói a gente como artista. Você consegue entender a diferença como a música é recebida igualmente, mas pode variar de lugar para lugar. Até mesmo fora do Brasil. Acho que isso é uma necessidade dessa construção. Como diz aquela frase: “o artista vai onde o povo está”. A gente se acostumou a ouvir isso sempre, mas às vezes você não para pensar na importância disso. No caso dos festivais, mais especificamente, eles tem permitido aos artistas circularem de maneira muito maior do que fazer o deslocamento só de um show sozinhos. Às vezes é muito difícil para um artista, do nada, tirar um show, sei lá, em BH. Porque tem toda uma coisa que envolve a logística de um evento que dificulta. No caso do festival, além dele centralizar, você tem uma curadoria, tem a interação com os artistas. Estar num festival, tocando com outras bandas, torna a experiência ainda mais real. Daí vem a necessidade de estar tocando para diferentes públicos e entender como a nossa arte circula.
…acredito que muitas das parcerias que o BaianaSystem (BNegão, Pitty, Edgar…) realizou nasceram deste trânsito…
Também. Na sua essência, o Baiana sempre teve isso, desde o início. Você vê o nosso primeiro disco, tem muitas participações, e de uma maneira abrangente. Seja na produção, ou com um instrumentista, ou algum outro grupo ou artista. Até mesmo por termos como referência o Soundsystem, a gente acaba por convidar várias pessoas para tocar, cantar em cima daquela estrutura básica, daquela célula. O Baiana vem disso e dessa experiência ao vivo. Mas, naturalmente, essa circulação faz com que tenhamos outros encontros. A gente sempre pensa muito no que a música está pedindo, seja nos discos ou nas participações que fazemos: “Ah, isso é a cara do Curumin”. E acontece. Sempre são pessoas, artistas, que a gente tem uma relação, seja circulando, produzindo ou compondo junto.
O tom político sempre marcou presença em tudo o que o BaianaSystem faz, seja em disco ou no palco. Qual a importância de se manifestar em tempos como os nossos, de polarização política, onde o discurso fascista tem ganhado corpo e palanque?
É essencial. Porque o artista é um ser político, essencialmente. Sua arte se posiciona. A gente vê isso cada vez mais, de pensar a política num sentido mais abrangente do que somente no sentido eleitoral / partidário, e sim para além desta dicotomia que você fala, indo para algo mais amplo como ser um cidadão que cada um é, pensando nas várias questões que são levantadas, os posicionamentos que são tomados no dia a dia. Chegamos ao ápice quando percebemos a situação em que estamos vivendo, numa dualidade exposta, escancarada. É nesse ponto que você vê como cada um enxerga a vida, como cada um pensa o mundo que está construindo. No nosso caso, a gente pensa muito como a nossa arte influencia nesse mundo, como ela colabora para isso. Isso é política, essencialmente. Então naturalmente as letras que surgem, o tipo de som que a gente faz, tem a ver com tudo isso que a gente estava falando dos shows e dos festivais, do que a gente tem de feedback do que falamos e ouvimos das pessoas. Tudo isso é um exercício político. Quando as coisas surgem naturalmente é como se você precisasse falar aquilo. E às vezes o falar aparece de várias formas: está na arte visual, no posicionamento que adotamos em determinado momento, o que permite com que as pessoas começrm a entender: “Ah tá o Baiana é assim” ou “A Nação Zumbi é assim”, ou qualquer outro artista. Esse lugar em que você é colocado passa por sua música e por seu posicionamento.
O disco “O Futuro Não Demora” tem alcançado ótima repercussão de público e crítica. A que você acredita que se deva tamanha recepção positiva?
Às vezes, de dentro é um pouco difícil de ter uma percepção ampla. Mas acredito que são muitos fatores. “O Futuro Não Demora” foi pensado como um álbum, como uma obra, fruto de uma pesquisa. Ele era meio que um rebote do que aconteceu com o “Duas Cidades”, que era um disco muito explosivo, urbano, que nos tornou mais conhecidos no Brasil. Então decidimos voltar para a Ilha de Itaparica (Bahia), fizemos uma pesquisa sobre a nossa ancestralidade, trabalhamos com muitos outros ritmos, que estão ali colocados de uma maneira muito orgânica, pensando como eles contribuíram para nossa formação. O disco conta uma história dividida em dois lados, o A e o B, que era uma coisa bem diferente da cultura dos singles e do imediatismo de hoje. Queríamos essa volta para um álbum que conte uma história. Junto a isso tem esse lance da circulação que falamos. A gente viajou muito com esse disco. Então ele começou a ficar vivo e começamos a ver que essa comunicação estava chegando às pessoas. E também tem o discurso político presente no disco, em músicas como “Sul-americano”, “Salve” e outras coisas que estão ali colocados como algo tradicionalmente do Baiana. Essa circulação rendeu a turnê “Sul-americano Show” onde falamos sobre a América do Sul, do entendimento como latino, da compreensão das nossas raízes. Esses pontos foram se juntando e renderam um Grammy Latino, o que foi uma surpresa pra gente, mas fez todo sentido devido a toda latinidade presente no disco. Todos esses fatores juntos fizeram com que esse disco tivesse um entendimento maior por parte do público e da crítica.
A faixa “Sul-americano”, inclusive, me remeteu a lembrança de uma matéria do El Pais que, recentemente, li sobre o Manu Chao e fiquei curioso: como se deu esta aproximação?
Foi natural. “Sul-americano” já tinha aquela cara latina. E sentimos a necessidade de ter algo falado na língua espanhola, que fizesse essa conexão. Naturalmente havia essa referência do Manu Chao, de toda aquela história ali do “Clandestino” (1998), da cena dos anos 90 que foi uma referência pra gente, associada ao beat e a levada da Bahia. A gente foi construindo a faixa, mas sempre pensando nas ligações, nessa coisa de sempre ter participação de pessoas que pudessem contribuir. Manu Chao também tem as referências de Soundsystem, essa coisa do viajante que ele amarrou bem e a gente pensou que a faixa teria tudo a ver com ele. Sem contar que tem também o lance do discurso político bem forte. Pensamos: quem sabe? Russo (Passapusso) até brincava da gente tentar chegar nele. Daí cruzamos com algumas pessoas que o conheciam e mandamos a faixa para ele ouvir. Ele ouviu, gostou pra caramba e na hora entendeu e decidiu participar. Tanto que quando ele veio, gravou o “Señor.Matanza”, que é uma coisa que ele já tinha gravado trechos até com o Mano Negra. E ele veio com o “Señor.Matanza” porque ele entendeu que a gente estava falando do sul-americano desta forma, de um discurso político, da posição da América Latina. E isto fez todo sentido pro disco quando casamos toda a questão da latinidade, da ancestralidade, de guerra política que tem rolado.
A Bahia tem mantido a máxima de ser celeiro de algumas das melhores produções artísticas de ontem e de hoje. Qual a influência que o estado exerce no seu fazer artístico?
É uma relação totalmente direta. Muitas vezes acham que a gente está morando em São Paulo ou no Rio, por um movimento natural que vem acontecendo com muitos artistas baianos, desde sempre. Inclusive com uma galera contemporânea nossa. Mas talvez se a gente estive morando em São Paulo, o nosso som não estivesse como está. A gente não iria conseguir fazer o “Duas Cidades” ou “O Futuro Não Demora”, em São Paulo – “O Futuro Não Demora” foi feito na Ilha de Itaparica, olhando para Salvador. A gente esteve lá algumas vezes e fomos entender a importância da Ilha pro Brasil, conversamos com amigos que escrevem e pesquisam sobre isso. O que a gente sente de Salvador é que é ela pulsante nesse sentido. “O Futuro Não Demora” é um disco percussivo que aparece ainda mais nesse disco. Ganja (Daniel Ganjaman), que é o produtor dos dois discos, conseguiu traduzir isso. Ele já falou pra gente algumas vezes sobre como o nosso som já chega pronto, com uma cara, um sabor e ele consegue traduzir algo que é tão orgânico de uma maneira que a gente nem percebe. No caso de “O Futuro Não Demora”, as coisas foram muito mais prontas do que no do “Duas Cidades”, devido a essa pré-produção que foi feita toda aqui. Então tem uma linguagem embrionária dos beats que a gente faz de forma conjunta do baixo, da percussão e com o eletrônico que se fosse feito em outro lugar não sairia desse jeito. Porque a cidade faz isso com a gente. Isso é uma coisa natural de todos. Por isso, nós não temos nenhuma vontade de sair daqui. Sem contar que o fato da gente estar circulando tanto, passar por tantos lugares e voltar para Salvador, isso dá um sentido muito forte para a nossa música. Temos ido muito para Minas, São Paulo, Rio e vamos no meio do ano para fora, fazer os festivais, mas quando a gente fala de Salvador isso faz mais sentido para gente. É determinante estar aqui, está na nossa música.
Falando em Daniel Ganjaman, ele tem se firmado como produtor vitalício da banda. Quais as contribuições ele trouxe para o som de vocês?
A gente já conhecia o trabalho dele, sabia suas referências e tudo o que ele tinha feito. Sabia da relação dele com o reggae, com o eletrônico, com o beat, com a programação. Conhecíamos o trabalho dele com o Otto, Instituto, Criolo… E ele conseguiu entender como o Baiana é: uma colagem de coisas e as coisas vão se ressignificando, e uma música vai virando outra, sabe? É uma “Terapia” que vira “Playsom”. Uma “Barra Avenida 1” que vira “Barra Avenida 2” porque a gente começa a tocar e no ao vivo a gente vai tocando coisas em cima. Dai vem o beat, daqui a pouco tem uma frase de guitarra ou outra que coisa que conduz para outra coisa… Muitas vezes a gente tinha 3, 4. 5 coisas dentro da mesma coisa (risos). E o Ganja conseguiu perceber isso, arrumar, colocar o som numa linguagem que as pessoas conseguissem entender, organizando o nosso caos criativo. Ao mesmo tempo, ele tem uma leitura muito boa dos elementos do Baiana. Ele já nos conhece muito de perto. Durante o processo do “Duas Cidades”, a gente ficou com ele um mês num sítio em São Paulo, convivendo, tocando. A gente já tinha o rascunho do disco todo pronto, mas estava tudo muito amarrado ás pré-produções. Ele viu como a gente compunha, como a guitarra influencia na voz do Russo, como aquilo iria ser transposto para a ideia de beat. “O Futuro Não Demora” foi bem mais fácil porque chegamos com a coisa bem mais pronta. Isso tudo sem contar o refinamento do Ganja para sons, timbres, para colocar no primeiro plano o que é importante. Na sequencia fizemos o single “Miçanga”, que ainda tem um pouco da áurea do “O Futuro Não Demora” e ele produziu, pois já nos entende de cara. E, além disso, temos uma aproximação política, de entendimento de mundo, que é muito importante para nos entendermos. Seria muito difícil ter um produtor que não tivesse um pensamento próximo ao nosso. Ele sabe do que a gente está falando de política, de ancestralidade, das emoções que falamos através das palavras. Essa aproximação de pensamento político / estético faz com que a gente tenha uma forte ligação com o Ganja.
Recentemente assisti a uma apresentação de vocês no festival Sensacional (em BH) e é impressionante como vocês conseguem casar o som a uma estética visual. O público, por sua vez, responde de maneira visceral durante todo o show. De fato é no palco que a banda se sente mais a vontade?
A gente se sente muito a vontade no palco. É como no pensamento do lance do Soundsystem, onde você propõe uma base e a partir dali você vai tocando, criando e o público vai reagindo. É uma festa poder tocar ao ar livre, no carnaval, no Pelourinho aberto, de fazer festivais. Isso vai nos alimentando. A gente vai amadurecendo e descobrindo como tocar. O Baiana ainda está se descobrindo como uma banda de estúdio, no sentido do que a gente tem conseguido produzir / comunicar. Como nos lance dos singles que lançamos recentemente (“Corrida Elétrica”, “Cabeça de Papel” e “Miçanga”). Foram coisas que construímos no estúdio e já sairam prontas para o ao vivo, que era algo que antes não acontecia tanto, pois a gente ia experimentando e fazia o inverso. Ainda assim, no palco sentimos que conseguimos nos comunicar de maneira muito mais ampla e sensorial. O visual colabora muito desde o início. Filipe Cartaxo, que é quem faz tudo do Baiana, é um membro da banda. Ele está desde a origem. Cada coisa que a banda faz passa pela direção de arte dele, do entendimento de como aquilo se comunica. Não adianta Russo fazer uma letra foda e eu fazer uma guitarra que as pessoas gostem e se identifiquem. Quando você coloca no palco e junta com a mensagem que ele está ajudando a contar, que foi construída a partir de como ele entendeu, isso soma demais nessa experiência ao vivo. Agora a gente está sentido falta disso. Tão cedo a gente vai fazer show. Fomos cortados ali do carnaval, após o ápice da explosão. E aí como a gente vai lidar com essas sensações que a gente gosta de propor?
Falando nisso, a banda tradicionalmente se apresenta no carnaval de Salvador. Qual o significado que estas apresentações de rua, em casa, com milhares de pessoas têm para vocês?
É incrível. Muito! A gente fez depois no Carnaval de rua de São Paulo. Foi o terceiro ano que tocamos lá. Tem diferenças, lógico, de como funciona o Carnaval de Salvador. Mas a gente vê o crescimento absurdo de cidades como BH. E quase tocamos aí esse ano! Fizemos no Rio, que já tem essa relação estabelecida com o carnaval, que era algo restrito ao sambódromo, mas nos últimos anos o carnaval de rua cresceu demais. Tocamos em Fortaleza esse ano no meio do carnaval. A gente sente: quando é na rua, pra muita gente, nós lidamos com tudo isso de maneira muito real. É uma experiência social que está acontecendo ali. Porque, ás vezes, você não tem o recorte de quando é um show, do público que pode comprar o ingresso, ou que vai para aquele específico festival. Na rua você coloca todo mundo. Isso dá uma força muito grande para essa experiência. É maior do que um show.
De maneira pontual, o Baiana levantou a bandeira para a liberdade de Lula, participando inclusive do Festival Lula Livre. Para você, qual o principal impacto que a liberdade do ex-presidente tem na sociedade?
Eu acho que o Lula Livre, e muitos outros símbolos que estamos tendo nos últimos tempos, vêm do lance da política estar muito mais forte. Ela tem sido abordada sob vários aspectos e com posicionamentos muito fortes, gerando o que está acontecendo hoje com a presença deste pensamento retrógado, fascista, agressivo, com intenção de atacar o outro. E isso acontece a nível mundial. Aqui vem acontecendo desde a época do impeachment (da ex-presidente Dilma), onde a gente também se posicionou. Isso acabou por gerar uma história no carnaval da Bahia em fizemos o “Fora Temer” na frente da TV. Viralizou e as pessoas começaram a entender (qual é a do Baiana). Mas depois acabou por ser banalizado…
… na época me lembro bem desta banalização onde muitos artistas e o público se posicionaram desta maneira, mas pouco agiram para mudar o cenário…
Exatamente! Quando falamos isso artisticamente sabemos que vai ter uma repercussão, as pessoas postam, muitos políticos repostam, porque foi no meio do Carnaval. Só que começaram a nos associar com a banda do Fora Temer (risos). Hoje, se você fala mal do Bolsonaro, você é tido com petista. É restritivo. No caso do Lula não tinha nada a ver com defender o PT. Era uma coisa sobre defender uma liberdade que tinha sido tolhida de uma forma escrota. A gente entendia que tinha muita coisa em jogo. Que era uma eleição que estava em jogo e que acabou por colocar o Bolsonaro. O fato de Lula estar preso tinha um objetivo claro, independente de qualquer coisa que se discuta, do que fez com que as pessoas tivessem aversão ao PT e fizessem com todos ficassem no limite do é isso ou aquilo. A situação do Lula tinha a ver com algo muito mais universal. Tinha a ver com esses ataques que sofremos de maneira muito maior, com o fato dos caras prenderem uma pessoa para colocar alguém que, sabíamos, eles queriam. Aquilo tinha um peso. A gente sentia isso fortemente quando conversávamos com as pessoas. Hoje estamos entre as trevas e o entendimento de que a gente precisa se olhar. A saúde de um é de todos. Ficou explicito o que era óbvio. A liberdade de um tem a ver com a liberdade de todo mundo. A educação de um tem a ver com a educação de todo mundo. E quando a gente tem que se posicionar, precisa se posicionar de fato…
…isso levanta uma questão ligada à arte. Muitos acham que ela não deve ser politizada, e ser somente entretenimento. De fato, há espaço para isso, mas não quer dizer que ela tenha que ser só isso…
Exatamente. Na verdade, todos os grandes artistas que temos como referências foram, de alguma forma, politizados. Porque o cara não pode ignorar o que está acontecendo. Aconteceu com os Beatles, que são uma referência pop. Desde quando os caras começaram a falar do que estava rolando até chegar na morte do Lennon, que foi algo político. Aconteceu também com Bob Marley. Todos os grandes movimentos passam por isso. A música é muito mais ampla do que simplesmente chegar, tocar, e fazer um show. Ela abrange algo comportamental. Os artistas que estavam nos EUA na época da Guerra Fria não tinham como não falar daquilo. É possível fazer uma música de amor no meio disso tudo? Lógico que sim. Mas não vai ser só isso. E você vai entender quem é aquela pessoa a partir disso.
Voltando a questão das parcerias, você disse anteriormente que a escolha se dá no momento da produção onde vocês definem quem poderia se encaixar aqui…
É tipo isso. Às vezes a própria música nos leva a isso. O encontro vai surgindo, não acontece do nada, não tem isso. O próprio lance com a Pitty. Ela é daqui (de Salvador). A conheço há bastante tempo, mas nunca tive uma aproximação artística com ela, mesmo a conhecendo. No caso dela foi o inverso. Ela tinha me ligado. A gente tinha feito um show juntos aqui num festival, o “Rock in Concha”. O que é louco também, o BaianaSystem num festival de rock, porque quando tocamos fora a gente toca em festivais de reggae, de música étnica. Ela assistiu ao nosso show e depois comentou comigo como ela tinha gostado de ver como a gente tinha toda uma relação com elementos regionais. E a partir daí ela comentou que estava fazendo um disco em que voltava o olhar para as coisas da Bahia, que foi o último disco dela (“Matriz”, 2019) onde trabalhou com percussão, tem a participação de Lazzo (Matumbi) e da Larissa (Luz), e começamos a compor juntos, naturalmente, e a música (“Roda”) foi se encaminhando até o resultado final.
Como você comentou, “Corrida Elétrica”, “Cabeça de Papel” e “Miçanga” foram alguns dos singles lançados recentemente. Somado a isso saiu uma versão dub para o álbum “O Futuro Não Demora”. Isso acaba por mostrar que o grupo segue ativo nos bastidores! Aliás, como se deu esse processo de criação de deste disco?
Esse álbum de dub foi lançado como uma forma de manter este lado sensorial que prezamos. Porque o dub é isso. A gente está vivendo um momento de privação de espaço, de contato. O dub parte disto. Ele tira os elementos do original e começa a brincar com isso. Você só ouve o baixo, ou só o baixo e a percussão, ou a guitarra e a voz. E isso independente de você conhecer aquilo tradicionalmente ou não. A pessoa pode até não conhecer o disco (“O Futuro Não Demora”) e ouvir só o dub, mas ela vê ali a necessidade de aguçar os sentidos. Buguinha (co-autor das releituras) faz isso há anos e tem toda uma estética, uma forma de pensar a música, que se relaciona a tudo que já falamos da questão da estar ali no estúdio brincando…
…não sei como se deu a sua relação com o dub, mas para mim, a primeira vez que ouvi falar do gênero foi com os Beastie Boys, fase “Hello Nasty”, quando eles convidaram o Lee “Scratch” Perry para participar de uma faixa…
O dub, na verdade, serviu de base para quase toda a cultura pop atual. O hip hop veio disso, o dubstep também… O dub trouxe essa possibilidade de isolar o beat, e surgiam 10 caras cantando em cima daquele negócio, rimando. O que eu acho incrível no dub é que ele faz você perceber algo que não costumava ouvir numa música, que poderia ter passado despercebido, e aí de repente duas melodias do teclado conduzem a música. Isso, de certa forma, é um pouco do que a gente está vivendo agora: de ver algo sob várias visões.
Muitas pessoas estão dizendo que esses tempos de Covid-19 tem sido de grande reflexão em várias esferas da sociedade. Como você tem visto este momento? E ainda: a classe artística, nesse sentido, tem sofrido arduamente devido a impossibilidade de realizar apresentações que, geralmente, é a principal fonte de renda para a maioria. As lives tem surgido com uma alternativa para os artistas manterem contato com o público, mas acredito que esta não seja a solução definitiva. Qual seria a alternativa para esse período?
Live, no nosso caso, é ainda mais difícil. Porque primeiro teríamos que juntar todo mundo. Tem gente que faz isso sozinho muito bem, como o Curumin, porque ele canta bem e geralmente coloca uma base no MPC, e dá certo. Isso falando de alguém perto da gente. Mas no caso do Baiana é muito difícil. A gente ainda precisa entender como nos comunicar e ao mesmo tempo vamos aprendendo tudo isso junto. Você estava falando da classe artística aqui no Brasil, mas a gente já vinha vivendo isso. Bolsonaro bateu de frente com a gente e acabou nos perseguindo. Outro dia conversava com Carlos Rennó (poeta / escritor) e ele já estava sentindo isso na pele devido aos cortes e ao lance do (antigo) Ministério da Cultura (hoje uma Secretaria). Agora (com a Covid-19) tudo isso foi levado ao ápice com o fato dos artistas não poderem mais circular. É uma situação ainda mais restritiva e está todo mundo tendo que se reinventar. As pessoas acham que o fato de estarmos em casa nos permitirá produzir pra caramba, mas não é sempre assim. É um momento de muita reflexão de como estamos e como vamos sair dessa. As próprias relações humanas serão alteradas. É um momento de muito aprendizado. Agora está todo mundo fazendo Live e acredito que daí surja coisas, formatos, maneiras de produzir e divulgar, que serão exercitadas.
Socialmente você acha que sairemos dessa situação da mesma forma ou iremos para outro caminho?
Não tem como ser da mesma forma. De uma maneira geral eu espero e acredito, como otimista que sou, que não é possível que as pessoas não aprendam com tudo isso. Não dá para ser mais como era. Não estou fazendo juízo de valor, se vai ser melhor ou pior, pois ninguém sabe dizer. Mas acho que já será diferente. Pensando da geração dos meus pais até hoje, acho que ninguém imaginou que viveríamos uma situação como essa. É um corte muito drástico. Acredito na evolução da humanidade, que vai desde o planeta estar respirando mais, devido à ausência do homem estar fazendo com que coisas aconteçam de outra maneira. As relações sociais mudaram e estamos buscando entender a economia, compreender esta reinvenção do que pode ser presencial ou não e as relações do mundo do trabalho. É um novo caminho. Todos vão voltar tentando entender e a gente, como artista, vai buscar entender como as coisas irão acontecer.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.