Texto por Marcelo Costa
Fotos por Alexandre Biciati
Ela voltou, a poeta voltou novamente… 13 anos depois de encantar Rio de Janeiro e Curitiba, Patti Smith retornou ao Brasil para encantar, dessa vez, São Paulo, e colocar um pouco de sorriso no rosto de um punhado de pessoas que sofre diariamente com um país abandonado a sua própria (falta de) sorte. “Existem coisas sérias para lutarmos, mas também precisamos nos divertir”, alertou a poeta punk em certo momento de seu show solo, no Auditório Simon Bolivar, um dia após encerrar de maneira majestosa o Popload Festival 2019. Anote.
Festivais, via de regra, são um ambiente agradabilíssimo para a cultura pop, reunindo em um mesmo local um número infindável de estilos, vícios, sorrisos, narizes e desejos. Sim, festivais também são um lugar para ver e ser visto, encontrar amigos, flertar, sonhar, beber e… cantar, mas a música, essa maluquice sonora que atravessa os tempos e movimenta toda a roda (da indústria, em um olhar macro, e da paixão eternamente adolescente, num viés pessoal), muitas vezes tende a ficar na posição secundária, diante de tanta concorrência.
Diante desse cenário inóspito da programação de um festival, a chance de ver um grande artista em território tupiniquim muitas vezes se torna uma faca de dois gumes, porque a paixão adolescente precisa lutar com a necessidade da indústria (cultural), e não são poucas as vezes que o resultado rende faíscas. De uma maneira bastante comovente, o Popload Festival vem oferecendo alternativas interessantes a seus fãs, ofertando um show extra de sua atração mais passional. Foi assim com Spoon, Cat Power, Wilco, PJ Harvey e… Patti Smith.
Um dia antes, quase no fim do feriado da Proclamação da República, Patti tocou durante 1h15 diante de 15 mil pessoas no Memorial da América Latina após Raconteurs, Hot Chip, CSS e outros. Em determinados pontos da obra (de concreto) mais questionável de Niemeyer, o som chegava baixo e apesar da presença intensa de Patti, o impacto do som da guitarra de Lenny Kaye (escudeiro de primeiro hora de Patti e “curador” da clássica coletânea Nuggets), do baixo de Tony Shanahan e da bateria de Jay Dee Daugherty soava… tímido.
No dia seguinte, com pouco mais de 1000 sortudos na plateia do Auditório Simon Bolivar, Patti surgiu novamente em modelito “Horses” enquanto a banda (e o público) era(m) agraciada(s) com um som potente, cristalino e deliciosamente barulhento por 90 minutos. Bastou Patti Smith pisar no palco para que os fãs levantassem de suas poltronas e corressem para o gargarejo, tornando esse show um tanto mais intimo… e intenso. Uma sensação de cumplicidade pairava no ambiente: “Nós apenas refletimos (a empolgação de) vocês”, segredou Patti para a audiência em certo momento.
Foi uma noite especial em que Patti não apenas cantou e declamou, mas também contou histórias. Logo no começo do show, após o primeiro número, “Dancing Barefoot”, metade da sala pedia músicas enquanto a outra metade pedia silêncio para ouvir a poeta. E ela: “Não façam silêncio não! Gritem!”, pediu. Ausente do show no festival, “Redondo Beach” arrancou sorrisos dos fãs enquanto “My Blakean Year” (do ótimo álbum “Tramplin”, de 2004) trouxe declarações de amor a William Blake, Arthur Rimbaud e a todos que fazem e acreditam na arte.
Ainda mais impactante do que no festival, a versão de “Beds are Burning”, do Midnight Oil, precedida por uma fala que questionava e lamentava as queimadas na Amazônia, foi o primeiro grande momento da noite, com o público todo de pé aplaudindo a entrega de Patti e sua banda. “Beneath the Southern Cross”, do álbum “Gone Again”, de 1996 (que – em estúdio – contou com a presença de Tom Verlaine do Television na guitarra; o ex-Velvet Underground John Cale no órgão; e Jeff Buckley nos vocais), surgiu em uma versão redentora, com um longo solo de guitarra de Lenny Kaye.
Patti, então, deixou o palco para que os “meninos” de sua banda brincassem, e eles se divertiram com um medley de Velvet Underground (“Rock’n’Roll”, “Waiting For My Man” e “White Light/White Heat”). Na sequencia, acompanhada apenas de Tony Shanahan no teclado, Patti Smith interpretou “After The Gold Rush”, de Neil Young, que, prejudicada no festival pelas conversas, pelo barulho do ambiente e pelo som baixo, encontrou aqui sua redenção em uma versão de chorar – ainda mais emendada com “Pissing in a River”…
O público insistia no pedido de canções, e alguém soprou “Frederick”, canção que abre o álbum “Wave”, de 1979, e é dedicada a Fred “Sonic” Smith, guitarrista do MC5, marido de Patti e pai de seus dois filhos, que sucumbiu a um ataque cardíaco em 1994, aos 46 anos. Patti foi consultar Tony sobre a possibilidade de tocar a canção, ausente do set, e foi desestimulada. “Tony é um adorável problema”, brincou. Ainda assim, falou sobre seu “eterno namorado”, relembrando como o conheceu, dizendo que sente a presença dele e que ele a acompanha em todos os lugares em que ela vai.
Ela então relembrou que logo após a morte do marido, num tempo em que não saia de casa em Detroit, foi convidada por Michael Stipe para assistir a um show do R.E.M. na cidade, e, no meio da multidão, se arrepiou ao ouvir todo o enorme ginásio cantando “Man On The Moon”, aproveitando a deixa para se dizer emocionada e agradecida por ver todo mundo cantando todas as suas canções no Auditório Simon Bolivar. E emendou: “Essa eu quero que vocês cantem alto. Escrevi para Fred, e penso nele toda vez que a canto, posso até vê-lo”, contou.
A canção em questão é o hino “Because The Night”, parceria de Patti Smith com Bruce Springsteen, a única canção sua a entrar no Top 20 de singles da parada norte-americana (a música bateu na 13ª posição em 1977), e voltaria as paradas em versões house, do 10.000 Maniacs e de diversas outras formas. Os 1000 presentes no auditório atenderam Patti e cantaram a música de maneira apaixonada, derramando lágrimas e cristalizando esse momento com um dos mais belos da passagem de Patti Smith por São Paulo.
Acabou, certo? Não. Toda delicadeza que marcou presença em “Because The Night” se transformou em fúria punk já na introdução de “Gloria: In Excelsis Deo”, canção que abre o mítico “Horses”, uma cover de Van Morrison (que também era presença no repertório dos Doors) que na versão de Patti surge acrescida de um improviso poético em que Patti diz que Jesus Cristo morreu pelos pecados de alguém, mas não os dela. Foram 10 minutos sônicos que fizeram muita gente sair rouca do auditório… e de alma rock and roll lavada.
Para o bis, “People Have The Power”, uma canção forte e cada vez mais necessária em tempos nefastos de levante da extrema direita em vários cantos do mundo. Em todo o refrão, Patti cravava um “acredite” entre o coro da banda e do público, pedindo ainda para que cada pessoa “usasse a sua voz”, terminando de maneira gloriosa sua segunda passagem pelo Brasil. Visivelmente emocionada e surpreendida (uma sensação de comoção que ela demonstrou em vários momentos do show no auditório), Patti Smith despediu-se tirando fotos com o público ao fundo numa daquelas noites que não será esquecida tão cedo (por ela e pelos presentes).
Porque festivais são muito legais, mas nada supera a intimidade de um show em que o artista está tão próximo de seu público que toca as mãos das pessoas no gargarejo a todo momento, autografa um vinil no meio de uma música e ainda ganha de presente um livro, entregue em mãos no meio do show, com todo cuidado. Isso sem falar na excelência do som, impecável e cristalino. Mais uma vez, o Popload inscreveu um show na categoria dos inesquecíveis em terras brasileiras. Quem sabe os próximos não serão Elvis Costello e Neil Young…
Dedos cruzados.
E obrigado Patti Smith. Foi uma pausa inesquecível “para diversão”. Agora é hora de lutar.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Que noite mágica! Um dos melhores shows da década, sem dúvida!
Que texto lindo… parabéns ao autor.