por Pedro Salgado, de Lisboa
Em 10 anos de carreira, os PAUS diferenciaram-se de várias bandas portuguesas pelas suas apresentações enérgicas e por um espírito de reinvenção permanente que resulta da natureza roqueira e experimental do grupo. O meu entrevistado, Hélio Morais, detém um currículo invejável, no qual se inclui a fundação dos PAUS (onde divide a bateria com Joaquim Albergaria) sendo acompanhado por Makoto Yagyu (baixista) e Fábio Jevelim (tecladista) e todos fazem vocais. Para além disso, Hélio fundou igualmente o Linda Martini (é o baterista da banda) e desempenha a função de gestor do agenciamento no estúdio HAUS, um espaço musical polivalente, em Lisboa, que ajudou a criar, entre outras atividades.
Ao longo da conversa, num café do Chiado, alusiva à estadia de 15 dias do quarteto português na cidade de São Paulo, em Maio de 2019, e focada nas parcerias que foram estabelecidas com músicos brasileiros e no trabalho do produtor Guilherme Kastrup, que resultaram no EP “LXSP”, Hélio mostrou ser simultaneamente assertivo e entusiasmado em relação à experiência vivida pelos PAUS durante essas duas semanas. Comparativamente com os discos “Mitra” (2016) e, particularmente, “Madeira” (2018), que evidenciavam uma ousadia vocal e rítmica assinalável, o EP que gravaram na capital paulista revela um sentido exploratório mais amplo e a minha observação merece a concordância de Hélio Morais: “Sim, a banda tem 10 anos e habituamo-nos a determinados processos de composição. É fácil ganhar vícios e o fato de colaborarmos com outros músicos obriga-nos a pensar de um modo diferente e usar a intuição”, conta.
Uma das quatro músicas do disco, “Memória Afetiva Descolonizada”, em parceria com o rapper paulista Edgar, assume o papel de ‘statement’ do trabalho, abordando a história passada do Brasil e os erros cometidos pela colonização portuguesa num registro contundente. Para além de destacar “O discurso bem construído, a leitura política exímia e o espírito de garoto de Edgar”, o baterista dos PAUS sublinha também a ideia de esperança patente no tema: “A mensagem do Edgar passa por questionar para evoluir e não só para destruir”, explica.
No próximo dia 18 de agosto, a banda portuguesa participará do Festival Bananada, em Goiânia e perspectiva o acontecimento com base num show que efetuou na Casa Natura Musical, durante a sua recente estadia paulista. “Nós éramos os únicos artistas que nunca tinham atuado lá nem tão pouco em São Paulo, mas fomos muito bem recebidos e houve um interesse genuíno no grupo. Se julgarmos por esse momento só poderá correr bem”, afirma. Presentemente, o quarteto lisboeta já trabalha num novo álbum (será editado no final do ano) e conta com a participação do produtor brasileiro Rodrigo Coelho (Grassmass). “Iremos buscar aquilo que aprendemos com o Guilherme Kastrup nas percussões, bem como a eletrônica do Grassmass. O Fábio Jevelim ainda só compôs um terço do disco nos teclados e está no Brasil. É natural que ele traga algumas ideias que darão um toque brasileiro ao conjunto”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Hélio Morais conversou com o Scream & Yell. Confira:
A oportunidade dos PAUS gravarem um EP no Red Bull Music Studios, em São Paulo, resultou de que propósito?
Em 2018 fomos uma das crew leaders do Red Bull Music Culture Clash, em Lisboa (a nossa crew era Paus e Pedras), nós ganhamos essa batalha sonora e ficou no ar a possibilidade de fazer outras coisas. Para além disso, também no ano passado, na MIL Lisboa International Music Network, falamos com o Fabrício Nobre, da empresa cultural A Construtora. Ele é igualmente o programador e dono do Festival Bananada, em Goiânia, e ficou acertado que os PAUS tocariam lá e o evento aconteceria em Maio de 2019. E então pensamos em estender a coisa e fazer algo amplo e propusemos à Red Bull Portugal ir até aos estúdios de São Paulo gravar um EP com músicos locais. Entretanto, o Bananada foi adiado para Agosto, mas até foi bom, porque acabamos por nos deslocar várias vezes lá e todos os passos que damos no Brasil são mais consequentes.
Durante a estadia na cidade, quais foram os aspectos mais estimulantes para o vosso processo criativo?
Na verdade, os PAUS fizeram as estruturas do disco em Portugal. Nós não compomos numa sala de ensaios como as bandas normais, precisamos de um espaço que proporcione mais habituação do que conforto. Para além disso, o Fábio Jevelim usa muitos teclados e sintetizadores e era impossível levar esse material todo para São Paulo. Por isso, temos uma forma de compor e gravar em simultâneo. Nesse sentido, registramos as bases em Lisboa, mas sabíamos que era um projeto em aberto para a mão do produtor Guilherme Kastrup (Gui), numa fase inicial mais ligado à edição e às percussões dele. Depois demos uma margem para a entrada dos artistas convidados. Participariam todos com voz, se bem que a Maria Beraldo também tenha gravado clarinetes, mas queríamos deixar em aberto uma possível edição para a intervenção deles. A partir do momento em que temos vozes de São Paulo cantando, mesmo que não sejam originalmente paulistas, como é o caso da Maria, ou mesmo do Gui, que é do Rio de Janeiro, estamos incluindo personalidades muito ativas de lá e só por aí o EP já tem um dedo direto. Toda a imagética que adotamos relativamente ao disco, o percurso do hotel para o estúdio também está bem refletido no vídeo do single “Corpo Sem Margem” (com o Dinho, do Boogarins) e depois regravamos algumas percussões em São Paulo, influenciados pelo Kastrup ou pelo que escutávamos no Brasil. Mas, essencialmente, foi o que retiramos para a posteridade das pessoas que entraram no disco e não tanto o que os PAUS colocaram do que viram lá.
A forma de trabalhar dos músicos brasileiros que participaram no “LXSP” surpreendeu-vos?
Sempre (risos). São linguagens muito diferentes. Estivemos no Brasil com uma ideia aberta sobre o desenvolvimento do EP. Convidamos pessoas com carreiras diferentes dos PAUS, por isso era injustificado criar resistências ou estar na defensiva relativamente à forma como eles interviriam na nossa música. Fomos surpreendidos, porque demos liberdade total ao que foi feito. Eles trouxeram elementos para a sonoridade dos PAUS que não imaginávamos. No caso do Gui, a forma como ele usa mpc e sampling (que há muito no disco) e a sua maneira de compor as percussões está mais ligada ao timbre embora ele tenha uma técnica incrível. A Maria Beraldo fez três linhas de clarinete seguidas para jogarem umas com as outras e a sua voz no tema “Fora de Pé” foi espetacular. A letra do Edgar (“Memória Afetiva Descolonizada”) tem mais texto do que todos os nossos discos juntos e ele fez esse tema de um dia para o outro. O Dinho chegou ao estúdio depois de uma noite inteira viajando de ônibus de Goiânia para São Paulo. Ele apareceu às seis da manhã e estava no estúdio às 10h. fazendo uma linha de voz fantástica e escrevendo a letra da canção.
“Corpo Sem Margem” é simultaneamente harmônico e arrojado. Porque a escolheram como single?
Apostamos nela pelo que fizemos no passado. Gostamos de todas as músicas que fizemos no Brasil, mas, como é um EP que pretendíamos editar simultaneamente no Brasil e em Portugal, não podíamos descorar que o single escolhido funcionasse bem nos dois países. Os PAUS com o Edgar fazendo um rap em Lisboa seria muito estranho como primeira amostra do disco. Está muito contextualizado, adoramos a música e até arriscamos que esse tema faça mais sentido no Brasil mas, globalmente, sentimos que a faixa com o Dinho ilustrava melhor o que são os PAUS. Com o Edgar somos diferentes e é um rap do princípio ao fim, porque quando a voz dele entra ocupa quase todo o espaço da música e, por isso, talvez não fosse a escolha mais certa como single, embora nós a adoremos. Relativamente ao Dinho, sentimos que a canção era perfeita, já que é muito ao estilo dos PAUS (as nossas vozes estão no meio), tem a voz linda e a magia dele e resulta mais nos dois países. Acabou por ser uma decisão analítica (risos).
Tematicamente, “LXSP” é apenas um retrato da passagem dos PAUS pelo Brasil ou reflete uma visão artística mais vívida da realidade?
Julgo que reflete essa realidade pelo fato de ter músicos brasileiros. Sinto que é uma ótima ponte e antes mesmo já tínhamos imensos amigos artistas no Brasil e também cá. No ano passado colaboramos com os Boogarins na MIL Lisboa International Music Network. Eles fizeram um EP digital que incluiu o Legendary Tigerman, Capitão Fausto e os PAUS (uma música com cada um) e depois resultou num espetáculo na MIL Lisboa, por isso já mantínhamos contato. É o caso também da relação com o Fabrício Nobre d´A Construtora (ele é o booker dos Boogarins e dos PAUS no Brasil). Por outro lado, eu tinha um bom conhecimento sobre São Paulo, porque o meu grande amigo Ricardo Silveira (realizador) vive lá. Ele está fazendo um documentário, criou o clipe de “Corpo Sem Margem” e recolheu as imagens da nossa estadia. Globalmente, é um resultado muito positivo de uma ponte que se está tornando mais larga. De qualquer modo, tudo o que se passou serviu igualmente para desmistificar certas ideias de alguns artistas portugueses mais velhos, ou seja, “Portugal está aberto para os músicos brasileiros e o Brasil não está aberto para os músicos portugueses”. Pois bem, eu tenho uma surpresa, não é assim (risos). Todos os artistas que convidamos para entrarem neste disco aceitaram sem a menor reserva e esta foi a nossa experiência. No entanto, existe algo que tem de acontecer: os cantores e bandas portugueses têm de ir lá. A culpa não é da pouca receptividade do Brasil, mas sim das nossas organizações culturais que não investem na cultura nacional. Só há dois anos é que foi criada uma instituição de apoio à exportação da música portuguesa e nem sequer é um órgão estatal.
Acredita que esta nova era de parcerias musicais luso-brasileiras irá florescer ou, pelo contrário, estamos apenas vivendo um momento ímpar?
Está para ficar! Admito que eu possa estar inserido numa bolha, já que só conhecemos a fundo aquilo que vivemos. Relativamente ao resto, apenas podemos ler, mas não dá para afirmar com toda a certeza. De fato, as relações que os PAUS têm construído são efetivas. Convém referir que vários músicos brasileiros vivem em Portugal e o mesmo acontece com diversos artistas portugueses em São Paulo. É normal que as coisas fluam e as pessoas se juntem. Antigamente as colaborações eram mais ao nível do segmento comercial e isso limita as opções, dado que dependiam de fatores estratégicos. Sabemos que editando esse EP com músicos brasileiros nos poderá abrir portas no Brasil, mas também percebemos que iremos começar da estaca zero como em outros países. Uma vez que estas parcerias foram estabelecidas com artistas brasileiros, esse fato irá trazer mais longevidade a essas ligações, porque já não está só assente numa relação mercantil e tem de haver afeto e um entendimento entre os músicos. Estamos satisfeitos com estas colaborações, eram as que queríamos. Sinto que virão mais ligações artísticas.