por Otávio Augusto
Este excelente “Coringa” (2019) de Todd Philips vem sendo apontado por determinada parte do público e da crítica como detentor de certa apologia da violência de jovens brancos, incells, tomados pelo ódio. O que se vê na tela, porém, é o contrário: “Coringa” retrata a crueldade de uma sociedade baseada nas leis de mercado e na austeridade econômica que causam tantos transtornos aos que mais precisam de apoio público, principalmente quando se trata da saúde mental.
Não se trata de um filme militante, antissistema, politicamente perfeito, longe disso. Mas há de se considerar que a mensagem presente – nas pouco mais de duas horas – acerta em cheio o ponto mais cruel da sociedade de hoje, que após a crise de 2008 parece querer resolver a crise do sistema capitalista com uma dose ainda maior de capitalismo e maldade.
Ao ter uma placa roubada por um bando de jovens (alguns de cor negra), Arthur Fleck (?Joaquin Phoenix) – um homem branco de meia idade que trabalha num subemprego de palhaço – acaba espancado nas ruas da fictícia Gotham City. Essa cena inicial do filme parece querer demonstrar que a mensagem é que tal fato desencadeará o ódio mortal de Fleck pela sociedade e sua consequente transformação no temido niilista coringa. Porém, o que ocorre é bem diferente desse diagnóstico raso e limitado dos problemas sociais: ao trocar de roupa com outros palhaços, Fleck rebate um colega que acusa os jovens de selvagens e afirma que “são apenas crianças”, tão afetados quanto ele por uma sociedade que nos desumaniza constantemente.
Joaquim Phoenix perdeu 24 quilos e apresenta um físico assustador. O personagem Arthur Fleck parece definhar perante nossos olhos no desenrolar da trama. Sua risada é intencionalmente inspirada em portadores da síndrome pseudobulbar, que provoca risadas fora de contexto e demonstram mais aflição do que prazer ou entusiasmo com alguma situação. Ao longo do filme, vai ficando evidente que o “Coringa” de Todd Philips rejeita qualquer ligação com os discursos racistas de Trump ou da extrema direita norte americana. O argumento construído vai, em sua maior parte, contra uma sociedade desigual, governada por brancos, ricos e demagogos. É certo que a cena final é profundamente niilista, com o agora ‘Coringa’ dançando entre os diversos seguidores caracterizados de palhaço após assassinar o apresentador de talk show Murray Franklin (Robert De Niro) ao vivo em rede nacional.
O colapso mental de Arthur Fleck é representado de forma tensa quando uma breve interação com sua vizinha (negra e mãe solteira interpretada por Zazie Beetz) o leva a uma obsessão romântica ao ponto dele invadir o apartamento no fim do corredor e provocar calafrios na plateia sobre qual desfecho menos trágico para a cena, enfim, tudo acaba bem e somos informados que todas as cenas de proximidade afetiva anteriores foram mera criação da sua mente perturbada. Ela pede que Fleck se retire do apartamento e ele, imediatamente, o faz.
Outra personagem negra e importantíssima no filme é a assistente social (Sharon Washington) com quem Fleck tem uma relação tensa. Ela o informa que o governo cortou recursos e que, por isso, ele não terá mais acesso aos seus remédios. Obviamente desolado ele pergunta onde poderá se tratar agora e ela diz: “eles estão se lixando pra pessoas como você”. “Eles” são os governos neoliberais que adotam as vontades do mercado, as políticas de austeridade que engordam os bolsos do 1% mais rico enquanto a pobreza aumenta a passos largos.
Uma assistente social negra e um homem branco perturbado mentalmente estão conversando sobre como o governo dos mais ricos afeta a vida daqueles que mais precisam em prol dos mesmos de sempre. Algo na cena une os dois personagens do filme, é a questão de classe. Não é necessário ser um filme militante para que esse tipo de mensagem faça toda a diferença na trama, ambos são pobres e estão abandonados pelo Estado.
O ambiente social de Gotham City remete a Nova York de 1975 (mesmo momento em que o taxista Travis Burkle vai a loucura no clássico de Martin Scorsese). Naquele contexto a austeridade econômica e o corte de gastos afetou profundamente os que mais precisavam de apoio do Estado. Quando Arthur Fleck, num ato de descontrole e fúria, mata três jovens brancos, machistas e empreendedores de Wall Street no Metrô, o bilionário Thomas Wayne lembra a figura de Donald Trump, condenando a violência contra “pessoas de bem” e se apresentando como o ricaço que quer ser prefeito para salvar a cidade da baderna provocada pelo palhaço misterioso.
Quando, em meio a protestos contra os ricos nas ruas de Gotham, Arthur Fleck consegue entrar num teatro e questiona Thomas Wayne no banheiro sobre o relacionamento com sua mãe (sua ex empregada) – e uma possível ligação paterna – recebe um soco que quebra seu nariz quando o que poderia salvar a vida de um homem como ele é um sistema de saúde pública com amplos recursos para tratar distúrbios psicológicos para aqueles que não podem pagar por isso.
Arthur Fleck poderia ser salvo por uma proposta política que colocasse as pessoas como prioridade no lugar dos lucros, que destinasse recursos a combater as desigualdades sociais e que levasse ao aumento da cidadania. Uma proposta que não se baseasse na proposta mentirosa da meritocracia numa sociedade que não nos dá igualdade de direitos. Uma proposta política que não se dobrasse aos interesses do mercado, que é essa entidade fantasmagórica criada pela incrível capacidade que essa sociedade tem de criar mistificações da realidade.
A cena final niilista é o retrato de uma sociedade que preferiu abandonar as pessoas a própria sorte, não existe mais o cidadão Arthur Fleck, agora ele é o Coringa e encontra na barbárie sua única forma de sociabilidade. Por isso, a reflexão de Rosa Luxemburgo continua atual, afinal teremos de escolher entre o socialismo e a barbárie. O “Coringa” de Todd Philips é o retrato da sociedade capitalista hoje, pois a escolha pelas leis do mercado é a escolha pela barbárie.
– Otávio Augusto é historiador e fã de cultura pop;
Achei o filme contundente e profundo… saí “mexido” do cinema, o que creio, ser o objetivo da Arte… nos fazer refletir.
Ótimo texto, parabéns.