Texto por Renan Guerra
Um dos cartazes de “Varda por Agnès” (esse acima) diz lá no alto “o filme de despedida de uma das maiores diretoras dos últimos tempos”. Considerando que o cinema tem pouco mais de 120 anos e que Agnès teve uma carreira de 65 anos dedicados ao cinema, passando das pesadas câmeras de película da Nouvelle Vague até as intervenções modernas do cinema digital, é no mínimo correto dizer que ela foi uma das maiores diretoras de todos os tempos. Ponto. Essa falha, aliás, é corrigida no trailer do filme, que afirma sem medo: uma das maiores diretoras de todos os tempos!
Sendo mulher no Clube do Bolinha que era o cinema no século XX, Varda é fundamental para entendermos o papel da arte no mundo e a importância de compreendermos as pessoas, o tempo e a vida de forma mais lúdica, mas não menos forte. “Varda por Agnès” (2019), lançado recentemente nos cinemas brasileiros, é o documentário derradeiro da diretora francesa que faleceu em março deste ano, aos 90 anos, e resgata temas caros a obra dela: o cinema, a arte, a criação artística, o feminismo e o envelhecimento.
Esse novo documentário não é tão criativo ou inovador quanto seus co-irmãos anteriores, pois aqui se encontra enxertos de diferentes palestras ministradas por Agnès, tudo costurado por imagens pessoais de acervo e cenas de seus filmes clássicos. Seus co-irmãos são “As Praias de Agnès” (2009) e “Visages, Villages” (2017), ambos filmes que abusam da criatividade, transformando o documentário em dispositivo criativo para irrupções mais complexas e arroubos quase megalomaníacos, como transformar sua rua em praia no filme de 2009 ou colar murais gigantescos pela França, no caso do filme de 2017. Para quem já viu os dois filmes anteriores, algumas histórias podem até se repetir em “Varda por Agnès”, mas isso não tira a mágica que há em a ouvir contar essas histórias.
A artista tem uma forma muito pessoal de ver o mundo e isso é transposto para a tela de forma única neste novo filme. Em determinada cena, quando questionada sobre o filme que fez antes de seu marido falecer, o também cineasta Jacques Remy, ela é precisa: o interlocutor pergunta se fazer cinema é uma forma de burlar a morte para continuar existindo, no que ela retruca dizendo que não, fazer cinema é apenas uma forma de acompanhar e entender o tempo. É esse tempo que move a arte de Agnès e por isso vemos seus filmes tão conectados a essa passagem: a diretora não tem medo de brincar com a modernidade, abusando das vantagens que os dispositivos digitais a trazem e utilizando-os a favor de suas concepções.
“Varda por Agnès” constrói-se sobre três pilares básicos do trabalho da cineasta: inspiração, criação e compartilhamento. Ela entende que suas obras sempre seguem essa tríade, isto é, surgem da inspiração, do momento do ideal, passam pelo processo de criação, que é o momento braçal, em que as ideias ganham forma e chegam ao final sendo compartilhadas, pois se faz cinema para ser visto. Seguindo essa trilha, a própria Agnès nos conta histórias de seus filmes, mas também passa por seus trabalhos em fotografia e seus pulsantes experimentos em arte moderna, com exposições e performances.
Em 2017, Varda tornou-se a primeira diretora mulher a receber um Oscar pelo conjunto da obra, mesmo assim, seus filmes ainda carecem de redescobrimento. Ela possui uma filmografia ampla e que constrói uma colcha de retalhos potente sobre o século XX, captando em sua lente a Nouvelle Vague francesa, o movimento dos Panteras Negras nos Estados Unidos, o movimento hippie, a luta feminina por igualdade, a mudança de costumes da sociedade moderna, as incongruências dos sistemas socioeconômicos e, mais recentemente, um olhar muito próprio do que é envelhecer enquanto ser produtivo e ativo na sociedade.
Há o lúdico e o mágico no olhar de Agnès sobre o mundo, há algo agridoce na forma como ela capta as pessoas em sua lente, mas sobre tudo isso há um olhar que nunca deixa de ser incisivo sobre questões tão fundamentais de nossa sociedade. A cineasta sempre teve noção clara de seu lugar no mundo e buscou a partir disso fazer de sua arte uma forma de olhar compreensiva e contemplativamente sobre a existência. “Varda por Agnès” é, no final das contas, um epílogo charmoso e cativante de uma artista que nos deu tanto e nos ensinou tanto. É filme para se ver de coração aberto, deixando-se cativar pelas histórias e devaneios de Agnès.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o site A Escotilha.