por Ananda Zambi
“Eu Você Um Nó” (2019, YB Music) é o mais novo disco de Lara Aufranc. Ex-vocalista da banda de r&b Lara e os Ultraleves, a cantora e compositora paulistana lança um segundo álbum em carreira solo com mais segurança e consistência e com uma identidade sonora mais bem definida. Ainda assim, não se pode definir o disco (nem sua carreira como um todo) em apenas um estilo musical. Lara, que também é cineasta, atriz e locutora, tem influências das mais variadas, indo da MPB ao rock alternativo, de Tom Zé a Tom Waits.
Para ela, “Eu Você Um Nó” é uma obra de questionamentos, como por exemplo, a culpabilização da nudez feminina pela sociedade – já no clipe de “Llena de Água”, música do disco “Passagem” (2017), essa questão foi levantada, com tomadas da cantora nua interagindo com a natureza –, o vício do indivíduo contemporâneo em tecnologia, as novas relações interpessoais e novas definições de amor, entre outras.
O disco têm direção artística de Romulo Fróes e conta com parcerias de Lara com Meno Del Picchia, Tarso Jones, Clima e o guitarrista de sua banda, Allen Alencar – completam o time Daniel Doctors no baixo e Victor Bluhm na bateria e percussão. Conversamos com Lara sobre os desafios do palco, o forte conservadorismo que vem assolando o país e as diferenças entre trabalhar com banda e em carreira solo. Confira.
Você é uma artista multimídia – é cineasta e estuda teatro. Mas por que acha que tens uma ligação maior com a música? Houve algum momento decisivo que fez você enveredar mais pra esse lado?
Sempre fui fascinada por arte, não uma arte específica, mas todas as artes. Eu era uma criança que não queria ir embora do museu sem antes ver todos os quadros. Queria ser artista plástica, mas também dançava e cantava. Comecei a estudar canto aos 12 anos e tive a primeira banda aos 18. A música sempre foi fundamental na minha vida. O meu refúgio. Na época dessa banda, eu estudava artes do corpo – tinha aulas de teatro, dança e performance. Foi maravilhoso e ao mesmo tempo apavorante. O palco, a entrega, a exposição, o narcisismo dos artistas. Não consegui me formar. Achei que eu teria uma vida mais tranquila atrás das câmeras e fui pro cinema – que é uma arte que mistura várias outras. Mas a música me perseguia. Cantar me dá outro tipo de prazer. Comecei a compor, fui criando confiança até que Lara e os Ultraleves virou autoral. Nesse meio tempo eu percebi que precisava escolher. A música foi um chamado.
Por que você quis abordar a questão da nudez na foto de capa de “Eu Você Um Nó”?
Eu já tinha trabalhado com nudez quando lancei o clipe da música “Llena de Água”. Pra mim, a nudez tem algo de libertador, de sagrado. O corpo feminino ainda é um grande tabu – inclusive pra nós, mulheres. O Brasil é um país extremamente conservador e o corpo feminino carrega muita vergonha – de não ser bonita o suficiente, magra, jovem etc. A mulher é criada para ser agradável, como um objeto de decoração que não pode incomodar as visitas. Dessa forma, o corpo feminino também deve ser submisso: belo mas sem voz. Um corpo-objeto. Quando comecei a cantar com os Ultraleves, eu me sentia obrigada a usar sapato de salto, cílio postiço, vestido justo – coisas que não tem a ver comigo e que só me atrapalhavam. Hoje eu canto descalça e por causa disso voltei a dançar. Quando eu escolho a nudez para apresentar o meu trabalho, escolho ser eu mesma. É uma declaração de entrega, força e vulnerabilidade.
Como foi trabalhar com Romulo Fróes, que já fez direção artística de nomes como Elza Soares e Juliana Perdigão, nesse disco?
Maravilhoso. O Romulo é um cara que consegue extrair o que tem de melhor em cada pessoa da equipe. Ele chega pontualíssimo e participa de tudo, mas sem controlar demais. Era quase como uma bússola. Quando eu ou a banda estávamos um pouco perdidos ele indicava o norte, e a gente continuava a navegar. Eu nunca tinha mostrado músicas inacabadas pra ninguém, mas em pouco tempo me senti muito à vontade com ele. Adoro gente sincera, que fala o que pensa sem meias palavras. Esse jeito Romulo de responder, na lata, funcionou muito bem pro meu processo criativo. Só tenho a agradecer.
Quais diferenças você sente entre “Eu Você Um Nó” e “Passagem”? E entre trabalhar com banda e em carreira solo?
“Eu Você Um Nó” é um disco mais ousado. Tem uma escuridão e uma complexidade maior. Acho que tem a ver com o momento histórico em que estamos passando, mas também com um crescimento pessoal como compositora. Liderar um grupo de pessoas nunca é uma tarefa fácil. No caso de uma banda, o trabalho é horizontal e por isso costuma ser mais demorado. Cada ideia tem que ser debatida e aceita por todos os membros do grupo. No caso de carreira solo, a última palavra é do artista. Mas é claro que não é tão simples, ainda mais na realidade brasileira onde sempre falta dinheiro e muita coisa é feita na brodagem. Eu tento encontrar um meio termo entre a democracia e a ditadura. Ouço e considero as ideias do grupo, mas preciso me fazer ouvir.
Você diz que esse disco novo tenta trazer mais perguntas do que respostas. Por que acha que nele surgiu tantos questionamentos?
O mundo de hoje está sobrecarregado de certezas. Todo mundo tem uma opinião sobre tudo. Eu acredito que o verdadeiro conhecimento é fruto de uma consciência capaz de questionar. Lidar com a incerteza é muito mais difícil porém traz um enorme potencial de transformação. Por exemplo, a internet não é nem boa nem má. É uma ferramenta poderosíssima. Mas como usar a ferramenta de modo ativo, pensante, invés de ser bombardeado por informações que não interessam ou sequer são verdadeiras? O mundo contemporâneo é extremamente complexo. Não adianta todo mundo falar ao mesmo tempo. Eu não tenho um discurso fechado. Quero ouvir, quero trocar.
Em 2016, você comentou em entrevista que achava o mercado musical mais estabilizado naquela época. Em 2019, valeu a pena deixar um emprego estável pra focar na carreira de cantora?
Sim. Eu não teria sido feliz com o fantasma da música baforando nas minhas costas. Eu precisava me entregar de corpo e alma. Não estou dizendo que é um mar de rosas, o mercado da música independente no Brasil é complicado em inúmeros aspectos. Vivemos num país que não valoriza a própria cultura. Que acha que artista é vagabundo. As pessoas não tem ideia do quanto a gente trabalha. E agora ainda temos que lidar com esse (des)governo – que acha que educação, cultura, esporte e cidadania são dispensáveis.
– Ananda Zambi (@anandazambi) é jornalista e editora do Nonada – jornalismo travessia. Nas horas vagas, também brinca de fazer música.” A foto que abre o texto é de Gal Oppido / Divulgação.