entrevista por Bruno Lisboa
Provavelmente, o nome de Romário Menezes de Oliveira Jr. não lhe seja tão familiar, caro leitor. Mas Pupillo, como é popularmente conhecido, já é outra coisa. Naturalmente associado à Nação Zumbi, grupo musical recifense que faz história na música popular brasileira ao unir diversos elementos culturais, Pupillo desenvolveu uma carreira paralela ao grupo que ganha cada vez mais notoriedade.
Versátil e inquieto, o músico também já fez parte de diversos projetos como o 3 na Massa, o Sonantes e o Los Sebozos Postizos, que surgiram como extensão dos trabalhados da Nação Zumbi. Mas após 23 anos dedicados ao grupo (Pupillo assumiu a bateria em 1995 gravando na sequencia o segundo disco com Chico Science, “Afrociberdelia”, de 1996) e a função de baterista / percussionista, Pupillo optou por apostar suas fichas na produção musical, função esta que, aliás, desenvolve desde o início o final da década de 90.
Sheik Tosado, Mombojó, Otto, Paulo Miklos, Erasmo Carlos e Gal Costa são alguns exemplos de artistas com quem Pupillo trabalhou sejam em estúdio ou na produção de shows. Seu trabalho mais recente é o projeto Orquestra Frevo do Mundo, que acaba de lançar seu primeiro disco. No álbum, Pupillo conta com a participação de artistas da nova e da velha guarda (Céu, Duda Beat, Arnaldo Antunes, Otto, Caetano Veloso, Siba, Tulipa Ruiz, Almério e Henrique Albino) que repaginam clássicos do frevo ou criam versões para músicas que, inicialmente, não tinham em seus arranjos elementos do gênero.
A banda que toca no disco conta com nomes como Guri Assis Brasil, Mauricio Fleury (Bixiga 70), Carlos Trilha, Roberto Barreto (BaianaSystem), Meno Del Picchia e Pedro Baby, dentre outros. Por telefone, Pupillo conversou com o Scream & Yell e falou sobre a sua relação com o frevo e como a história do gênero é intrínseca a cidade de Pernambuco; a função do produtor e o seu modo operante; como a música tornou-se parte essencial de sua trajetória; o exercício da paternidade; o momento político brasileiro atual; Duda Beat; Caetano Veloso, planos futuros e o Carnaval de BH.
Dias atrás estava pesquisando a história do frevo e me deparei com o canal do Youtube “Mexe com Tudo” que, entre outras coisas, fala sobre a cultura de Pernambuco. E nesta toada acabei por descobrir que o gênero traz em si uma trajetória político / social riquíssima. Como nasceu a sua relação com o frevo?
Esta história política está dentro do imaginário de todo pernambucano. É um gênero criado lá, então a gente (foliões e filhos de foliões) abraçou o gênero por todo o Estado (e não só na parte litorânea). Para além da questão política há também uma questão religiosa. É algo que faz parte do folclore pernambucano no sentido que o frevo faz parte de uma época em que você se joga nos prazeres da carne, como na época do carnaval, onde você peca à vontade pra a partir daí entrar na quarentena (da Quaresma) e chegar até a Páscoa. Isto foi colocado socialmente para as pessoas, algo como um bálsamo, algo como se as pessoas pudessem pecar à vontade para quando chegasse na época da quarentena ela se arrependesse dos seus pecados e cuidasse do lado religioso. Tudo isso era parte da festa profana. Que às vezes para mim soa como se fosse um ópio para o povo esquecer seus problemas sociais que sempre existiram na nossa região.
Como estilo musical, o frevo me fez pensar, a partir da minha história com a Nação Zumbi, na questão de mexer com a cultura popular. E também de enxergar o compromisso de propor que o frevo também faça parte do calendário da nossa cultura como um estilo de música pop. Assim como o samba conquistou isso. O samba saiu de um lugar de folclore para um lugar de representatividade maior, como parte do nosso calendário o ano inteiro. Qualquer região do Brasil você tem artistas que compõem samba, que tocam e tem o samba com parte da rotina. Eu como pernambucano sempre achei que o frevo também poderia ser ouvido o ano inteiro. Desde que sofresse algum tipo de atualização, que pudesse dialogar com elementos da música pop. Então esse disco mesmo que tenha saído numa semana pré-carnavalesca, aproveitando o período de carnaval para divulgação, é um disco que se propõe que você o ouça durante o ano inteiro. Por isso a escolha por artistas que não sejam parte desta cultura para poder emprestar as versatilidades para o estilo também.
Em 2018 você anunciou sua saída da Nação Zumbi para se dedicar exclusivamente ao exercício de produtor, função que você já realizava há bastante tempo. Como se deu esta transição? E ainda: quais os maiores desafios ligados ao fato de você estar por trás da mesa de gravação?
Sendo bem sincero, a saída da Nação não tem uma ligação exata com o fato de eu querer me dedicar a produção. Eu já me interessava por isso deste o “Afrociberdelia” (1996), onde a gente tinha uma turma ali com pouca experiência de estúdio, inclusive eu e até mesmo o produtor do disco (o Bid). Então isto fez com que a gente fosse fuçando as coisas do estúdio, cuidando de cada parte da feitura do disco. Na verdade, (a saída aconteceu porque) eu estava querendo cuidar de outras coisas, outras questões musicais que não fosse só a do produtor. Como músico também era uma necessidade, sabe. Então essa parte do produtor ela vem atrelada ao músico. É algo que eu presto atenção, desde sempre, desde quando comecei a entrar em estúdio eu procuro prestar atenção no todo. Seja nas músicas, nas letras, na voz que precisa ser clara e ouvida. Isto faz parte de um processo natural do trabalho coletivo. Então o processo de um produtor parte deste princípio de ser um ouvinte assíduo do que o artista pretende ou esta tentando buscar com a sua arte. A interferência do produtor deve ser única e exclusivamente na tentativa de traduzir isso. Fazer com que isso tenha a cara do artista. E que se descubra muitas vezes coisas que são relacionadas aos desejos artísticos que ele ainda não tinha percebido. É onde entra a contribuição do produtor: chegar com elementos que tenham ver com essa necessidade artística, resultando na satisfação de ouvir o disco do artista e ele ter a cara dele e não do produtor. Num exercício de cuidado e respeito com que o artista quer desenvolver e você buscar saídas e sugestões que acrescentem ao resultado final.
Sim, você tinha dito tempos atrás que a sua função enquanto produtor não era inserir parte da sua cara no registro, mas permitir que o artista trabalhe ou encontre a sua própria roupagem, prática esta que não é tão comum. Por que você escolheu este caminho?
Acho que isso passa pelo respeito à arte. Não me tornei produtor para impor a algum artista exatamente o que penso. É justamente uma forma de eu aprender mais, de eu trazer muito mais referências para mim como artista e como músico que sou, descobrir estas nuances de cada artista dentro de um processo. Gosto de fazer pré-produção dos discos, fazer demos antes de entrar e gravar a ideia final. Isso parte de um processo de aprendizagem que resolvi desenvolver, que é a cada trabalho tentar entender o que o artista está buscando e não impor minha visão sobre o que eu penso. Obviamente, a partir daquilo ali você tenta traduzir e, querendo ou não, você coloca um pouco da sua visão disso. Mas para mim o ponto principal é não interferir a ponto de desviar a rota completamente de onde se quer buscar.
Isto eu estou falando de maneira geral. Obviamente tem situações em que artistas ainda não sabem qual caminho tomar. Isto depende muito do projeto em que você está envolvido. Já aconteceu de eu iniciar um projeto onde o artista não sabia nada do que ele queria e isto virou uma parceria onde eu propus caminhos que deram um norte para o artista. Mas normalmente quando você trabalha com um artista que sabe que tipo de resultado ele quer, mas não sabe como chegar lá, é ai que entra o produtor. É ele quem vai intermediar estes caminhos e possibilidades. Querendo ou não tenho um estilo meu de fazer, com preferências em relação a timbres, tipos de arranjos e arregimentações. Mas a partir do momento que você está trabalhando com um artista que também sugere e faz com que a gente se lance num desafio de ir atrás de situações inéditas, que sejam especialmente desenvolvidas para o artista, isto para mim dá um sentido pro trabalho do produtor.
Seus trabalhos como produtor primam pela versatilidade, e isso chama atenção. Qual o critério que você usa quando decide trabalhar com algum artista?
Há a questão de eu ter o mínimo de capacidade de enxergar se vou conseguir ou não ajudar a desenvolver (o trabalho do artista). Não é apenas uma prestação de serviço. Passa pela questão da autoanálise, de se eu tenho condições de ajudar o artista. Obviamente, pode acontecer situações onde algum artista entre em contato e eu sinta que não vou conseguir ajudar porquê o trabalho não tem a ver com o que penso em relação à música. Independente do estilo. Isso para mim é fundamental. Venho de um lugar que tem essa diversidade. Fui criado, como a maioria dos meus amigos, ouvindo todo tipo de som. O Nordeste sempre consumiu todo tipo de som. Seja com o grupo dos amigos que pensaram a cena de Recife nos anos 90, seja andando pelo centro da cidade e estar tocando forró, música brega ou as guitarradas de Belém. Você é criado naturalmente ouvindo e com o tempo você vai criando o seu gosto musical.
Tive a sorte de andar com uma turma que já tinha essa cabeça aberta. Que mandava cartas pra fanzines daqui de São Paulo e daí demorava um mês para receber alguma coisa ou alguém que veio aqui para São Paulo que chegava com alguma fita cassete com sons alternativos, de cenas que a gente admirava à distância, mas tinha pouco acesso. Isso tira da gente o preconceito natural de quando você é mais novo e você precisa se afirmar e se posicionar dentro de um único estilo. Nesse ponto tive muita sorte, no sentido de andar com pessoas e conviver num ambiente onde se ouvia de tudo. Inclusive o frevo dentro da casa dos meus avós na época do carnaval onde meus tios faziam festas no interior. Eu estava sempre participando das festividades. E isto dá uma visão mais ampla quando você tenta criar um entendimento sobre algum trabalho.
Acredito que a sua relação com a música tenha se dado de maneira precoce. Em que momento você percebeu que a relação com este universo não seria mero entretenimento?
É como uma experiência de vida. A partir do momento em que você está numa cidade como Recife, que é enorme, mas que não tem acesso às coisas, que é uma cidade nada generosa com a juventude. A crise política no Brasil, naquela época, quando chegava o déficit (como é até hoje), nós sofríamos muito mais. A gente sofre estes sintomas das crises pelas quais o Brasil costuma passar. Então a gente sentia uma oscilação absurda de situação financeira, de estrutura para você ter uma formação acadêmica. Então quando entrei na adolescência, mesmo convivendo num ambiente muito musical, tinha todas aquelas incertezas e pressão da família de, o quanto antes, buscar um caminho profissional. Então encontro a música, conheço pessoas que já estavam começando a montar bandas e a tocar. Aquilo ali me bateu de forma instantânea: sentar num instrumento e poder já tocar alguma coisa. Aquilo foi um encontro que realmente me encaminhou na vida nesse sentido porque eu nunca trabalhei com outra coisa. Sempre trabalhei com música e desde muito cedo. Aos poucos fui entrando no mercado de trabalho, toquei na noite algum tempo e viajei o estado de Pernambuco inteiro. Isto me deu uma experiência incrível por ser muito novo e poder tocar com pessoas experientes para fazer turnê de São João, por exemplo, ou fazer shows no carnaval. Já toquei algumas vezes no Galo da Madrugada (tradicional bloco carnavalesco de Recife, considerado o maior do mundo). Isto lhe dá uma experiência incrível. E foi a partir daí que vi que tinha achado o meu caminho. O que é raro às vezes. Você como jovem demora a escolher, eu tenho filhos e a gente percebe o quão difícil é na juventude tomar uma decisão, se encaminhar. Ainda mais como numa cidade como Recife naquela época. Então a música realmente me convocou pra isso.
E que bom que você continua!
Pois é. Às vezes são coisas passageiras que você usa como uma muleta para se livrar de outras questões. Mas, no final, serviu para me fazer ser quem eu sou hoje na questão da experiência de uma maneira geral.
Recentemente você foi pai novamente e acredito que esta fase deva ter sido transformadora. Como tem sido esta experiência? De algo alguma forma a presença do Antonino no seu cotidiano alterou o seu fazer musical e a sua visão de mundo?
A paternidade é um exercício. Como ser humano, você se debruça sobre outra existência e você percebe que não é só mais só você. Acho que dei sorte de ter sido pai muito cedo. Tenho uma filha de 24 anos e isso me equilibrou um pouco. Quando você é muito novo você se arrisca muito, se joga de cabeça na vida e a paternidade me centrou um pouco mais. Me fez traçar objetivos que talvez se ela não tivesse chegado naquele época eu não tivesse conseguido me organizar tão bem. Até as escolhas de ficar mais longe, abrir mão de estar com ela para poder entrar em turnê. Era época da gravação do “Afrociberdelia”, então você percebe que você vira automaticamente um modelo de pessoa para outra pessoa, que vai sofrer sua influência, ser parte do que você é. Parte do caráter que vai se formar nestas crianças vem da gente. Então isso interfere muito no entorno, no que envolve a carreira profissional, a sua conduta como pessoa. A sua forma de pensar o mundo muda bastante quando você tem filhos. Por mais que eu tenha uma formação naturalmente, vamos dizer, de esquerda, essa forma de pensar o mundo, de pensar a vida, se posicionar e tomar uma postura como pessoa mesmo, isto quando você é pai tem uma dimensão mais ampla, pelo menos para mim. Jogou uma responsabilidade muito maior para mim. Isto também ajuda nas tomadas de decisões. Mesmo errando ou acertando são coisas que pensam muitos mais antes de se jogar em qualquer situação.
… a gente acaba, querendo ou não, como você disse, se permitindo fazer coisas mais ousadas quando não se é pai. E com a paternidade a gente fica naquele exercício da responsabilidade de criar uma criança…
Você tem de pensar duas vezes antes de mergulhar na ousadia, que muitas vezes se confunde com inconsequência, com a incapacidade de tomar decisões mais coerentes. Depois que virei pai tentei equacionar isso. Porque existe um pensamento coletivo dentro do meu conceito de primordial de arte e também como pessoa. Na minha personalidade, sempre fui uma pessoa que gosta mais de ouvir do que de falar. Então parece que a paternidade acentuou isso ainda mais, porque preciso (tomar certos cuidados), ainda mais hoje, que as coisas ficam registradas e os erros também fazem parte disso. (Os erros também) Ajudam a gente a melhorar ao longo o tempo. Não há nada que me deixe insatisfeito com alguma época da vida, mas quando você tem a responsabilidade de criar, até nos erros você se busca como referência para que os filhos também não cometam. Ou que cometam os erros deles dentro de um conceito mais bem estruturado. A criança precisa de uma estrutura emocional. Não é só o material. A estrutura emocional que, muitas vezes, a gente não teve devido a uma precocidade, de cair pro mundo, de se vislumbrar, no meu caso, com que estava acontecendo de mudanças na área da cultura na minha cidade. Isto fez com que eu me arriscasse muito, ficando muito tempo na rua, vivendo situações que hoje em dia você fala “putz, eu não quero que meus filhos passem por isso”. É um eterno aprendizado.
Por mais que a música brasileira esteja vivendo um grande momento, é perceptível no discurso governamental a ideia de que o que está sendo feito não presta, negando a arte a sua própria existência. Como você tem visto este cenário?
A gente vive claramente uma situação nova num pensamento de ditadura. A gente não tem algo no nível do AI-5, mas caminhamos para uma situação para isso já que a América Latina é um lugar que sempre foi violado e de colonização. No caso do Brasil, sendo um país que nasceu e se “desenvolveu” a base de fraudes e falcatruas, vira e mexe a gente vai viver esse tipo de situação. E é uma pena. A primeira parte da sociedade que sofre com isso é a área da cultura. Não é só a questão cultural como ponto de referência para uma nação. Nós temos uma cultural brasileira estabelecida e isso é a nossa cara, mas é também necessário pensar a questão da formação do ser humano, de criar pessoas capazes de defenderem o seu ponto de vista, defenderem a democracia. Imagina a situação do Nordeste dentro deste contexto? Você manter uma região, sacrificar e culpa-la por uma questão geográfica, por exemplo, como o que a gente vive em relação a seca? Essa questão da cultura vai além apenas de você ter uma representatividade, como uma identidade de um país. Você tem ali núcleos de vários segmentos, que estão fazendo trabalhos importantíssimos de conscientização. Você também precisa dar o suporte intelectual ao contrário do que a classe política de hoje pensa. A cultura não é só entretenimento. Nunca foi. A cultura no Brasil sempre foi calcada em questões políticas seríssimas. Pernambuco tem um histórico muito forte ligado a isso, desde a época do descobrimento, seja na independência ou na escravidão, quando Pernambuco, por exemplo, por mais contraditório que seja, foi contra a abolição da escravidão porque o país ainda não estava pronto para receber essas pessoas. Tanto que o que aconteceu foi isso: jogaram mais um milhão e duzentos mil ex-escravos nas ruas e eles tiverem que voltar a trabalhar para os ex-senhores de escravo. O país não se preparou para encerrar este período de terror. O Brasil foi o último país a teoricamente acabar com a escravidão. Você viver dentro de uma bolha onde só se pensa numa parcela menor da sociedade é um tipo de pensamento que fere com tudo. É um país gigantesco, rico, com capacidade enorme, absurda, para se desenvolver, virar realmente uma grande potência, mas sofre com estas questões de desigualdade social. Quem vai cuidar disso? A cultura num momento como esse é fundamental. Para mim não é uma surpresa que no momento como esse a cultura seja a primeira parcela da sociedade a ser atacada, mutilada onde deveria ter um suporte. A gente vive uma situação de intolerância. As pessoas precisando criar situações para continuar sobrevivendo de arte. É lamentável. É a prova maior do equívoco que o próprio povo brasileiro cometeu ao colocar um cidadão como este na presidência. Claramente ele é uma pessoa sem capacidade ética, profissional ou moral para estar onde está. Então o que fazer agora? Eu tenho minha consciência limpa.
Voltando ao projeto Orquestra Frevo do Mundo, lá você transita entre a tradição e a modernidade, ao oscilar entre clássicos do frevo com canções mais novas, que em ambos os casos ganharam novas roupagens. Como se deu o processo de (re)criação e seleção do repertório?
Eu queria no início prestar uma homenagem à escola de metais de frevo de Pernambuco, na figura de maestro Duda, que é uma pessoa que admiro muito e que fez parte dos arranjos. Só que à medida que fui ouvindo e pesquisando, comecei a pensar no período que passei em Salvador em alguns carnavais e a lembrar de muita coisa que acontecia ali em relação ao Frevo. Então a primeira coisa que eu queria fazer era pensar num repertório que não fosse exclusivamente pernambucano, mas que pudesse contar rapidamente um pouco desta parceria histórica entre Recife e Salvador, como na política, já que são dois estados parceiros nesta questão. E devido ao fato de eu perceber que a Bahia teve um papel importante na retomada do frevo. Então eu quis contar um pouco desta história a partir deste volume 1. Além disso, quis reverenciar o papel importantíssimo que o carnaval baiano teve no inicio dos anos 70 ao convidar Nelson Ferreira, em Recife, que estava no ostracismo. Ali houve uma retomada do gênero. Quando Caetano Veloso, Moraes Moreira ouviram, aconteceu ali uma repaginada. Depois entrou a guitarra baiana mais pra frente.
Então eu queria neste disco reverenciar o frevo como um gênero que quebrou a barreira do regionalismo. Saiu da fronteira do estado do Pernambuco e foi para um lugar que tem a capacidade enorme de transformar a música e de alavanca-la. Querendo ou não, grande parte do repertório de frevo que as pessoas conhecem fora do Nordeste são os sucessos baianos eternizados por Caetano e Gal, por exemplo. Eu queria fazer um apanhado, mas não queria fazer um glossário ou um registro histórico do gênero. A gente já tem isso nas coleções de disco de Capiba, de Claudionor Germano, do próprio Nelson Ferreira. O Spok Frevo Orquestra também deu essa contribuição importante quando junta o jazz com esse gênero. O que eu quis fazer foi juntar essas duas forças. Tanto que na faixa com o Otto (“Ciranda de Maluco”) eu juntei a guitarra baiana com os arranjos de metais do maestro Duda. Se não me engano essa é a primeira música que une esses elementos. É difícil sintetizar tudo num álbum. Teria que fazer uma pesquisa ampla e, teoricamente, teria que ser um disco duplo. Porém, eu queria que fosse um álbum leve no sentido de que não fosse apenas um material de pesquisa. Existe essa função, é importante, mas eu não queria dar essa conotação a este disco por conta da minha geração e desde o primeiro disco do Chico Science e Nação Zumbi, que lida com maracatu, ciranda e o frevo, como no “Afrociberdelia”, que tem algumas músicas que fazem este diálogo. Quis tentar dar um pouco desta minha visão sobre o que eu acho do frevo. E acho que realmente é um estilo que pode ser ouvido o ano inteiro. Foi por isso que chamei artistas de outros universos para emprestarem seus talentos. Até por serem artistas que tem essa capacidade de trânsito, que tem a cabeça aberta, que claramente tem uma percepção da música muito mais ampla do que a área que eles atuam. Tem Arnaldo Antunes, o próprio Otto, tem a Duda Beat, que é uma pernambucana, mas que está ocupando um espaço incrível na cena brasileira…
Duda, de fato, é incrível. Já tive a oportunidade de vê-la por duas vezes em Belo Horizonte e ela é de fato uma artista pronta.
Pois é. Desde o início ela apontou para onde queria ir e está chegando com muita força. Foi muito bacana ter ela como representante desse momento atual. De artista que está despontando e ocupando este espaço todo. Ao mesmo tempo você tem Caetano e um monte de gente já estabelecida dentro deste contexto que também dialoga. São duas pontas né. Tem o Caetano, que é o exemplo maior desta diversidade de pensamento, de como o Tropicalismo ajudou a formar o Brasil culturalmente. E também você tem outras gerações que são parte desta linha de pensamento.
Caetano Veloso é um dos seus ídolos. Como é ter uma figura icônica da música popular brasileira de maneira tão próxima, já que recentemente ele compôs uma canção para o novo disco da Céu (com quem Pupillo está casado desde 2012) e participa da releitura de “A filha de Chiquita Bacana”?
A questão era essa: como me comportar diante de um ídolo. A relação com Caetano vem desde que me relaciono com a música através de tios universitários que apresentaram o som dele, Chico Buarque, desta turma toda. E então com o Chico Science e Nação Zumbi nos 90 as portas se abriram e a gente trouxe pra perto essas pessoas. Tudo o que foi acontecendo com a banda vem do espaço que ocupamos dentro da música brasileira como uma novidade. Isso é comum da parte de Caetano, Gal, Gil, Tom Zé e tantos outros artistas que fizeram parte do Tropicalismo ao se aproximarem das novas gerações. Criou-se um laço afetivo pessoal que existia com a obra, mas a partir do momento em que você consegue estabelecer uma relação próxima também te dá acesso a isso. E aí você acaba tendo acesso a oportunidades de fazer o que Céu fez ao pedir uma música para ele. Ela tinha acabado de dar a luz, comentou que o admirava e que naquele momento seria maravilhoso ter uma música dele. Isso é um atestado que o seu trabalho está sendo, de alguma forma, reconhecido por essas pessoas. Isto deu pra gente esta capacidade de ir atrás dessas pessoas. Isto já vem de outros projetos também ou shows que dirigi ao longo da carreira.
..acaba por ser um exercício de admiração mútua.
Para mim é difícil falar sobre o caráter mútuo, eu na posição de fã. Mas passa por isso também. Acho que o trabalho que a Nação Zumbi construiu é muito sólido. Mesmo sem o Chico. A gente conseguiu dar continuidade. Estes contatos se mantiveram e continuam. Isto se abriu a partir do momento em que comecei a trabalhar como produtor junto a Gal Costa, Erasmo, que são justamente artistas referenciais para as novas gerações. Viver parte disto é uma loucura. Poder entrar no universo dessas pessoas, tê-las como referência. É um desafio maior a partir do momento em que você começa a produzi-los e precisa evitar o lugar comum do seu próprio universo. É um processo muito enriquecedor e prazeroso.
Quando teremos o prazer de ouvir o segundo volume deste projeto? Apesar do conflito de agenda dos vários artistas envolvidos você pretende leva-lo para outras praças além de São Paulo?
Levou um tempinho para fazer esse, devido à busca de apoio, mas vou tentar para o próximo ano fazer o vol.2. Quero muito poder levar para outras cidades esse show. Eu já tinha feito esse show em BH, no início do carnaval da cidade há vários anos atrás. Levei a orquestra pra lá e fizemos esse show numa praça. Já tinha feito, nessa época, em Recife e São Paulo. Foi muito legal. Tenho visto que o carnaval de BH tem crescido bastante, gostaria de chegar junto e participar futuramente.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Fábio Fraga / Divulgação.
Irretocável essa entrevista. Tanto que compartilhei o link com diversas pessoas conhecidas. Parabéns.