Balanço: Coala Festival 2019 celebra Brasil da diversidade, inteligência e boa música

Texto por Renan Guerra
Fotos por Fernando Yokota

Sete de setembro de 2019. O presidente Jair Bolsonaro havia pedido que a população saísse às ruas de verde e amarelo, celebrando o dia da Independência de forma patriótica. Uma parcela da população, em contraponto, decidiu sair de casa usando preto ou outras cores que não fossem a combinação verde e amarelo. A ditadura militar fez do patriotismo um sentimento nefasto para grande parte do povo brasileiro. Quando estávamos nos reaproximando desses símbolos, o verde e amarelo foi tomado novamente de assalto por uma direita violenta, que pouco entende o próprio Brasil. Repetidas vezes essa mesma direita quer reafimar que o Brasil não é nosso – e nosso, entende-se, por negros, LGBTs, pobres, nordestinos, indígenas, ou qualquer outra pessoa que não seja o homem branco hétero cristão de classe média.

Foto de Gabriela Batista / Coala Festival

Enquanto tudo isso teima em ocorrer, uma multidão lotou o Memorial da América Latina, em São Paulo, durante dois dias (07 e 08/09) para a sexta edição do Coala Festival, evento que celebra o Brasil que a gente não pode deixar nenhum segundo de amar, o Brasil que é nosso, de cultura rica, de diversidade, de inteligência, de bom humor, de música boa e de muita energia.

Josyara

No primeiro dia, viu-se uma profusão de artistas do Norte e Nordeste mostrando possibilidades sonoras amplas. A baiana Josyara, por exemplo, abriu os trabalhos com show forte e belo, em meio a um sol que torrava o público sobre o concreto do Memorial da América Latina. Apresentando seu disco “Mansa Fúria” (2018), Josyara é coisa linda de se ver ao vivo, empunhando sua guitarra e apresentando um repertório autoral de peso, que a coloca entre os bons nomes a se ficar atento.

Dona Onete

Na sequência foi a vez da paraense Dona Onete subir ao palco. Aos 80 anos e celebradíssima na Europa, ela entrou de cadeira de rodas e assumiu seu lugar em uma poltrona bem no centro do palco. As limitações físicas não impediram a cantora de encher a platéia de energia com o seu carimbó chamegado, cantando faixas dos discos “Banzeiro” (2016) e o recente “Rebujo” (2019). Um show encantador!

Duda Beat

Seguindo uma proposta que busca mesclar nomes mais alternativos com nomes maiores em horários mais cedo, o Coala colocou Duda Beat para cantar as 16h15, reunindo um público gigante, que nem o sol diminuiu sua força. Duda segue com um dos melhores shows pops do Brasil e que parece se tornar mais amarradinho a cada apresentação, mesmo com a inclusão dos muitos singles que ela tem lançado – alguns bons, outros não.

Elba Ramalho

Quando o sol já começava a se pôr, foi a vez de Elba Ramalho subir ao palco, num show que começou animado, porém com cara de “greatest hits de São João”, com a cantora a cantar clássicos juninos. Na metade do show, ela convidou Mariana Aydar para acompanha-la, já que Mariana está fazendo um retorno ao forró, com seus recentes EPs “Veia Nordestina”. Curiosamente, elas não cantaram ao vivo a nova parceria que gravaram juntas recentemente, com Mariana optando por cantar o hit “Te Faço Um Cafuné” e também sua estranha versão forró de “Triste, Louca ou Má”, originalmente de Francisco, El Hombre. Depois de um disco excelente como o “Pedaço Duma Asa” (2015), chega a ser desanimador ver Mariana ao vivo fazendo versões repetitivas de “Feira de Mangaio”, por exemplo. Apesar desses poréns, a segunda metade do show de Elba, já sozinha no palco, foi um sopro de energia, com a cantora trazendo faixas novas, cantando o clássico “Chão de Estrelas” e uma inspirada versão de “A Praiera”, de Nação Zumbi, com guitarras fortes.

Mestre Anderson Miguel

Já à noite, uma escolha ousada dos organizadores foi colocar Mestre Anderson Miguel em horário nobre. Com 23 anos, o jovem cirandeiro pernambucano é uma aposta alta e que apresentou um show redondinho, com participação de Renata Rosa e Siba, onde apresentou o repertório de seu álbum de estreia “Sonorosa” (2018). É muito claro que uma grande parcela do público não conhecia Mestre Anderson, mesmo assim esse é um momento a ser celebrado: de abertura para novos e jovens artistas em grandes palcos.

O final do primeiro dia foi marcado pelo furacão BaianaSystem, que apresentou aquele que é um dos melhores shows nacionais, levando uma multidão ao delírio. Apresentando faixas dos álbuns “Duas Cidades” (2016) e “O Futuro Não Demora” (2019), Russo Passapusso e sua gang fizeram do sete de setembro um verdadeiro carnaval. Além de toda energia sonora da apresentação, é simbolicamente muito forte escutar a faixa “Sulamericano”, dos versos “Nas veias abertas da América Latina / Tem fogo cruzado queimando nas esquinas / Um golpe de estado ao som da carabina, um fuzil / Se a justiça é cega, a gente pega quem fugiu”, em pleno Memorial da América Latina, de frente para obra “Mão”, de Oscar Niemeyer.

BaianaSystem

No segundo dia, o sol seguiria marcando presença, o que, apesar de tudo, não parecia ser um problema, já que o público chegou cedo. No início da tarde, Curumin reuniu uma espécie de supergrupo para celebrar a sambista Geovana. Com Rodrigo Campos, Anelis Assumpção e Saulo Duarte no palco, os artistas passaram por faixas de Curimin, Saulo, mas resgataram, especialmente, canções de Geovana, criando uma verdadeira roda de samba sobre o concreto.

Curumin

Com um som lá no alto e muito ritmo, logo depois foi a vez dos baianos do Afrocidade entrarem em cena e colocarem todo mundo pra dançar. Numa espécie de “explicando pra confundir, confundindo pra explicar”, a banda mescla gêneros, indo do hip-hop e do funk ao axé e o samba, criando uma mistura cativante, que fez a platéia descer até o chão e pular até o alto.

Afrocidade

16h10, pontualmente, Chico César e Maria Gadu chegaram cantando a capella, conclamando o público a acompanha-los em uníssono. A dupla passeou por hits da carreira de ambos, indo desde “Shimbalaiê”, de Gadu, até “À Primeira Vista”, de Chico, incluíndo aí uma longa versão de “Alma Não Tem Cor” (original do Karnak). O destaque da apresentação fica por conta da faixa “Pedrada”, que havia sido lançada oficialmente por Chico na sexta-feira (06) e que conta com o refrão palavra de ordem “fogo nos fascistas”. Divertindo-se muito no palco, Gadu e Chico fizeram um dos shows mais belos e políticos do dia.

Chico César e Maria Gadu

Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz entraram já ao entardecer, em mais um passo corajoso da organização do festival. A música instrumental do grupo pode até ter sido ignorada por alguns, mas fez muita gente dançar, em um espetáculo encantador de ver: Letieres dança, toca instrumentos e celebra cada um dos integrantes de sua orquestra de forma delicada. De surpresa, ainda teve participação de Russo Passapusso ao final, com direito a uma versão matadora de “Lucro (Descomprimindo)”, do BaianaSystem.

Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz

Djonga subiu ao palco já à noite e apresentou o show mais punk do festival, apresentando especialmente canções de seu elogiado disco “Ladrão” (2019). Mesmo com certos problemas técnicos, o rapper mineiro não deixou a energia cair: cantou a capella, fez a galera pular e elevou as tensões ao máximo. O ponto alto foi a faixa “Olho de Tigre”, com seu refrão que pede “fogo nos racistas”: o músico pediu para abrir uma grande roda na plateia, o que se tornou um bate-cabeça pesado e intenso.

Djonga

Para encerrar o segundo dia e a edição 2019 do festival, o público teve a honra (que já coube a Gil em 2018 e a Caetano em 2017) de receber Ney Matogrosso. Aos 78 anos, o artista é um banho de energia ao vivo. Apresentando seu show “Bloco na Rua”, Ney mostra repertório renovado, indo bem além de qualquer hit que o público poderia esperar. “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, de Sergio Sampaio; “A Maçã”, de Raul Seixas; “Álcool (Bolero Filosófico)”, de DJ Dolores e “Jardins da Babilônia”, de Rita Lee, formam um show que fala sobre sexo, amor e liberdade ao melhor estilo de Ney.

Ney Matogrosso

Para quem esperava releituras de Secos e Molhados ou um compilado de hits, não é o que Ney mostra. “Pavão Mysteriozo” (Ednardo) surge com tons psicodélicos, em seus versos que dizem “eles são muitos, mas não podem voar”. Já “Sangue Latino” fecha o show em versão glam rock, distinta da original. Depois disso, Ney ainda voltou para o bis e mais surpresas: uma versão poderosa de “Como 2 e 2” (Caetano Veloso) e um encerramento com “Mulher Barriguda”, em nova versão. Ney Matogrosso não é para os acomodados e “Bloco Na Rua” é show para quem está atento ao mundo de 2019. Um showzão que encerrou o festival em alto estilo, apontando o futuro.

Nesses dois dias de Coala Festival, as manifestações políticas foram muitas: Dona Onete pediu proteção para a Amazônia; Duda Beat comentou as ações de Crivella na Bienal do Livro do Rio de Janeiro; Maria Gadu pediu liberdade para Preta Ferreira, líder do Movimento dos Sem Teto do Centro. De todo modo, como disse Curumin: “a alegria é um ato revolucionário” e, por isso mesmo, esses dois dias foram de celebrar a cultura brasileira de forma múltipla e ampla, com um leque amplo de artistas que mostram que a arte e a cultura são o caminho. Que o Coala siga firme como espaço de celebração do Brasil que é nosso!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/

Leia também:
– Saiba como foram as edições do Coala Festival em 2015 – 2016 – 20172018

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