entrevista por Renan Guerra
Vladimir Safatle é filósofo e professor da USP, conhecido por muitos por ter mantido uma coluna durante anos na Folha de São Paulo. Fabiana Lian é produtora artística responsável por shows internacionais, tendo trabalhado com Metallica, Madonna, Iron Maiden em suas turnês na América Latina. Essas são os epítetos mais usuais de ambos, porém Vladimir e Fabiana tem suas histórias musicais: ele compôs trilhas de peças de teatro e prepara o lançamento de um disco solo pelo Selo Sesc. Já ela fez parte do grupo vocal Mawaca e atuou em projetos de música eletrônica nos anos 90 – assim como é mãe da cantora Luiza Lian. De todo modo, juntos, Vladimir e Fabiana produziram um álbum deveras estranho que ficou há anos guardado, sem ver a luz do público.
“Músicas de Superfície” é o encontro de Vladimir e Fabiana nos anos 90, mais especificamente de 1994 a 1998. Nessa época, eles tocaram em alguns lugares e produziram, cuidadosamente, o álbum que ficou guardado de 98 até 2019, quando eles, enfim, decidiram retomar esse encontro e assim mostrar ao público essas canções. Mesmo pronto há tanto tempo, esse disco que chega agora às plataformas de streaming não tem cheiro de baú de guardados, pois há uma ruptura, uma potencial estranheza nesse encontro que permanece ativa. Ecos de jazz, experimentações vocais, uma pitada de Dead Can Dance e alguma obscuridade advinda do rock dos anos 80, tudo isso pode ser tateado em “Músicas de Superfície”, mesmo assim, nada disso define o que realmente o ouvinte irá encontrar. Safatle gosta de dizer que estas canções ocupam uma espécie de entre espaço entre gêneros e possibilidades, por isso se torna tão interessante de ser explorado.
Vladimir e Fabiana irão lançar o disco ao vivo no Blue Note, em São Paulo, no dia 3 de julho. Para entender mais sobre esse encontro e toda essa história quase perdida no tempo, nós batemos um longo papo com os dois. Falamos sobre a história do disco, as relações musicais de ambos e um bocado sobre música em si, vale conferir com atenção:
Vocês gravaram o disco nos anos 90, entre 1994 e 1998…
Safatle: Sim, ele foi gravado aos poucos, algumas músicas primeiras. Aí em 1998 estava pronto, só que não havia gravadora. Haviam muito poucas gravadoras para esse tipo de música e, também, eu fui embora do Brasil, fiquei 4, 5 anos fora, depois quando eu voltei eu já entrei como professor na Universidade de São Paulo e isso ficou perdido. Agora que resolvemos retornar.
Mas teve algum motivo especial para essa retomada?
Safatle: Isso veio especialmente da Fabiana, ela que ouviu o material e pediu para a gente voltar, para ensaiarmos de novo. Eu tinha mudado, estava realmente querendo retomar de maneira mais sistemática esses trabalhos com música. Eu tinha feito um outro CD [“Tempo Tátil”], que sairá pelo Selo Sesc ainda esse ano. Dentro desse CD tem uma participação dela, eu queria que ela fizesse uma peça, aí ela veio com muita disposição. Então as músicas voltaram, eu tinha esquecido delas mesmo. Nesse ímpeto então decidimos lançar o CD.
Como se iniciou a sua parceria com a Fabiana?
Safatle: Eu acho que se iniciou em 1993, começou por que eu queria uma voz feminina, uma soprano, para cantar duas peças que eu tinha feito e nós tínhamos um amigo em comum, o Eduardo [Dão] Areias, que já faleceu – inclusive ele faz parte de duas peças do CD, tem também uma peça que é letra dele (nota do editor: é ele quem aparece na foto acima, da época). E aí o Dão falou “olha, eu conheço uma pessoa que tem a voz muito boa e tal” e era a Fabiana e aí a gente começou a fazer essas duas peças. E era muito engraçado, eu devia ter uns 20 anos, ela quase 30, já tinha filho, então eram dois universos diferentes, mas a gente foi trabalhando durante todo esse tempo, a gente até chegou a fazer algumas apresentações naquela época.
E como foi para você esse trabalho com músico, uma vez que o seu trabalho “principal” hoje em dia é como professor e filósofo e agora você está retomando esses trabalhos musicais?
Safatle: Essa é, digamos, uma divisão estrutural, por que eu sempre trabalhei com música, eu fiz formação em conservatório clássico, só que isso nunca ficou visível. Cheguei a ter grupos na adolescência, só que quando eu voltei para o Brasil e entrei na Universidade de São Paulo eu deixei meio de lado. É que eu tive também uma crise, entre várias outras, que é uma crise em relação ao sistema tonal. Todas essas composições [ele aponta para o disco] são tonais, mesmo que elas tenham suas peculiaridades de forma, elas são mais ou menos baseadas na forma canção, então eu entrei em crise mais ou menos com isso: com a forma canção e com a tonalidade. Então até eu conseguir achar um tipo de uso mais livre e mais desfibrado das formas, demorou um tempo, aí por volta de 2008 eu consegui alguma coisa que eu fiquei mais satisfeito, só que por causa do ritmo e de algumas questões pessoais, eu não continuei, até que eu voltei há uns 3, 4 anos atrás, quando eu fui chamado para fazer uma estrutura musical para uma peça de teatro. Foi uma experiência que eu gostei de fazer, até fiz para mais uma peça e aí nessa o Sesc pediu para gravar o CD e foi meio assim que eu voltei.
Você produziu peças para duas peças, “Leite Derramado” e “Caeser”, que são trabalhos distintos, como foi esse processo?
Safatle: Foi um processo muito singular, até por que uma delas, de “Caeser”, era uma música contínua de 50 minutos, então eram dois atores e um pianista e foi um desafio bem interessante. Eu não queria fazer uma trilha sonora, por que mesmo a ideia de trilha já é uma ideia bastante estranha, ou seja, como se a música fizesse um caminho ou se organizasse dentro de um caminho, normalmente é quase como uma legenda, e eu queria uma estruturação de contraponto, onde na verdade a música expressava sismografias que não estavam explícitas nas cenas da peça, e que muitas vezes ela interferisse, então ela era quase um personagem à parte. E de fato funcionou, tanto que a trilha foi premiada, eu ganhei o prêmio Aplauso.
O “Músicas de Superfície” ficou guardado durante muitos anos, como foi reouvir essas canções tantos anos depois?
Safatle: Ah, foi um processo meio dramático, por que isso depende muito dos momentos. Durante um tempo eu achava que era muito marcado por algo que eu não queria fazer, por isso foram anos de silêncio, até achar uma outra forma. Mas depois, tem pessoas que operam por rupturas muito brutais e eu percebi que havia sido uma ruptura brutal demais, então eu comecei a reouvir e de fato elas têm coisas interessantes, até um dado momento em que comecei a pensar “poxa, eu deveria ter lançado isso”. Foi mais ou menos o momento em que a gente voltou e começou a fazer esse trabalho de novo. A gente fez duas apresentações nesses últimos meses, lá no Jazz B, e o resultado foi bom, então foi um retorno muito generoso da parte do público, que mostrou que existia de fato um campo que a gente poderia recuperar. E é engraçado, por que eu temia que as músicas tivessem ficado um pouco envelhecidas, mas elas ficariam envelhecidas se tivesse dentro da música brasileira uma tradição de trabalho nessas formas mais híbridas e não existe essa tradição. Você tem algumas pessoas que fazem alguns tipos de hibridações formais, mas não necessariamente dentro desse universo que a gente trabalhava, que tinha música erudita, referências do jazz, referências de recuperação do rock, mesmo para um formato que não era o formato normal e até alguns elementos de música popular que voltavam. Então eu acho que isso deu ao trabalho uma certa juventude, que ficou preservada.
Fabiana, falamos sobre a produção do disco na época e como foi reouvir ele durante tanto tempo. Para você, como foi retornar a esse trabalho?
Fabiana: A produção foi na selvageria! [risos] Eu fui ouvir agora e tem umas coisinhas que eu queria mudar, limpar, tirar, e aí eu lembrei que foi gravado nós dois juntos no estúdio. Então se tirasse algum pedaço da minha voz, tirava o piano também, então é uma paisagem estática ali. Foi bacana ouvir de novo depois de tanto tempo. Na verdade, a gente havia se encontrado há uns seis anos atrás e eu achei um CD em casa e depois o Bruno tinha a Master. Bruno é o Bruno E., responsável pela masterização da disco.
Safatle: Era uma época em que não existiam muitos estúdios, ou eles eram estúdios muito pequenos ou eles eram grandes e muito caros. Então tudo isso foi feito quando eu era estudante, não tínhamos muitos recursos, então as músicas foram feitas em piano de armário e gravados direto.
Fabiana: Sim, eu ali do lado do piano.
Safatle: Tanto que eu até pensei em gravar de novo por causa do som do piano, por que quem ouve piano percebe que não é um piano de cauda, meia cauda, só que por alguma razão que eu ainda vou descobrir qual, a sonoridade do piano de armário funcionou nesse caso, então eu achei até que era uma singularidade que valia a pena preservar.
Fabiana: E não foi gravado tudo de uma vez, a gente gravava em peças ou em blocos. Então a primeira música em que a gente se encontrou e deu match, que foi “Diamond Larmes”, eu lembro que a gente gravou super rápido, em um mês, um mês e pouco. E a gente foi gravando; ele ia compondo, fazendo aquelas coisas e já ia para o estúdio – sempre o mesmo, um estúdio que eu acho que nem existe mais hoje, lá em Pinheiros.
Vocês conseguem pensar em algum por que do não lançamento do disco à época e a importância de lançá-lo agora?
Fabiana: Sabe o que eu fico pensando? Eu acho que não tinha mercado para esse tipo de música. Primeiro que ainda era um momento regido pelas gravadoras, não tinham muitos selos, não tinha muita gente que simplesmente metia as caras e gravava – tinha um pouco, mas exigia certa energia, tempo, grana e tal. E eu acho que não tinha muito onde encaixar isso no mercado. Primeiro, por que esse é um disco que corre muito risco: ele não tem harmonias óbvias, ele não tem letras óbvias, o jeito de cantar também não é óbvio. E é interessante por que eu fazia parte, na época, do Mawaca, e o Mawaca tinha um nicho ali que estava se construindo, de música étnica, porém para isso exatamente acho que não tinha ainda. Mas aí também teve uma coisa conjuntural, o Vlad em seguida foi morar fora, eu também comecei a fazer outras coisas, estava levando mais a sério o que eu fiz nos últimos 24 anos, que é trabalhar com shows internacionais, aí a vida acabou nos carregando para outro canto. E aí lançar agora – vou falar uma coisa bem pessoal – eu estou num momento em que eu preciso ficar mais perto de música. Não que eu estivesse afastada completamente, em nenhum momento da minha vida, mas de alguma maneira, eu estou precisando ficar mais perto. Voltar a cantar está sendo bem bacana.
Safatle: Talvez esse ponto acabe explicando mais do que qualquer um outro, pois há uma questão psicológica aqui, a gente tem uma relação conflitual com a música, a gente tinha esse trabalho completamente montando em 1997 ou 1998, a gente apresentou o trabalho e essas apresentações foram boas, a receptividade foi boa, mas isso não foi o suficiente para a gente continuar. Acho que talvez, em algum nível, a gente tinha uma relação que para assumir um trabalho autoral e que esse trabalho pedia um cuidado e, como todo o trabalho musical, é um trabalho muito ciumento, então você precisa despender tempo, muita atenção, acho que demorou décadas para que a gente pudesse assumir isso de alguma forma. Tanto que nos dois casos, a gente acabou tendo uma relação lateral com a música durante duas décadas, a Fabi foi fazer produção artística de música e eu, uma das minhas áreas de trabalho é a filosofia da música, então chegou uma hora em que não fazia mais sentido, em que a gente tinha criado todo um sistema de auto denegação que ia explodir em algum momento. E podia explodir como resignação, aquela coisa de “poxa, podia ter feito isso”, ou ia chegar uma hora que ia explodir de maneira mais bem-sucedida, do tipo “quer saber, vamos fazer”. As pessoas já conhecem a Fabiana, por outras razões, e no meu caso também, então acho que no começo elas vão meio que por curiosidade e ficam surpresas. Porque é um pouco como as suas poesias que você escreveu com 20 anos e depois resolve lançar, as pessoas vão, compram e pensam “ah, que legal, bonitinho”, só que aí normalmente elas levam um susto, porque é um trabalho de quem tinha formação musical mesmo e estava mais ou menos ligado – eu diria assim, havia um eixo nos anos 90 de possibilidade de produção musical, e o nosso trabalho entra no eixo de quem estava se descolando de um certo horizonte de produção de música que era muito marcado por um certo tipo de canção, que é um pouco a história da música brasileira, mas que também não foi para a música erudita, então que ficava mais ou menos no meio do caminho. Você tem trabalhos que ficam meio que no meio do caminho, como [Astor] Piazzolla, é um trabalho que está entre o tango e alguma outra coisa. E a gente estava indo para lá, meio que intuitivamente, até por necessidade de tentar fazer alguma coisa mais livre, mas ainda dialogando com o horizonte que poderia ser o horizonte de compreensão mais geral, que se consegue ouvir. É diferente de se pegar uma peça do Morton Feldman e tentar ouvir, quem não tem uma história de audição, leva um susto. Na nossa música, dificilmente você vai levar um susto, você vai ficar mais surpreendido, que é outra coisa. Então, tinha um caminho, mas no caso da música brasileira esse caminho não foi explorado, por uma série de razões: estruturação de campos de atuação, falta de visibilidade, então é engraçado que esse caminho ficou, então faz sentido voltarmos com esse trabalho, pois ele não virou simplesmente uma relíquia, como que o caderno de poemas do professor de filosofia e da produtora artística – pelo menos assim eu espero.
Fabiana, no disco, o seu canto é bem distinto, há um uso muito específico da voz, como é voltar a esse canto agora?
Fabiana: Olha, tem uma coisa bem curiosa. “Sangue e Geometria”, quando a gente decidiu fazer e o Vladimir mandou as músicas, eu comecei a ouvir e passei meio diagonal, pensei “imagina que ele vai querer fazer isso e eu nem tenho esses agudos mais”. E aí fui fazer aula, pois não é exatamente um repertório de cantar no chuveiro. E aí o Vladimir descortinou essa música e tem uma outra que é bem difícil e aguda, que é “Vitrais”, e elas acabaram virando as mais caras para mim também. E foi uma coisa de perder o medo e entrar em contato de novo com a minha voz, do ponto de vista técnico mesmo e acho que o fato de estar num outro lugar na vida, hoje, facilita um pouco acabar com essa insegurança. Está sendo bem interessante. E acho que também não teria uma outra opção para mim, vou cantar de que jeito? Eu tenho uma história musical que eu transitei por muito coisa, transitei pelo jazz, música eletrônica, fiz muita pesquisa de música brasileira antiga e tinha o Mawaca, que era uma riqueza, você pesquisava timbres de sotaques, de posicionamento vocal, então tem um repertório que estava ali, guardado, e eu estou usando isso.
Que sons vocês estavam ouvindo na época de produção do disco, coisas que vocês ouviam em comum, conversavam, essas coisas?
Fabiana: Vladimir só ouvia esquisitice. [risos]
Safatle: Essa pergunta tem uma coisa interessante, por que eu lembro que na época, a Rádio Cultura chegou a tocar duas ou três peças, eu lembro de eles falarem “é difícil de a gente saber mais ou menos como apresentar”. Acho que existe um desejo que é a base desse tipo de música, o desejo de ocupar o que a gente chama de espaços liminares, são espaços de limite, ele foi feito em cima disso. Tem pessoas que organizam a sua audição como se elas entrassem numa loja de departamentos e então elas vão procurando as coisas nos seus devidos lugares, é o “para onde vai isso”, “qual o tipo de público”. E eu sempre achei isso uma coisa tão violenta aplicada a música, por que você vê que é uma lógica de comerciante, que acaba sendo o eixo da produção, o que deveria ser completamente estranho a esse modelo de produção de objetos, de circulação de objetos. Mas eu acho que existia uma série de pessoas com o desejo exatamente de desrespeitar, eu diria mesmo de ocupar espaço liminares, entre uma coisa e outra. Tinham produções musicais nesse sentido, no meu caso eram as coisas que mais me chamavam a atenção. Mas eu não mudei muito a audição, mais ou menos isso que eu sempre ouvi: música erudita, música erudita contemporânea, rock eu acompanhei até os anos 90, depois acompanhei mal. E todos esses trabalhos que eram mais ou menos de atravessamento, embora nunca tivesse alguma coisa que fosse parecido com o que a gente estava fazendo. Mesmo que se você pegar uma música ou outro, “ah, isso parece mais”, “isso parece mais aquilo”, mas a questão era que em conjunto ela tem uma série de tensões, passa para um lado, às vezes passa para outro, às vezes ela parece muito assim um standard de jazz, às vezes não tem mais relação nenhuma, mas o engraçado é que eu não acho que fique esquizofrênico – isso depende de quem vai ouvir. Mesmo que houvesse certa liberdade formal, tinham problemas parecidos, acho que a estrutura dos problemas ela acaba, mesmo para o ouvinte que não ouve assim estruturalmente, ela acaba dando uma certa unidade.
Fabiana: Engraçado esse negócio de liminar. Eu lembrei que uma vez uma amiga minha veio me contar, bem nesse período, que eu tinha feito um show no Supremo e aí uma professora de técnica vocal foi dar um workshop e falou mal de mim, “mas imagina, uma cantora que não se decide se ela canta lírico ou se ela canta popular”, e aí ela até imitou uma frase de uma música do Lupicínio que eu cantava, então eu já virei mal exemplo. Mas eu estava nesse momento pesquisando loucamente com a Magda [Pucci] e a Kitry [Pereira], do Mawaca, a gente pesquisava muitas coisas. Eu estava em um período que eu descobri a música irlandesa e a música escocesa, popular e arcaica. Tinha um negócio chamado mouth music, que até aparece em uma música nossa, que na Escócia, na idade média, os instrumentos foram queimados e aí as pessoas cantavam na rua imitando os instrumentos. Então eu lembro bem desse meu período por que eu fiquei bem louca com mouth music e aí tinham as baladas irlandesas, eu pesquisei muita coisa africana, búlgara, era um período em que eu viajei o mundo musicalmente, pesquisando muito a parte vocal, por que o Mawaca era um grupo vocal. E acho que eu sempre namorei um pouco essa transgressão, eu gostava de ver, por exemplo, cantores fazendo coisas que eles não faziam normalmente. Eu lembro de uma coisa que me marcou bastante naquela época foi um disco de standard de jazz que a Sinéad O’Connor gravou [“Am I Not Your Girl?”, 1992], esse disco é super bonito. E estava também começando a ouvir um pouco de música eletrônica, tinham umas coisas de downtempo que eu gostava bastante. Jazz eu ouvia sempre, até por força do trabalho. É, não dá para dizer o que eu ouvia, eu sempre ouvi muita coisa. [risos] E eu ouvia muita música brasileira, coisas do Sinhô, Noel Rosa, Lupicínio, Ataulfo, eu pesquisava muito essas coisas aí, ficava tentando achar coisas menos conhecidas e tal.
Agora o disco está chegando às plataformas digitais e qual é a expectativa de vocês, dá algum tipo de ansiedade de mostrar esse filho que já tem certo tempo?
Safatle: Depois dos 40 anos, você perde todo o sistema de expectativa. Acho que a expectativa é uma coisa engraçada, pois dá a ideia de que se organiza o tempo através de uma projeção, se projeta o que deve ser pelo futuro e você fica na espera para ver se isso acontece ou não. Eu não tenho isso, o que é uma maneira de se deixar ser surpreendido por certas coisas. O que eu acho é que existe um desejo de promiscuidade na música que pede experiências dessa natureza. Por exemplo, meus amigos adornianos estritos, eu não sei se eles irão gostar, por isso eu já até pedi desculpas a alguns pelo tonalismo excessivo, mas acho que tem uma questão que fica ainda presente na música, ainda mais hoje, em que você tem um tipo de produção que é muito compartimentalizada pelas exigências da indústria, como uma instância de decisão da produção, agora até pelo fato de você ter hoje uma liberdade maior de criar, no sentido de que você não passa por grandes gravadoras, grandes estruturas e tal, isso pode servir para alguma coisa, como para dar a esse desejo de promiscuidade mais espaço, eu não acredito que os ouvintes sejam compartimentalizados, pois as experiências deles não são compartimentalizadas, então tem um horizonte de experiências para esses ouvintes que acaba não tendo uma forma musical que seja própria. Acho isso muito engraçado, por que eu conheço muita gente que tem um gosto muito estruturado, muito desenvolvido para certas artes e quando é o caso de música é um gosto meio primário, ouve um tipo de forma muito primária ou algo que é muito afetivamente investido, então há um tipo de escuta afetiva, como se fosse uma espécie de expectativa terapêutica da música ou às vezes muito funcionalizada. Terapêutica no sentido de “ah, quero recuperar alguma memória”, “quero criar um espaço”, ou muito funcionalizada, ela tem uma função muito específica. Então na verdade, esse tipo de produção não só não encaixa como ele é totalmente contrário a isso. A gente queria uma coisa que tivesse uma certa ritualidade, mas que ao mesmo tempo trouxesse materiais que são identificáveis, então acho que espaço para esse tipo de produção não só tem, mas ela responde a uma necessidade do tempo. Eu espero que mais coisas nesse sentido possam circular, inclusive quebrando um pouco esse tipo de relação. Eu acho que o Brasil tem uma relação com música muito estranha e é o mínimo que eu posso dizer, muito estranho. Gilberto Mendes já tinha dito isso uma vez, ao falar que existe um desnível no tipo de circulação entre literatura, cinema, artes visuais e música, é como se a música tivesse que ser a mais segura de todas as artes, aquela que não te coloca, do ponto de vista da sua audição, que não te coloca problemas do tipo “como eu ouço isso?”. Se aceita isso no cinema, por exemplo, você vai ver um filme e se coloca num lugar que é “como eu vejo isso?”, com música parece que é mais difícil, pois música é um elemento muito arraigado dentro da constituição da cultura nacional, quer dizer, a gente gosta de se ver como um país musical, mesmo que não seja exatamente verdade no caso, mas isso faz parte da nossa auto compreensão, então eu acho que isso criou um sintoma, em que a música tem que dar segurança de audição, mesmo que ela provoque certos sentimentos, mas eu tenho que ouvir de maneira quase imediata. E a gente queria alguma coisa que fosse “em deslocamento de”, pois tinha essa passagem, isto é, aquilo que você ainda identifica, mas não da maneira como você normalmente identificaria. E eu acho que em alguns momentos da música brasileira isso foi feito, em alguns momentos muito específicos.
Fabiana: Como o Arrigo [Barnabé].
Safatle: Sim, o Arrigo é um caso.
Fabian: Sim, ele sofreu muito pela música que ele resolveu fazer.
Safatle: É, acho que ele é um bom exemplo desse tipo de música de descolamento, que vai se descolando de alguma coisa. Essas coisas em transição elas são fascinantes, por que elas explicitam um duplo desejo de conflito. E tudo que mostra desejos de conflito tem sua riqueza, pois é preservar um campo comum e ao mesmo tempo negar um campo comum. Então quer dizer, que tipo de música é essa que fala duas coisas ao mesmo tempo: ela quer preservar e quer negar.
Fabiana: Nossa, depois disso tudo, nem sei. Eu não tenho essa capacidade zen do Vladimir de não ter expectativas [risos], mas o que foi muito confortável foi eu ser uma pessoa do mercado de música, do music bussiness mesmo. Isso facilitou a gente a fazer tudo bonitinho: a gente fez dois shows, pontuais, pequenos, com uma pretensão x que foi cumprida, começamos a criar um buzz em cima do trabalho, aí lançamos o single, aí agora vamos lançar o álbum, vamos para um lugar um pouquinho maior, que é um lugar que está chamando muito a atenção, que é o Blue Note, então em termos de desenhar essa trajetória dos últimos quatro meses, foi bom por eu saber onde eu estou pisando e estou com aqueles que são importantes para a gente e sabem fazer isso, então isso dá certo conforto. E eu concordo com o Vladimir que não é um trabalho super popular, adoraria ter essa ilusão – quer dizer, não adoraria não, por que eu iria me frustrar [risos]. É um trabalho que requer além de você ter um repertório prévio e de ter um ouvido um pouquinho mais aberto pra sair desse lugar que ele falou, precisa ter até um pouco de coragem para não ter essa coisa imediata com a música.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz
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