Texto e fotos por Nelson Oliveira
O cânone, o popular e a novidade raramente encontram pontos de interseção na arte. Em Salvador isso é possível, ou ao menos foi no último fim de semana, nos dias 7 e 8 de fevereiro. Gilberto Gil (o cânone), Margareth Menezes (o popular), Luedji Luna e Afrocidade (as novidades) exaltaram a própria negritude, os blocos afro e as tradições percussivas da Bahia em diferentes apresentações na Concha Acústica do Teatro Castro Alves.
A abertura dos trabalhos ficou por conta de Gilberto Gil, que fez show solo na sexta-feira. O veterano da música popular brasileira levou à capital baiana o espetáculo do álbum “Ok Ok Ok”, seu primeiro disco com canções inéditas em oito anos. E o Gil que gravou em homenagem à ajuda de seus familiares e dos médicos que cuidaram de problemas de saúde que lhe acometeram nos últimos estava revigorado.
Enérgico e confortável na Concha Acústica, que fica a poucos metros de sua casa, o cantor dominava o palco como uma celebração em família. Afinal, seus filhos Nara (backing vocals), Bem (guitarra e voz) e José (bateria e percussão) fazem parte de sua banda e até mesmo o neto Dom chegou a deixar a coxia para se juntar à farra, no fim do show. Tudo em sintonia com canções como as carinhosas “Sereno” e “Kalil”, a suingada “Na Real” e a pacífica “Afogamento”, gravada com Roberta Sá.
Além de faixas-chave de seu último álbum, Gilberto Gil obviamente recorreu à vastidão de clássicos em seu repertório e cantou “Marginália II”, “Extra” e “Maracatu Atômico”. Também houve espaço para “Ilê Aiyê”, de Paulinho Camafeu, no momento mais político do show. O ex-ministro da Cultura fez um longo discurso sobre a importância de políticas afirmativas, como o sistema de cotas nas universidades públicas, levantou questionamentos sobre o lugar dos negros na sociedade brasileira e exaltou os blocos afro. Gil também homenageou o Olodum com “Nossa Gente (Avisa Lá)”.
Os tambores e refrões do Olodum também ecoaram no sábado, no projeto Concha Negra. É que o anfiteatro acolheu Margareth Menezes, cantora que popularizou “Faraó (Divindade do Egito)”, um dos maiores hinos do bloco. Maga era a anfitriã do show “Afropop”, no qual recebeu Luedji Luna e Afrocidade como convidados. As três atrações (e os músicos de Margareth e Afrocidade, que acompanhavam Luedji) se revezavam no palco, mas também se apresentavam juntas.
A aproximação de Margareth Menezes a artistas das safras mais recentes da Bahia foi uma decisão acertada para o rumo de sua carreira. Algumas das mais recentes movimentações da veterana da axé music e do samba reggae incluíram participação em “Capim Guiné”, hit do BaianaSystem, a parceria com Larissa Luz na gravação de “Capoeira Mundial” (canção do álbum “Autêntica”, de 2019) e os convites a estes nomes para apresentações no Mercado Iaô, espaço cultural que a cantora mantém no bairro da Ribeira.
O show do fim de semana foi um dos momentos mais importantes para a consolidação de uma guinada na carreira de Margareth, seja pela renovação de seu repertório, seja pela emersão de uma cantora ainda mais empoderada e consciente de sua posição de mulher negra que – ainda hoje, mesmo diante de tudo o que já produziu – precisa batalhar com os tubarões por seu espaço na indústria. Os posicionamentos políticos de Maga estão cada vez explícitos e cantar ao lado de Afrocidade, que denuncia um certo “capitão fascista”, e Luedji Luna, que pergunta “quem vai contar os corpos?”, não é mera retórica.
Chamou bastante atenção o fato de Maga ter cantado “Capim Guiné” sozinha e ainda ter emendado “Africaniei”, canção de Majur, que se destaca entre os jovens nomes da Bahia – Margareth Menezes e seu vozeirão deram bastante peso a uma composição que já tem força própria. Em seu repertório, a cantora de 57 anos manteve seus maiores sucessos, como “Dandalunda” e a já citada “Faraó”, mas também resgatou pérolas de Lazzo Matumbi, como “Alegria da Cidade” (já gravada por ela em “Elegibô”, álbum de 1990) e “Do Jeito Que Seu Nego Gosta”. Nesta última, cantou juntamente a Luedji Luna e MCDO, do Afrocidade.
A forma repaginada de Margareth Menezes se destacou no último sábado, mas é necessário frisar também como os duetos entre Afrocidade e Luedji Luna foram quase simbióticos. Já se imaginava que a parceria funcionasse na quebradeira de “Tô Te Querendo”, um dos grandes hits do verão soteropolitano, mas a versão arrocha para “Banho de Folhas” surpreendeu e fez crer que uma eventual regravação seria um sucesso. Quem sabe Margareth não aproveita o embalo e junta a turma novamente, dessa vez em estúdio?
– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE.