entrevista por Renan Guerra
Quando em algum momento do futuro alguém for pesquisar a música que se fazia no Brasil dos anos 2010, o nome de Larissa Conforto irá se repetir muitas vezes e surpreender quem se aprofunde nisso. E não é pra menos: durante seis anos, Larissa foi baterista da banda Ventre e tocou com gente como Paulinho Moska, Numa Gama e Ricardo Richaid, sem falar sua participação nos créditos de inúmeros discos – incluso aí o recente “Cosmos”, de Cícero, por exemplo. Ela também atuou como produtora artística em álbuns de Gilberto Gil, Chico Buarque, Alceu Valença e Karol Conká. Há ainda outros projetos, sua atividade enquanto ativista e muito mais coisas.
Porém, Larissa agora também é ÀIYÉ, seu projeto solo, em que explora sua ancestralidade através de canções que perpassam gêneros, em um som pop e um bocado misterioso. “Gratitrevas” (2020, Balaclava Records) é seu primeiro lançamento, um EP que, segundo ela, reúne “espiritualidade, rituais, ritmos de resistência, saudades da avó, David Lynch e confissões em um universo solitário”. Parece confuso, mas faz completo sentido para quem ouve e se deixa levar pelas trevas curativas de ÀIYÉ.
Produzido com esmero entre o Brasil e a Europa durante vários meses num processo extremamente independente, “Gratitrevas” chegou aos ouvidos do público em tempos obscuros, enquanto todos seguem trancadinhos em suas casas, em quarentena. É nesse ritmo que conversamos virtualmente com Larissa para entender sua experiência enquanto ÀIYÉ, que ela explica: “A grosso modo, ÀIYÉ significa terra em Yorubá”. Mas tem mais! Confira o papo na íntegra abaixo:
Existe um momento chave em que você sentiu que era a hora de investir em uma carreira solo?
Hoje eu tenho certeza que foi o início do retorno de Saturno (HAHA). Mas claramente teve a ver com o hiato da Ventre, e o fato de eu estar há muitos anos colaborando em projetos de outras pessoas, acumulando idéias e coisas pra dizer. Deu vontade de experimentar, sabe. Gosto de aprender coisas novas, e precisava mesmo botar pra fora a minha pesquisa e outros interesses que ficaram na gaveta por tanto tempo. Eu nunca vou parar de tocar e colaborar com artistas, pelo contrário, espero que essa carreira solo me possibilite colaborar ainda mais, de formas novas.
Você pode explicar o simbolismo do nome ÀIYÉ e como chegou a ele?
A grosso modo, ÀIYÉ significa terra em Yorubá. É o mundo físico, oposto complementar de Orun – o mundo espiritual. É a terra não só como planeta ou elemento, mas como o lugar que abriga a vida, em tão diversas formas. É a materialidade dentro da espiritualidade, o reflexo daquilo que não se vê, a consciência em forma física. É nessa terra que encarnamos pra evoluir, todos os seres vives, enquanto indivíduos que compõem a multiplicidade. O uno no múltiplo e o múltiplo que se reflete em uma unidade, parte do todo, que também são milhares, milhões, trilhares. E tem dor, e tem gozo. Tem medo, raiva, sangue. Sombra e luz, dia e noite. Tudo é vida, afinal. Inclusive a morte. Parece contraditório, sem sentido… O ar que me é vital também oxida meus órgãos, me matando mais rápido. Mas nada é por acaso, e tudo é mutável, inclusive o acaso. O balanço do sim e do não, do sempre e do agora, do fim que revela o começo, da doença que apresenta a cura. Eterna inconstante cíclica, sempre se renovando, sempre se curando, sempre se revelando. Posso ficar dias destrinchando todos os conceitos que abrangem esse nome. Demorei muito pra escolher, e contei com a ajuda de muitos seres pra isso. <3
Você trabalha muito, tanto com outros artistas, como produtora, como ativista, nisso tudo, como você concilia esses múltiplos projetos?
Acho que essa é a essência da pessoa que vive de arte… A gente precisa estar sempre exercendo múltiplas funções, não só pra conseguir pagar as contas, mas também pra não enlouquecer, rs. É claro que isso também mantém a mente e o corpo criativos. Tento dividir meu tempo em: semear projetos novos, regar aqueles que precisam de cuidado diário, e colher os frutos dos que reguei no passado. Tem coisas que simplesmente duram uma vida, né? Eu to sempre pesquisando, lendo, estudando. Me sinto uma aprendiz e acredito que minha criação vem desse fluxo!
O “Gratitrevas” foi gravado entre o Brasil e Portugal em um processo cuidadoso e que envolveu diversas pessoas. Como foi para você essa construção entre mares?
Não foi nada planejado! Eu comecei a compor e produzir as músicas no início do ano… Em março o Poloni chegou pra produzirmos algumas bases, e então pintou uma turnê em Lisboa pra 1º de abril. Voltei no fim do mês pra outra turnê no Brasil; e durante essa turnê eu vendi todas as coisas que tinha e entreguei a casa de São Paulo para, em meados de maio, embarcar oficialmente pra Lisboa, de mala e cuia. Mudei de casa três vezes lá, e no meio disso passei um mês em Paris visitando minha irmã grávida de 9 meses. Pra onde eu ia, levava o computador, o phone e minha plaquinha. Com o tempo fui me adaptando às salas das casas por onde passei, ao barulho externo, horários, e tal. Era sempre nos intervalos da madrugada, no trem, no avião. A gravação de bateria foi uma sorte, por exemplo. O Cícero (Rosa Lins) tava morando no mesmo bairro que eu, enquanto produzia o seu último disco, no estúdio do Marcelo Camelo. Ele tinha umas músicas novas e me chamou pra gravar umas baterias nelas. Eu topei e pedi em troca que me desse meia hora de estúdio no final do dia pra gravar umas tracks pro meu disco. Foi perfeito! Eu nem levei as sessões… Gravei direto no click sem base nenhuma… Deu tudo certo graças ao amigo Bruno Schulz – o anjo que me salvou em todos os perrengues, técnicos e emocionais em vários momentos do processo. E por aí fomos… Chegando no Brasil contei com as anjas Daniela Pastore e Rafa Prestes, também na engenharia de som, e com as deusas do Quarteto cAis + Aline Gonçalves, pra gravar cordas e um piano Rhodes, lá no estúdio Carolina em Santa Teresa, também de amigos queridos. A gente vai achando maneiras de criar, e contando sempre com a ajuda des amigues! Nada se faz sozinha, e se tem amor e respeito, dá pra fazer!
Para além do processo de trabalho em si, é interessante pensar nos simbolismos desse trabalho. Por isso, é interessante entender como você chegou ao conceito de “Gratitrevas” e como isso parece fazer ainda mais sentido em tempos tenebrosos como esse, não acha?
Pois é… vivemos tempos tenebrosos e não é de hoje. A ascensão do fascismo no mundo, o golpe, a eleição de um fascista delirante e todas as catástrofes [sociais, ecológicas, políticas] que sucederam esse dia infeliz, fatalmente compuseram o cenário (de trevas) que existe em torno do disco – e de nós, não à toa. Mas é claro que esse título carrega uma provocação, também. Eu gosto de deixar livre pra cada um interpretar, mas posso dizer que foi o mais perto que consegui chegar de, do meu jeitinho, resumir o sentimento que me permeou durante todo o processo: Gratitrevas é um jeito de dizer “AMOR FATI” – só que não, por exemplo, rs. Pode significar o contrário de “Gratiluz” – termo que passei a adotar por acreditar no poder que carregam as palavras – e ao mesmo tempo carrega uma mensagem de esperança. No fundo esse título ecoa em mim como um ode ao equilíbrio que provém do caos. Uma vontade grande de enxergar luz nesse contexto sombrio, com o entendimento da potência da luta e o tamanho da batalha. (Ufa, fez sentido?)
Você vive entre Brasil e Portugal, não é? Como está para você nesse momento de quarentena, o que tem feito?
Minha casa oficial é em Lisboa, ou pelo menos é lá onde estão minhas coisas, mas nesse momento eu estou em São Paulo. Vim pra cá pra algumas gravações e shows de lançamento, daqui embarcaria pro Japão, e então de volta a Portugal… Mas tudo acabou cancelado, e desde então tô isolada no apê de amigos em Santa Cecília. Somos 5 pessoas, artistas de áreas variadas, e tem sido bem interessante… Eu estou tentando me manter mais presente nas rotinas diárias, evitando entrar no alto fluxo das redes sociais… Passei a escrever mais em papel, acompanhar as lunações e preencher mandalas, estudar uma vertente nova de Tarot. Mantenho reuniões semanais com os grupos de ativismo, tô fazendo um curso de astrologia, editando dois clipes, e arranhando músicas novas baseadas nas limitações de equipamento e espaço que eu tenho agora. Fim de semana tem karaokê e comidas temáticas, e todo dia às 20h tem panelaço anti-fascista! Hahaha
Vimos o seu show solo no Balaclava Fest e você se apresenta realmente solo, como é para você esse momento de subir ao palco sozinha, apenas com suas programações?
Pois é… eu desde o início pensei o projeto pra ser portátil, caber em uma mochila e não depender de ninguém. Dessa forma eu consigo circular bastante e seguir desenvolvendo idéias e habilidades que não exploro como instrumentista contratada. A parte mais legal é poder improvisar livremente durante o show, e ensaiar em qualquer lugar! – Isso pra uma baterista é OURO – mas sem dúvidas subir ao palco sozinha, cantando e montando loops com samples é um desafio enorme. Eu ainda me sinto verde, mas estou me propondo a me desenvolver na estrada, e tem sido muito massa. No mundo ideal o show teria muitos recursos visuais, mais performance corporal… e com certeza teria uma banda. Mas essa é uma realidade a ser construída. Por enquanto me sinto muito feliz em poder experimentar coisas não inéditas, e me reinventar enquanto artista. Pé no chão, cabeça no céu. Esse show do Balaclava foi o primeiro que fiz sozinha em SP, depois de seis meses fora, entre muitos processos pesadíssimos. Eu chorei horrores de ver todas aquelas carinhas de pessoas que amo e admiro me olhando. Cantei “Mulher”, da Ventre, ao prantos. Foi um dia especial… e muito difícil! Haha espero que tenham gostado ?
No texto de lançamento do EP, vocês falam em “encarar o presente, por mais hostil que parece, e despertar para novas possibilidades de futuro, ancoradas em saberes ancestrais”. Nesse sentido, como você enxerga o nosso futuro enquanto planeta e enquanto sociedade?
Nesse momento eu tendo a pensar que essa é uma transição necessária, embora muito dolorosa. A doença nos ensina que a saúde é o bem maior da vida, que dinheiro nenhum compra. O orixá da doença traz com ele a capacidade de regeneração e a transformação. Não se pede saúde ao senhor da terra. A ele pedimos que leve a doença embora, e que ela nos ensine o que é preciso pra essa transformação. É sobre cura, afinal. Não só para o planeta, mas para todos os seres que habitam nele. Arde, machuca, dá raiva, dá medo… E então algo muda, pra sempre. Espero que a gente construa um paradigma completamente novo a partir disso, porque o que estávamos vivendo era crítico, inviável e insustentável. Nada é por acaso. ATOTÔ!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz. A foto que abre o texto é de Rodrigo Tinoco / Divulgação