texto de introdução por Marcelo Costa
Faixa a faixa por Jonnata Doll
Em 2014, quando fui curador do excelente projeto Prata da Casa, do Sesc Pompeia, escalei Jonnata Doll e os Garotos Solventes para uma programação especial focada no rock. Na época, como de praxe, algumas pessoas estavam assassinando (mais uma vez) o rock dizendo que ele havia morrido não sei onde nem como muito menos por que. Minha ideia então foi pegar quatro bandas de rock de fora do eixo Rio/SP e mostrar como o estilo não só estava vivo, mas borbulhante, sedento, voraz como sempre foi.
A escalação daquele setembro (após um agosto voltado ao jazz) contava com The Baggios (SE), Molho Negro (PA), Loomer (RS) e Jonnata Doll e os Garotos Solventes (CE). Foram quatro shows sensacionais e tanto The Baggios quanto Jonnata Doll foram selecionados entre os alguns dos melhores do Prata da Casa 2014, ganhando uma segunda noite de shows no ano seguinte, dentro da Mostra Prata da Casa. São, até hoje, os dois únicos shows de Jonnata Doll e os Garotos Solventes que vi, e os dois seguem fresquinhos na memória:
Enquanto o quinteto instrumental praticava um rock and roll de altíssima qualidade, o frontman Jonnata avisava: “Nunca se esqueça que o mundo está contra nós, porra”. Jonnata não parou um segundo: rolou no palco, se rastejou aos pés da galera no melhor estilo Iggy Pop dos anos setenta, fez promessas de amor, tirou o pau pra fora, caminhou sobre as mesas da choperia do Sesc Pompeia chutando copos de plástico (assista a dois vídeos aqui).
Depois desse show, Jonnata Doll e os Garotos Solventes lançaram um baita segundo álbum, “Crocodilo” (2016), e agora retornam com seu terceiro disco de inéditas, “Alienígena” (2019), financiado a partir do Prêmio Governador do Estado de São Paulo, que a banda conquistou na categoria Júri (Música) em 2018, aliado a uma bem sucedida campanha de financiamento coletivo. O álbum, distribuído pelo Selo Risco, já esta disponível nas plataformas digitais e tem show de lançamento na choperia do Sesc Pompeia dia 06 de setembro de 2019.
O colaborador efetivo Fernando Catatau (Cidadão Instigado) assume desta vez, também, a produção do disco, que ainda conta com as participações de Ava Rocha, Clemente, Guizado e Murilo Sá (além do próprio Catatau). “Alienígena” traz uma visão singular de São Paulo, a partir de canções sobre o que Doll viu e sentiu, sobre uma noite de inverno no Vale do Anhangabaú enquanto esperava a menina trazer o chá, o “fantasmagórico” Edifício Joelma, sobre as pessoas que ele conheceu na sala de espera do centro de apoio psico-social (CAPS) da Sé…
Abaixo você conhece, faixa a faixa, o disco pelo próprio Jonnata Doll!
Faixa a faixa, por Jonnata Doll:
MATOU A MÃE (JONNATA DOLL)
Uma mesa de bar, homens nos quatro cantos, meia idade, blusa de botão, cerveja, jornal sensacionalista na TV ligada, senso comum, frases e piadas feitas quando o freak passa. Uma ação da milícia, um assassinato num barracão a beira da marginal, sangue escorre pela porta, mãos pretas de mulher estiradas para fora da janela, uma cadela morta amarrada em uma corda inutilmente presa a um toco e um pôster do presidente de extrema direita ainda pode ser visto na frente do barraco. O sangue escorre para o rio…
ED JOELMA (JONNATA DOLL / EDSON VAN GOGH)
Depois de uma madrugada de excessos, a heroína sai pela cidade sem acreditar em nada, abre as pernas e mija no meio do povo começando o dia, o rio de mijo se mistura ao rio subterrâneo quando desce pela boca de lobo enquanto ela segue pela calçada, passa por mendigos, travestis viradas cheias de mãos e compra cocaína ruim na rua Paim. Agora segue até a quitinete na Rego Freitas, sobe o elevador sem acreditar em nada, ver os amigos com quem mora e pensa em algo para dizer, mas não há nada, ele ver um amigo requentando o café e o outro chupando alguém na cama, ela ver chamas nesta cama e sonha com o incêndio do edifício Joelma.
TRABALHO TRABALHO TRABALHO (JONNATA DOLL)
Diz incisiva a voz de locutor numa propaganda de rádio, através dos fones diretamente para o ouvido de nosso herói anônimo, forçado a vestir um terno no sol quente e encarar a mesma rotina de idas e vindas em ônibus e metrôs lotados, mais as horas intermináveis no trabalho, de segunda a sábado. Para matar a solidão e o tédio ele enche a cara com a bebida mais barata e gasta todo o tempo de folga jogando videogame e assistindo séries de heróis.
BABY (JONNATA DOLL)
O passageiro sonha com uma vida na cidade que abandona, com o amor que o abandonou. Fuma e acaricia um gato na parada do Graal, enquanto espera que o motorista acabe seu lanche.
FILTRA ME (JONNATA DOLL)
O herói entra na farmácia e esconde frascos de elixir paregórico na mochila. Com uma seringa, ele injeta uma dose na veia do dedão do pé esquerdo e olha para a cidade através do buraco que um dia foi a janela do quinto andar do prédio velho ocupado, enquanto vai ficando vermelho gradualmente da cabeça aos pés.
VAI VAI (JONNATA DOLL)
Um gato preto gigante dança enquanto devora um homem vestido de rato a partir de suas pernas em frente a vai-vai. Este é o sonho de um gato que dorme enquanto uma festa regada a cocaína rola em um apartamento.
DERBY AZUL (JONNATA DOLL & OS GAROTOS SOLVENTES)
Um casal bebe cerveja em frente a um estacionamento enquanto são observados por um gato preso atrás de uma tela em uma janela no segundo andar do prédio em frente, um hippie punk oferece bijuteria interrompendo um beijo do casal, que começa a se desfazer em uma névoa.
MÚSICA DE CAPS (JONNATA DOLL)
Uma paciente internada em uma clínica conversa com o fantasma do Belchior no jardim, o muro alto que lhe prende é ornado por centenas de minúsculas cabeças de gueixas que cantam em uníssono: tchu ru tchu tchu
VOLUME MORTO (JONNATA DOLL / BIAGIO PICORELLI)
Um rio segue por baixo de uma avenida onde desfilam uma série de figuras bizarras conservadoras batendo panelas: Rebordosas de verde e amarelo, senhores de escravos, caçadores arrastando jaguatiricas mortas, negros vestindo balaclavas da KLUX KLUX KLAN e centenas de núcleos familiares enlouquecedoramente idênticos (Um pai gordo branco de bermudas usando relógio de ouro, uma perua de sorriso congelado e uma criança gorda com um iPhone)
VALE DO ANHANGABAÚ (JONNATA DOLL)
Alguém vai comprar chá com a comunidade de moradores de rua que vivem embaixo do viaduto do chá. Uma punk lhe oferece uma balinha, assim que o carro da polícia se afasta devagar. Em seguida, estranhos objetos surgem no céu e acontece um contato imediato de terceiro grau.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.