Soundtracks da Quarentena #05: “Hell”, Waxahatchee

Soundtracks da Quarentena #05, por André Takeda
“Hell”, Waxahatchee

Um dia vamos acordar e antes de preparar o café da manhã vamos a voltar a fazer planos e eu vou dizer ei acho que podemos esquecer a casa própria e agora que podemos trabalhar como pessoas normais quem sabe não é o momento de economizar um dinheiro para comprar passagens de avião para o Alabama e alugar uma camionete Ford anos 70 e comprar chapéus e botas e vestidos e camisas jeans e conhecer cidades minúsculas e insultar quem vota no Trump e comer barbecue sobre papel pardo e eu vou comprar uma Fender Telecaster amarela e vou fingir que toco guitarra enquanto ouvimos todas aquelas canções que nunca tiveram sentido na porra da quarentena e você vai dizer que tenho razão porque algumas canções foram escritas para ouvir em uma road movie particular ou no meio do nada enquanto tomamos cerveja quente debaixo de uma árvore ou como naquela cena daquele filme que tanto gosto onde o River Phoenix dança com a Samantha Mathis na parte de trás de sua camionete que nem lembro se era Ford mas eu tenho quase certeza que dançaram Elvis Presley mas não importa porque na verdade toda canção de amor tem um pouco de Elvis Presley e eu sei que você vai dizer que não gosto de dançar mas eu também nunca pensei em estar no meio do Alabama e mesmo assim quero pegar a sua mão e meus discos e minhas playlists e a Telecaster que nem sei tocar e preencher com nossas botas o vazio entre o cinza do asfalto e o laranja do horizonte e você vai dizer que sou sempre cheio de clichês e que sou exagerado porque fiquei apenas quinze dias trancado em casa e de repente me senti iluminado por um desejo ridículo de liberdade por causa de uma única música e vou responder que fodam-se os clichês e foda-se o punk rock e foda-se o indie e foda-se o brit pop porque agora a única música que faz sentido é feita de violões e riffs limpos de guitarra e piano e com vocais arrastados no final de cada verso como se fosse um convite urgente de estar ao ar livre e de fugir dessa cidade de merda e de acreditar que somos mais que política e economia e trabalho e contra ou favor do isolamento vertical ou horizontal porque agora o que mais quero é estar na diagonal com você e sentir que ainda é possível sonhar que existe céu porque o que estamos vivendo é um inferno e se o inferno existe é porque o céu também existe mesmo que seja neste paraíso de esperança que vejo cada vez que nos beijamos antes de dormir porque amanhã vamos acordar e quem sabe não é amanhã que os planos vão se acumular na porta da geladeira como as canções do Alabama que se acumulam nas minhas playlists e é por isso que digo boa noite, meu amor, boa noite.

Você encontra “Hell” da banda Waxahatchee no álbum “St. Cloud”.

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André Takeda (siga @andretakeda) é autor dos livros “O Clube dos Corações Solitários” (2001), “Cassino Hotel” (2004) e “A Menina do Castelinho de Jóias” (2011). É colaborador de primeira hora do Scream & Yell (leia a série “Um Adolescente nos anos 80” na primeira versão do site) e já liberou para download no site a coletânea de textos “Ao Vivo” em PDF. Baixe aqui. Favorite a playlist “Soundtracks da Quarentena” no Spotify!

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