entrevista por Bruno Lisboa
O Dead Fish é um dos maiores patrimônios do hardcore brasileiro. Com 28 anos de carreira, a banda capixaba segue viva, tendo como marca de sua longa carreira a entrega, de corpo e alma, em apresentações enérgicas Brasil à fora e a produção de discos relevantes que, geralmente, trazem à tona retratos políticos/sociais do país que afrontam o status quo. E o disco mais recente, “Ponto Cego” (2019, Deck Disc), é a prova disso.
Lançado no final de maio, o oitavo (e urgente) álbum do grupo mantém a sonoridade clássica da banda, mas traz em suas letras uma análise pontual do momento nefasto e de retrocesso que o Brasil vive atualmente. E ainda crava que não há outro caminho a não ser o enfrentamento ante as ideias de extrema direita que imperam em nosso país.
Da primeira vez que conversou com o Scream & Yell, em 2011, após um show no Praia Tênis Clube, de Vitória, sua terra natal, Rodrigo Lima louvou a vida na estrada como continua louvando em 2019, e já defendia naqueles dias algo que hoje virou pauta nacional: “Achar que o mundo está maravilhoso porque agora podemos comprar carros em 72 prestações é muito perigoso. Eu só estarei satisfeito quando a gente tiver educação e saúde gratuita e de qualidade para todos. Isso ainda está longe de acontecer”.
Desta vez, o vocalista fala sobre o processo de gravação de “Ponto Cego”, a parceria com o escritor Álvaro Dutra, a invasão do discurso direitista na cena hardcore, a produção de Rafael Ramos, a volta para a gravadora Deck Disk, a parceria com Bill Stevenson (Black Flag), que foi responsável pela mixagem do disco, o prazer de estar no palco, o discurso de ódio direcionado a banda em redes sociais, a cena atual e muito mais. Confira!
“Ponto Cego” soa como um disco clássico do Dead Fish, mas com letras ainda mais pungentes que convidam o ouvinte ao enfrentamento ante a opressão diária em que vivemos. Como foi o processo de gravação do disco?
Nós produzimos muitas coisas (sonoramente falando) entre 2016 e 2017. Acho que passamos um ano e tanto com o instrumental sendo lapidado, mas foi só no ano passado que pegamos firme e resolvemos gravar com a Deck, decidindo que o álbum teria um tema. Resolvi que pra escrever essas músicas precisava estar com o meu parceiro Álvaro Dutra produzindo letras, melodias e trocando ideias, muitas ideias. Chegamos num consenso ainda no meio do ano passado e partimos pra cima de junta-lo e fazer ficar com a cara que está agora. Fizemos muitas demos na casa do Ric Mastria e o processo ficou assim: nos juntávamos os três, passávamos o instrumental quando achamos que estava ok, eu partia pras melodias, passava pro Alvaro, e ele estruturava coisas dividindo comigo. Quando uma letra estava fechada, eu ia pro Ric, passava com ele, fazíamos uma demo no computador dele e levávamos pra casa pra ouvir. Isso foi repetido muitas e muitas vezes, refrãos foram mudados, melodias alteradas, palavras substituídas por sinônimos ou simplesmente deletadas e análises foram feitas pra ver se a letra estava ficando coerente com o conceito “Ponto Cego”. No início eu queria que todas as letras fossem textos sem sujeito ou com sujeito oculto, pra dar uma cara mais de “veja ai se você veste essa carapuça”, mas isso ultrapassou a nossa capacidade de escrever sem ser na primeira ou terceira pessoas, então do meio pro fim deixamos a coisa mais solta e os sujeitos apareceram. Depois de tudo isso foi levar pro estúdio para que o Rafael Ramos fizesse o trampo de timbres e montasse a mágica toda que, acredito, que o álbum têm e ainda terminar uma última letra – que foi “O Outro do Outro”. Ter trampado com o Rafael Ramos foi essencial pra dar consistência ao álbum, e por fim o Stevenson, que era um cara que queríamos trabalhar desde que saímos do estúdio com o álbum anterior. Chegamos a conversar com ele no Brasil quando o Descendents esteve no país e ele foi super atencioso. Passou o tempo e a gente lançou pro Rafael no fim da gravação que ia ser maneiro ele mixar e masterizar, não sem uma breve resistência do Marcão e do Ric, que não queriam um álbum de hardcore melódico padronizado ao estilo americano, mas o Bill não trampa só com bandas assim, e ele se provou um gênio generoso em fazer um álbum ao nosso gosto e com a mão mais sensacional que já trampou conosco numa mix e master. Foi isto…
Você comentou que o Álvaro Dutra novamente colaborou no processo de composição das faixas. De modo geral, quais as contribuições ele trouxe para a composição das letras?
Ele veio pra dar uma cara mais aberta ao disco, veio pra tornar o disco classudo e não um álbum cheio de palavrões como eu acho que sairia o álbum se só eu escrevesse. Ele ajudou a lapidar ideias, trouxe uma grande parte da profundidade do conceito e ainda ajudou nas melodias junto com o Ric, que me fizeram cantar diferente do que cantei por 27 anos. Fora que ainda foi ao Rio e ficou no estúdio conosco, foi a praia comigo, tomou açaí e me mostrou um monte de banda e autores que não conhecia. Foi perfeito.
As letras de modo geral deste disco soam também como uma reposta ao discurso de extrema direita que começa a ganhar corpo, invadindo espaços que antes não ocupavam como a própria cena hardcore. Por que isto tem acontecido?
Não começa a ganhar corpo, a direita neofascista está no poder, ela foi eleita num pleito distópico, cheio de mentiras e fatos fabricados. Os nazis no geral (como chamo 80% da direita brazuca por motivos óbvios) viram uma possiblidade de retomar o poder pela forma mais escusa e desonesta que já presenciamos na história desse país, e ainda com um vernizinho hipócrita de democrático como tentam vender até hoje. Eles fizeram isso usando as instituições, as elites, e os conglomerados familiares de mídia. O Brasil sempre foi um país desigual e manipuladamente conservador, e nessa onda toda o rock, como dizem muitos dos meus amigos punks do abc, sempre foi um fenômeno de classe média no Brasil e a classe média, além de fiadora de vários golpes na nossa história, é preconceituosa, só não sabíamos que era tanto. Dentro das vertentes do rock, acho pessoalmente que o punk e o hardcore foram os que menos saíram cagados de discurso burro, elitista equivocado.
O Alyand (ex-baixista do grupo) participou do processo de composição de algumas faixas, mas acabou por abandonar a banda por problemas de saúde. Como foi ter o Ric Mastria (guitarrista do Dead Fish) preenchendo esta lacuna?
O Ric já tinha feito isso no “Vitória” (2015), o Aly não gravou o penúltimo álbum também, então eu acho que ficou até mais bem resolvido a parte dos graves nesse por que o Ric pode trabalhar eles com tempo, apesar de ser um trampo pesado, gravar dois instrumentos e ainda ficar na préprodução em casa e no estúdio. O Alyand contribuiu com alguns sons até bem pouco antes de sair.
Com a saída do Alyand vocês pensam em colocar algum substituto como integrante oficial ou seguirão com músicos convidados?
Temos o Igor Tsurumaki segurando as cordas nas nossas apresentações, estamos amando estar com ele, mas eu pessoalmente não o colocaria como fixo. Ele tem um trampo, tem férias, deve até pagar a previdência e não queremos foder a vida de mais um estando nessa banda. Por hora o Negão segue sendo nosso último baixista oficial.
O disco foi produzido novamente pelo Rafael Ramos, parceria essa que foi iniciada no “Zero e Um” (2004). Quais as contribuições que ele trouxe para o Dead Fish desta vez?
Ele tem uma forma e trabalhar que me agrada. Às vezes ele grita demais (risos), mas é parte do trampo. Ele mergulha no processo de forma inacreditável, vive a coisa de forma tão intensa que não é à toa que ele fez e faz discos tão emblemáticos, ele é realmente um produtor. Opina, briga, dá conselhos, come em cima da mesa de som sem parar de trampar e por aí vai. Ter gravado com ele nesse momento agora com quase 40 anos foi também especial por que falamos de filhos, das nossas realidades, do passado quando eles nos gravou com vinte e poucos. Foi perfeito estar lá no Rio trancado com o cara no estúdio.
“Ponto Cego” também celebra o retorno da banda para a gravadora Deck Disc. Mesmo com a bem-sucedida campanha de crowdfunding que gerou o “Vitória” (2015), por que vocês optaram por retomar esta parceria?
Porque os caras queriam ter essa experiência de gravadora, de estar trancado num estúdio e focado só na música. O Ricardo e o Marcão nunca tinham vivido isto. Eu pessoalmente fui contra de primeira, porque contrato com gravadora é sempre uma merda, e esse não seria diferente, fora que minha obra fica com eles, isso não me agradava, mas os argumentos de todos os lados foram bons, o contrato nem foi a coisa mais horrorosa do mundo pra quem não tinha um puto pra gravar e ainda com a quantidade de garantias que tivemos na Deck. No fim, depois de uma puta pressão de todo mundo, como sempre cedi, mas não me arrependo porque esse álbum não seria como é se fizéssemos independente. Enfim, perdi, mas foi uma derrota bonita, brigada, cheia de conversar sinceras e radicais, foi ótimo e estamos todos felizes.
Ainda falando da produção de “Ponto Cego”, o disco foi mixado pelo lendário Bill Stevenson (Black Flag, All, Descendents). Como se deu esta aproximação?
O Dead Fish já havia feito uma tour com o ALL, que é outra banda dele, no começo dos anos 2000. Já éramos conhecidos do mano e dos caras da banda, acho que só não conhecemos o Milo pessoalmente. Sempre sonhamos em ter a mão do cara fazendo algo nosso desde que gravamos com o Fernando Sanches no Rocha, ele gosta muito do Mr. Stevenson e nos mostrou muita coisa muito boa que ele se envolveu no projeto, fora as coisas que ele produz com a própria banda, o Descendents, o Rise Against e o Hot Water Music, que são os trampos mais conhecidos. Em 2017, via Fernando Sanches, conseguimos falar com ele no camarim de um show do Descendents no Brasil e ele foi mega atencioso. Queríamos ir gravar em Denver, ele nos passou os valores, que a dólar a R$ 2.50 era muito justo. Ele nos receberia, nos hospedaria, trabalharíamos por 10 dias e voltaríamos. Isso não deu certo por conta dos golpes que vivemos todos os dias no Brasil. Por mais de um ano desencanamos do Bill e do Blasting Room, aí no meio da gravação o André Pastura (nosso empresário) falou com o Rafael, que falou com o João Augusto, que é o Dart vader da porra toda na Dekcdisc, e ele se interessou. Rolou.
A trajetória do Dead Fish se aproxima das três décadas de bons serviços prestados. Qual é força que move a banda para ter uma carreira tão longeva?
Eu sinceramente não sei. São muitas histórias, alguma idade adquirida e um futuro sem aposentadoria visível. Só acho que todo mundo que já passou pela banda pode atestar em dizer que estar no palco com o DF é algo muito especial. Existe uma energia que vicia a gente, que faz a gente passar 20 horas se fodendo pra ter um enorme prazer por uma. Talvez seja isso… ainda amo estar no palco, conhecer gente nova, ir a cidades que nunca fui, falar o que eu quiser sobre o que eu quiser e ainda receber por isso. Vendo nesse ângulo é melhor que qualquer emprego de 9 às 19h com um chefe idiota. Sem dúvida.
A banda tem uma base sólida de fãs, mas é comum ver nas redes sociais um discurso de ódio direcionado a vocês, em muito devido a posição política adotada. Em tempos de dicotomia política, como vocês lidam com esta resposta negativa do público?
Quando existe um discurso de ódio direcionado a alguém hoje, é algo bastante revelador. Quero estar ao lado das pessoas que sofrem com o discurso de ódio da direita tosca brazuca, porque essas pessoas estão lutando pela mesma coisa que nós lutamos desde 91. Por igualdade pra todos, pelo fim do racismo, por uma democracia abrangente e não essa fake que estamos vivendo. Essa galera que patrocina robôs pra espalhar fake news, que aplaudem o assassinato da Marielle, por exemplo, não nos interessa. Se eles quiserem mudar totalmente, ok, mas enquanto estiverem com essa forma de pensar, temos diferenças irreconciliáveis e quero essa gente longe, pois são tóxicas, equivocadas. E mais, nós temos absoluta certeza que estamos totalmente do lado certo da história, porque temos pessoas muito boas, sem ódio, questionadoras, inteligentes e gregárias por perto.
A cena punk/hardcore já vivera tempos áureos em meados dos anos 90/2000 e hoje enfrenta um cenário carente de espaços e de exposição midiática. Alheios a isso, vocês têm uma agenda cheia de apresentações e um público fidelizado. Para quem viveu intensamente esta época como você vê os tempos atuais?
São outros tempos e outros formatos de tudo. Os garotos são mais livres pra produzirem sua música, ao mesmo tempo não se expõem tanto fora de casa e fazem menos pra que apresentações aconteçam. O rock também perdeu muita relevância por talvez ter envelhecido mal, isso é uma suposição. Eu pessoalmente acho que chegamos até aqui por que gostamos do que fazemos, ninguém nunca contava lá atrás de viver de música e somos gratos pela moral dos últimos 28 anos que temos com o público. Aprendemos errando pra cassete, entendendo o nosso tamanho e jogando o jogo ano após ano. Acredite, ainda é divertido estar no palco, se não fosse não estaríamos mais aqui.
A banda é um dos maiores exemplos do cenário nacional de que é possível se estabelecer com artista independente. Prova disso é o fato de que o DF já se apresentou por todo o Brasil, toca em festivais importantes e lançam discos elogiados. Há algo que vocês ainda não realizaram e pretendem alcançar?
Muitas coisas. Esse disco com conceito é algo que sempre quis fazer. Eu ainda quero andar por muitos lugares no Brasil, quero fazer algo pela América do Sul que seja relevante pra gente, quero tocar de novo na Europa, quem sabe Ásia, eu ainda quero estar na estrada, meus amigos pessoais hoje são todos gente da estrada. Tenho o melhor trampo do mundo.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Marcelo Marafante / Divulgação
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