introdução por Marcelo Costa
Cantora, percussionista e compositora pernambucana radicada em São Paulo, Alessandra Leão mergulha na religiosidade em seu novo disco, “Macumbas e Catimbós” (2019), um disco que nasceu de uma sessão de improviso de música e artes visuais a partir das macumbas e catimbós em 2017, virou show (“Pedi autorização e orientação aos meus guias, pedi amparo aos meus pais de santo, Luiz Soliano e Marilda Soliano e ao povo do Quiguiriçá”, ela conta) e, agora, ganha formato de disco em 15 canções percussivas, fortes e acompanhadas por um livro assinado por Juçara Marçal (leia aqui).
“Precisei de 40 anos para fazê-lo”, conta Alessandra no belíssimo texto sobre o disco em seu site oficial, em que ela relembra sua trajetória religiosa, nascida “numa família católica como religião, Kardecista por filosofia e prática”, passando pela fase ateia de duvidar e negar tudo até adentrar a “Zona da Mata Norte de Pernambuco e lá o Cavalo Marinho, Maracatu de Baque Solto, Coco, Ciranda” e mergulhar em sua primeira “sambada de maracatu”, que após um triste episódio que permitiu a ela entender “o sagrado da música e da arte diante da vida e da morte”.
Alessandra despontou com o grupo Comadre Fulozinha, ao lado das parceiras Isaar e Karina Buhr. Estreou solo com “Brinquedo de Tambor” (2006) e seguiu com “Folia de Santo” (2008), “Dois Cordões” (2009) e a trilha sonora “Guerreiras” (2010) até mergulhar na trilogia de EPs “Pedra de Sal” (2014), “Aço” (2015) e “Língua” (2016) – os três EPs disponíveis para download gratuito e audição no site da artista. Para ela, “Macumbas e Catimbós” (2019) é uma celebração, uma oferenda. “É um presente que ofereço aos Orixás, aos guias e entidades que trabalham, dançam, cantam, receitam, orientam e curam. Este disco é presente às forças que me guiam”, ela avisa.
Abaixo, Alessandra Leão comenta faixa a faixa este emocionante “Macumbas e Catimbós”, gravado na companhia de Abuhl Jr. e Maurício Badé. Quem assina a capa é Juliana Godoy, que também ficou responsável pela cenografia, além da direção de arte junto com Marcelo Gandhi e a própria Alessandra. A fotografia é de Bia Varella. A finalização de Vânia Medeiros e Gabriel Quintão. Confira!
MACUMBAS E CATIMBÓS
faixa a faixa por Alessandra Leão
Antes de comentar faixa a faixa, sempre acho importante esclarecer que esse repertório não é uma gira, nem um xirê. É uma celebração e uma oferenda! Da sequencia que se faz tradicionalmente nos rituais, só mantive a abertura para quem se deve cantar primeiro, Exu e Ogum, e o fechamento também cantando pra quem se deve, Oxalá e para o tambor.
Tomando como ponto de partida a raiz profunda da música da Jurema ou Catimbó e do Candomblé Nagô, do Nordeste – sobretudo de Pernambuco – e da música da Umbanda, do Sudeste – mais especificamente de São Paulo; processando com as nossas – minha, de Maurício Badé, Abuhl Junior e Caê Rolfsen – experiências como músicos profissionais; partimos dessa encruzilhada de possibilidades para pensar em cada camada e timbre. Do repertório aos arranjos, da maneira de gravar, de processar eletronicamente, de mixar e de masterizar esse disco, para que ele tivesse a força e o impacto que esse tipo de música, que essas energias e que esses tambores tem ao vivo.
Dentro de um universo tão imenso de entidades e Orixás, a escolha de para quem cantaria nesse disco se deu seguindo a intuição, ouvindo o que foi soprado aos nossos ouvidos. A cada passo, um pedido, uma autorização pra avançar ou uma orientação para repensar, assim foi feito esse “Macumbas e Catimbós.”
1. Exu chega / Exu guerreiro / Sete Encruzilhadas (Alessandra Leão / Trad. Umbanda)
Exu é o sentinela, o movimento, o mensageiro, guardião dos caminhos.
A primeira música que abre o disco é uma composição minha para os caminhos que Exu abre não apenas à frente, mas pra dentro de nós. O segundo ponto é uma saudação e um convite pra que ele venha trabalhar. O terceiro, pro seu Sete Encruzilhadas, me foi cantado pelo meu pai no santo Luiz Quiguiriçá, numa conversa por telefone, no dia seguinte ao segundo turno da eleição de 2018. Havia mandado uma mensagem chorando e ele me respondeu cantando esse ponto, pra lembrar que levantaremos quantas vezes for preciso. É a gravação que ele me enviou naquele dia que ouvimos no disco.
2. Ogum está de ronda (Alessandra Leão)
Ogum é o dono dos tambores. É a ele que pedimos e agradecemos ao tocar. Fiz essa música rezando pro meu irmão Daniel, que também é percussionista e filho de Ogum, assim como eu. Durante a produção do disco, recebi de presente um áudio dele cantando com seus alunos em Fortaleza. Acordei ouvindo ele cantar tão lindo vários pontos e na tarde do mesmo dia, trabalhando com Caê Rolfsen (que assina a produção musical comigo), chegamos nessa música. Havia um trecho instrumental que tínhamos gravado para pensar em alguma voz depois. Tentamos algumas coisas e nada ficava muito bom, até que Caê disse: “Temos um áudio do irmão, será que não tem nada para essa música que fala do irmão?”. Achamos um ponto que ele cantava para Ogum e para nossa emoção, era exatamente do tamanho do trecho que havia na música e praticamente no mesmo tom e andamento. Nao mexemos em nada da gravação dele, só sobrepomos e estava pronto. Era mesmo para ele estar conosco.
3. Awa aabo / Vou levar flores / Pontos para Iemanjá (Tradicional Candomblé e Umbanda)
Iemanjá é a mãe, a rainha dos mares, dos oceanos, dona das águas e da fertilidade. O primeiro korin gravado aqui, aprendi com Alexandre Garnizé, e é um agradecimento pela proteção recebida. A segunda música é um ponto que adaptei e canto a muitos anos. Quando decidi gravá-lo, me veio a presença de Lia de Itamaracá, que sou fã desde que me entendo por gente. Depois de algumas tentativas e choques na agenda, abriu-se um portal e conseguimos nos encontrar e gravar juntas em Recife, na véspera do dia de Iemanjá. Não sou de acreditar em rainhas, mas em Iemanjá e em Lia eu acredito. O terceiro momento dessa faixa, é uma série de pontos cantados no Terreiro Xambá, em Olinda, comandado pelo Babalorixá Ivo de Oxum. É minha homenagem e agradecimento à esta casa que me acolhe há tantos anos.
4. Corre um rio em mim (Alessandra Leão)
Oxum é a mãe das águas doces, da fartura, da beleza, da abundância, dos prazeres, da alegria e sensibilidade e do amor. Oxum é mãe da minha mãe Graça. É para as duas que fiz essa música. Para esse colo fértil e protetor, para o colo que eu sei que sempre posso contar e ela vem me cuidar e que sempre me mostra como levantar e a importância celebrar e dançar. Essa música é um rio que corre em cada uma de nós. É para Oxum e para a minha mãe que também é minha irmã de fé.
5. Tua mão, minha cabeça (Alessandra Leão)
Xangô, Orixá da justiça que tanto precisamos por perto. Dono dos trovões e das pedreiras. Compus essa música pedindo, sentindo e agradecendo sua força e energia sobre mim, sobre minha cabeça e meu corpo. Tanto os ensaios E gravações com Maurício Badé e Abuhl Jr. quanto na gravação do coro com Lívia Mattos, Lenna Bahule, Karina Buhr, Isaar, Manu Maltez e Caê Rolfsen, aconteceram nessa mesma sintonia de força e festa que Xangô representa.
6. Abre a mata, Oxóssi (Alessandra Leão e Abuhl Jr)
A energia de Oxóssi e dos caboclos esteve e está muito presente desde o início do processo. Um dia, cuidando de uma samambaia na casa de Juliana Godoy (que assina a capa, cenografia e co-direção de ate), comecei a cantar “Abre a mata, Oxóssi / Pra eu passar / Na noite escura, Odé / Clareia”. Fiquei muito tempo cantarolando isso. Dias depois, numa passagem de som, comentei com Abuhl, filho de Oxóssi, que havia feito essa música e que queria cantá-la naquela noite. Ele me falou que também tinha feito uma música dias antes e me mostrou “Na mata eu vi / Os caboclos assobiando / Disseram que foi / Oxóssi atirando”, na hora entendemos que era a mesma música! Foi a última faixa que gravamos no disco, e decidimos que seríamos apenas nós três: um ilu, um abê e eu e Maurício Badé cantando. Durante a mix, sentimos que havia um espaço a ser ocupado ainda e assim, Bruno Prado nos deu esse presente de gravar nessa faixa.
7. Ponto para Malunguinho (Tradicional Jurema)
Na Jurema, Malunguinho é Reis, é pra ele que se canta primeiro. Jurema é religião de Caboclos, de índios que se encantaram. Malunguinho é entidade poderosa. Essa foi a primeira música que eu e Caê Rolfsen começamos a pré-produzir. Eu já vinha com a ideia de usar a voz como texturas e timbres nos arranjos. Ao gravar Malunguinho, começamos a testar esse caminho, com essas vozes que muitos caboclos se apresentam quando estão em terra. Esse faixa abre a linha da Jurema no disco e quem vai na frente é Malunguinho e os caboclos, como deveria ser!
8. Cabocla de Pena (Tradicional Jurema)
Caminhos abertos, convidamos as caboclas trabalharem primeiro! A força da Jurema, das mulheres e da mata. Esse ponto é cantado até hoje nos terreiros de Jurema, mas eu o conheci através do disco Itinerário Musical do Nordeste, gravado pela Fundação Joaquim Nabuco nos anos 1970 e lançada em 2010, tenho cantado ele desde então.
9. Caboclo arreia (Tradicional Jurema e Cavalo Marinho)
Esse é uma toada pro Caboclo de Arubá, cantada no Cavalo Marinho e também nos terreiros de Jurema. Desde os anos 1990 que vejo Mestre Biu Alexandre, mestre e capitão do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, de Condado, “botar a figura” do Caboclo de Arubá, e dançar inteiro em cima dos cacos de vidro, pra mostrar o corpo fechado. Essa dança é das imagens mais lindas da vida, vi tantas vezes e não canso de ver. Esse ponto também é cantado em alguns terreiros de Jurema.
10. No pé da Jurema (Tradicional Catimbó)
Canto esse ponto há anos, ele foi gravada originalmente com o nome de Toada de Mestra Leonor, pela Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, em João Pessoa, PB, cantada por Luiz Gonzaga Ângelo. Não encontrei em Pernambuco nenhum juremeiro que conhecesse, não sei se na Paraiba ainda é cantado.
11. Vamos, meu Mestre (Tradicional Jurema)
Quando decidi fazer esse disco, voltei para Pernambuco para ouvir mais do repertório da Jurema ou Catimbó. Aprendi muito com Alexandre L´Omi L´Odo, que me levou para conhecer o terreiro de Dona Alaíde de Benedito Fumaça (em memória), importante juremeira, que vivia em Caruaru, e seu sobrinho Pai Cacau, que além de Babalorixá e Mestre de Jurema, é um cantor impressionante. Nesses mesmos dias, L´Omi me apresentou a Paulinho Carrapeta, grande conhecedor dos pontos e dono de uma voz arrebatadora. Esse ponto, cantado tanto para despedida, quanto para a chegada dos Mestres, me foi ensinado por Paulinho em meio a tantos outros que eles me ensinaram nesses encontros! Para a gravação, convidei Mestre Sapopemba, alagoano radicado em São Paulo, criado em meio ao Candolembé e da Jurema. Seu conhecimento sobre esse repertório é imenso, sua presença, sua voz com esses aboios chama os Mestres e acende uma luz na minha alma. É uma honra enorme tê-lo aqui.
12. Abre a porta / Boiada de 31 (Tradicional Umbanda)
Dois pontos para Boiadeiro que cantamos lá no meu terreiro. A chegada dele é sempre motivo de festa e alegria. Conversei muito com ele sobre esse disco, sobre cada passo. Me encorajou a seguir adiante, me amparou quando me assustei, me disse para refazer alguns passos e ver o que não tínhamos visto ainda. Canto esses pontos como um agradecimento imenso a esse encontro com o Boiadeiro e ao Recanto Quiguiriçá. A sua chegada é mesmo sempre motivo de festa e de alegria!
13. Ponto para Preto Velho (Tradicional Umbanda)
Esse é um ponto que, lá no terreiro, cantamos em trabalhos específicos. Um canto de limpeza, de acalento e esperança. Um canto que sempre me levou a um estado meditativo profundo. Quis gravá-lo assim, como (e com) um cochicho, um conselho, um abraço de Preto Velho. Precisava de Mateus Aleluia comigo nesse abraço. Da sua voz e sabedoria, da calma e da força da sua presença, da generosidade do seu sorriso. Esse foi e é um presente do tempo, um presente de Preto Velho.
14. Hasteia a bandeira (Tradicional Umbanda)
Oxalá é o pai, e é ele quem fecha as giras. Esse é um ponto antigo da Umbanda, cantamos sempre juntos lá no terreiro. E era com eles, com minha família de santo, como fazemos toda semana, com meus pais Luiz Quiguiriçá e Marilda Soliano; com minhas irmãs Viviane e Camila Soliano; com Thalles e Vitor Soliano, ogãs ou corimbeiros da casa há muito mais tempo do que eu; era com eles representando todo o povo do Quiguiriçá, que precisava gravar esse ponto, assim juntos, na mesma sala, nos olhando nos olhos e celebrando os encontros e nossa fé.
15. Firmei meu ponto / Ponto pro tambor (pontos tradicionais da Umbanda, Jurema e Candomblé)
Esse disco da ordem do tempo e dos encontros. Ao longo desse processo, gravei e recebi áudios com as vozes de Nice Firmino, Dona Alaíde de Benedito Fumaça (em memória), Tia Maria de Guiné, Alexandre L’omi, Pai Cacau, Paulinho Carrapeta, Pai Ivo de Oxum, Guitinho, Graça Leão, Laura Tamiana, Alexandre Garnizé, Anelis Assumpção, Geraldo Barbosa, Daniel Leão, Maíca Soares, Luiz Paixão, Mané Roque e Felipe Cândido. Essa faixa conta sonoramente esse caminho, as vozes da maioria deles aparece aqui, e todos estão em partes fundamentais dessa jornada. Para fechar o disco, um ponto para o tambor, para agradecer a ele pelo tanto que nos oferece e possibilita.
Saravá